Luta de classes, crise ideológica e saúde mental dos trabalhadores

Por Gilson Lima [i]

O adoecimento, o sofrimento e a dor, física e mental, fora os “acidentes” e “tragédias”, acompanham a história dos trabalhadores. São inclusive um indício de sua posição de classe explorada e oprimida. “A miséria, a insegurança, o excesso de trabalho e o seu caráter forçado destroem o corpo e o espírito do operário” dizia Engels, em meados do século XIX, em seu clássico “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”.


Mas nos cabe entender melhor como a saúde do trabalhador se apresenta hoje, em nosso contexto, quais seus determinantes, suas características e as melhores formas de defendê-la. Ora, e quando damos uma olhada nos noticiários do jornal, ou prestamos atenção em nosso local de trabalho, o que nos salta aos olhos é o crescimento do adoecimento mental dos trabalhadores. Como entendê-lo e combatê-lo?

Não sou um especialista na área de saúde, adianto. Como trabalhador em um Banco venho acompanhando por algum tempo a questão do suicídio de trabalhadores bancários. A necessidade em abordar o assunto foi se colocando, principalmente, pela constante presença de um ou outro colega no ambiente de trabalho que apresentava alguma forma de transtorno mental, sobretudo, depressão. Ao ler matérias sobre o tema ou receber notícias de morte ou de uma crise relacionada ao assunto, passei a temer que alguém próximo, surpreendentemente, pudesse vir a ser uma vítima fatal em virtude de problemas dessa natureza. Afinal, essas coisas não as percebemos tão facilmente. E infelizmente, isso veio a acontecer[ii].

Resolvi escrever também, primeiro no site da minha entidade[iii], depois nessa intervenção, porque esse assunto está, de um jeito ou de outro, na pauta de conversas entre amigos trabalhadores e militantes. Afinal, os números dessa forma de adoecimento estão realmente preocupantes: são diversas as categorias afetadas direta ou indiretamente. Mas, de forma lamentável, ainda não se tornou uma pauta de importância para entidades e coletivos de classe, que ainda não contribuem de forma concreta para a luta e o enfrentamento no âmbito de nossa saúde mental.

Aliás, essa nossa avaliação é semelhante ao diagnóstico da interessante intervenção no site PassaPalavra[iv] de novembro do ano passado. O autor, que se identifica como Bancário, critica não só a falta de importância dada a esse tema na formação e luta sindical dos bancários hoje em dia, mas também as formas dessa formação e luta:

“o livro [Saúde dos bancários] e as formações promovidas pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo tendem a ser pouco propositivos politicamente, suas campanhas não vão além da agitação, o sindicato não tem avançado em formas de construção de lutas coletivas em relação a essas pautas, as ações do sindicato em torno dessa pauta são sobretudo cupulistas, nas greves a pauta da saúde não é priorizada.

As formações promovidas pelo sindicato tendem a ser voltadas sobretudo para os dirigentes sindicais e os próprios debates tendem a ser excessivamente acadêmicos; ousamos dizer que são mesmo administrativos, ou gestoriais, mais preocupados em problemas técnicos e em administrar a caixa de saúde dos funcionários ou em como a empresa deve lidar com adoecimento que seus métodos de gestão provocam, e pouco preocupados em como promover lutas para resistir a esse adoecimento ou conquistar melhores condições de saúde e assistência médica.”

Pois bem, vejamos mais de perto esses dados sobre adoecimento psíquico dos trabalhadores. Depois, quais suas causas, de acordo com alguns estudiosos. Por fim, responderemos a famosa questão do que fazer — ao menos a partir das pistas e achados disponíveis aqui. Nesse último momento, voltaremos inclusive a uma crítica à linha política sindical majoritária já exposta acima pelo companheiro Bancário.

A saúde mental dos trabalhadores está em baixa

Em outubro de 2018, o Globo[v] divulgou um relatório alarmante sobre saúde mental no mundo. O relatório, escrito por 28 cientistas e publicado na prestigiada revista de medicina The Lancet, fala de um aumento dramático de transtornos depressivos e de ansiedade nas últimas décadas. Hoje a OMS estima 300 milhões de pessoas no mundo com depressão, e a previsão é que se torne a doença mais incapacitante já em 2020.

Segundo matéria do Estadão[vi] do mesmo período, “o Brasil é campeão de casos de depressão na América Latina. Quase 6% da população, um total de 11,5 milhões de pessoas, sofrem com a doença, segundo dados da OMS. Porém, a psiquiatra Nadège Herdy alerta para o aumento do número de registros de Transtornos de Ansiedade. ‘Os mais comuns são os transtornos de ansiedade generalizada e síndrome do pânico. Em 2015, 18,6 milhões de pessoas sofriam com transtorno de ansiedade no Brasil’”.

Já “dados de relatórios anuais da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) compilados pela Folha[vii] revelam que o número de consultas psiquiátricas cobertas pelos planos saltou de 2,9 milhões em 2012 para 4,5 milhões em 2017. O aumento de 54% é o quíntuplo dos 10% registrados no mesmo período pelas consultas ambulatoriais de forma geral. (…) Embora permaneçam em terceiro lugar entre as doenças causadas pelo próprio emprego — atrás de lesões e problemas musculares —, a parcela de afastamentos por transtornos mentais tem aumentado.” Isso, ressaltamos, levando em conta que os dados não abrangem o conjunto dos trabalhadores informais, além do viés pela descaracterização do nexo com trabalho (desigual entre categorias profissionais) para os trabalhadores com cobertura previdenciária.

No caso da minha categoria, trabalhadores empregados em bancos, o problema parece ser mais grave. Segundo o Sindicato de Bancários de São Paulo[viii]:

“Os transtornos psiquiátricos já superaram as doenças osteomusculares que por muitos anos foram campeãs de incidência entre os trabalhadores bancários. (…) nos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CRST) do município de São Paulo, somente de junho a novembro de 2015, dos 102 atendimentos a bancários realizados nos centros, 54% apresentavam transtornos metais. Em seguida estão problemas como LER e Dort (Lesões por Esforços Repetitivos e Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho) com 30,39% dos atendimentos. […] Os bancos nem negam mais que o trabalho bancário adoece. Ainda querem atribuir as pressões aos gestores, mas estes também adoecem e são afastados. A recente intensificação das demissões nos bancos privados e as reestruturações nos bancos públicos aumentou a angústia dos trabalhadores e o número de casos extremos também aumentou. […] Outro dado alarmante de saúde mental é de que no ano passado, 75,3 mil trabalhadores foram afastados em razão de depressão, com direito a recebimento de auxílio-doença em casos episódicos ou recorrentes. Eles representaram 37,8% de todas as licenças em 2016 motivadas por transtornos mentais e comportamentais, que incluem não só a depressão, como estresse, ansiedade, transtornos bipolares, esquizofrenia e transtornos mentais relacionados ao consumo de álcool e cocaína.”

A questão do suicídio, como comentei, é um problema grave entre nós. Em março de 2017 a situação no Banco do Brasil ficou alarmante, segundo a AGEBB (Associação dos Gerentes do Banco do Brasil)[ix]:

“Chega à AGEBB a informação da morte, por suicídio, de um colega da área de comunicação da Super PE. No dia 10 de fevereiro, outro, da Superintendência Super Leste (Campinas/SP), também dava cabo da própria vida. Esses são os registros de apenas dois casos muito recentes de colegas do BB que chegaram ao extremo do estresse, perda do sentido da vida ou seja lá qual for o motivo que leve alguém à atitude de tirar a própria vida. Um levantamento realizado por uma comunidade de funcionários do BB nas redes sociais revela que 64 colegas se suicidaram nos últimos meses.”

Eis uma realidade que não tem como esconder: nossa saúde mental vai mal. Quase todos nós, trabalhadores, acompanhamos nos nossos locais de trabalho a existência e o crescimento do sofrimento psíquico de nossos amigos (e/ou de nós mesmos[x]).

O isolamento como uma das causas centrais

No âmbito das relações de trabalho, uma visão corrente entre alguns estudiosos e de algumas entidades sindicais é a de que o problema está relacionado com as reestruturações dos processos produtivos. Isso quer dizer que, as extinções de vagas/terceirização, o aumento da intensidade no processo de trabalho, inclusive com auxílio das novas tecnologias, jornadas abusivas, avaliações competitivas e individuais de desempenho, metas, etc. figuram entre as principais causas dos adoecimentos.

Sem dúvida esses fatores são de suma importância. Mas queríamos chamar atenção para um aspecto que nos parece muito relevante: o do isolamento dos trabalhadores. Ou seja, do esfacelamento de coletivos de trabalhadores, de suas identidades coletivas, suas redes e relações de ajuda mútua e solidariedade, como uma das características centrais desse “novo” “mundo do trabalho”.

Essa característica, notemos, dá ênfase aos aspectos mais político e ideológico da luta de classes, apesar de seu caráter econômico ser evidente. E por se tratar de luta de classes, devemos analisar tanto o lado de “lá”, quanto o lado de “cá”, de forma relacional, ou dizendo de outra maneira, olhar um oponente em função do outro. Tanto os ataques que visam desfazer esses coletivos, quanto sua defesa e contra-ataque.

Deixemos as coisas mais claras. No capitalismo, os trabalhadores são “organizados” e formam um coletivo enquanto capital variável, como força de trabalho comprada e consumida no processo produtivo, ao mesmo tempo em que é agente na reprodução ampliada do capital, na produção da mais-valia, sua forma específica de exploração. Mas, ao mesmo tempo, tendem, através e durante lutas espontâneas e cotidianas de resistência, a uma unidade política-ideológica, com constituição de uma vanguarda e possível elevação dos patamares de suas lutas. Esse desenvolvimento do proletariado enquanto força real e autônoma na luta de classes, através de suas organizações, ideologia e lutas, é alvo de constante ataque da burguesia. Em determinadas conjunturas, o direito à associação foi vedado aos trabalhadores como forma de romper/quebrar essa unidade, em outras foram “assimilados” para, através da subjugação ideológica, cumprir o papel desagregador como aparelhos do próprio estado capitalista. O primeiro, principalmente como resistência/resposta à ofensiva dos trabalhadores, o segundo, principalmente como recuo dos trabalhadores.

Aliás, a própria dinâmica das relações de produção jogam uns trabalhadores contra os outros. Sendo apenas possuidores de uma mercadoria, sua força de trabalho, para poder sobreviver, os trabalhadores necessitam entrar em concorrência com seus semelhantes para ser empregado pelos detentores dos meios de produção. A exploração que daí decorre, a ideologia jurídica do contrato de assalariamento a esconde. Ideologia reforçada, sobretudo hoje, pelas bonificações por produtividade, sistema de metas por “colaborador”, sem falar no dito “empreendedorismo”.

Sendo assim, e de uma forma bem geral e concisa, a “formação” das classes trabalhadoras é fruto de uma longa e complexa luta contra essas tendências que visam constantemente desarticulá-las como resistência e ao mesmo tempo articulá-las apenas sob uma forma específica de exploração: a capitalista (e sua necessária sombra: o exército industrial de reserva). E muitos foram e são os instrumentos usados nessa formação e seu fortalecimento: sociedades operárias e de apoio mútuo, os sindicatos, os partidos etc. Fora inúmeros coletivos e instituições não “formais” de trabalhadores também[xi].

O jovem Engels, no clássico já referido, coloca as coisas da seguinte forma:

“A concorrência é a expressão mais completa da guerra de todos contra todos que impera na moderna sociedade burguesa. […] Os operários concorrem entre si tal como os burgueses. […] Essa concorrência entre os trabalhadores, no entanto, é o que existe de pior nas atuais condições de vida do proletariado: constitui a arma mais eficiente da burguesia em sua luta contra ele. Daí os esforços do proletariado para suprimir tal concorrência por meio da associação e daí o furor da burguesia contra essas associações e seu grande júbilo a cada derrota que consegue impor-lhes.”

Ora, se formos procurar esse aspecto na literatura recente, há aí uma ênfase importante para se pensar a saúde do trabalhador. No mais novo livro de Ricardo Antunes, Privilégio da Servidão, ele faz um resgate de vários grandes autores de hoje que enxergam “o crescente processo de isolamento do trabalho e a ruptura do tecido de solidariedade antes presente entre os trabalhadores” como causas fundamentais para o adoecimento no trabalho.

Essa tese é reforçada quando se vê pesquisas sobre suicídio e sua relação com o trabalho[xii]. De novo Antunes:

“É essa quebra dos laços de solidariedade e, por conseguinte, da capacidade do acionamento das estratégias coletivas de defesa entre os trabalhadores que se encontra na base do aumento dos processos de adoecimento psíquico e de sua expressão mais contundente, o suicídio no local de trabalho.”

Em um artigo da Psicóloga, Mestre e Professora Marselle Fernandes, publicado em setembro de 2018, no Sindicato dos Bancários do Ceará[xiii], aponta um diagnóstico semelhante:

“O suicídio de trabalhadores representa o mais elevado nível de sofrimento. De acordo com Christophe Dejours, um dos principais estudiosos sobre a temática suicídio e trabalho, o aumento de casos de suicídios relacionados ao trabalho se deve a fatores como o aumento do individualismo, a competição desmedida, a pressão constante, as avaliações de produtividade e a gestão por metas. Muitas vezes, exclui o fator trabalho da investigação acerca dos motivos do suicídio. Contudo, os modelos de gestão adotados por grande parte das instituições financeiras, favorecem o sentimento de insegurança, medo, autoexigência e a solidão por parte dos trabalhadores. Nesse sentido, o trabalho deixa de ser um elemento coadjuvante e, torna-se protagonista do sofrimento psíquico dos bancários. Essas novas formas de gestão desestabilizam o coletivo de trabalhadores e, com isso, reduzem a possibilidade de construir formas de transformar o cotidiano laboral em um espaço produtor de saúde.”

É bom ressaltar essa frase da pesquisadora: “Essas novas formas de gestão desestabilizam o coletivo de trabalhadores e, com isso, reduzem a possibilidade de construir formas de transformar o cotidiano laboral em um espaço produtor de saúde”. Para isso podemos citar um exemplo do Dr. Marcelo Augusto Finazzi Santos, pesquisador na área de recursos humanos pela Universidade de Brasília (UNB) feito no auditório da Casa dos Bancários em Porto Alegre em 12 de dezembro de 2014 sobre como se manifesta o problema na cabeça de um trabalhador bancário[xiv]:

“Caio começou a sentir que estava sozinho. Cada um dos colegas em seu departamento era um concorrente. Ele não podia comentar uma ideia que teve, alguma solução que pensou para resolver algum problema de rotina, porque podiam roubar sua ideia, levar ao gerente e ganhar prestígio. Ele então passou a sofrer. Cansou de receber trabalho por volta das seis horas, perto do término da sua jornada e ter que ficar mais quatro, cinco, seis horas para finalizar a tarefa: nada podia ficar para o outro dia. Um dia, ao dirigir seu carro para o trabalho, remoendo as relações em frangalhos com colegas, e a sua própria sanidade perdida, Caio pensou em se matar.”

Nossos colegas (ou nós) ao se sentirem dessa forma indica, de certa forma, o quão crítica está a situação do lado de “cá”. Ora, estamos falhando em criar redes de solidariedade nos locais de trabalho, sendo derrotados pelos ataques novos da reestruturação produtiva e dos velhos ataques do capital. A forma desesperada de denunciar a barbárie vivida no trabalho tem sido a individual e autodestrutiva, com suicídio ou sofrimento psíquico. Uma resposta que é incapaz de, por si só, alterar a situação de fato.

Os erros do lado de cá e caminhos para saná-los

A luta contra a ofensiva dos capitalistas, as reformas no Estado que visam retomar taxas mais elevadas de lucro, a luta por melhores salários e condições de trabalho etc. são essenciais, e também dizem de nossa saúde. Mas os coletivos de trabalhadores e entidades sindicais não podem se encerrar nisso. É preciso agir diretamente, enquanto coletivo, em defesa de nossa saúde mental. Esta pode ser uma pauta fundamental inclusive para reforçar as lutas citadas acima. Pois, no fundo, são lutas no mesmo terreno: a luta de classes.

Nesse sentido, a luta contra o adoecimento psíquico e o suicídio relacionado ao trabalho é coletiva. Aliás, quem diz isso é a própria OMS: “além do apoio dos serviços de saúde, pessoas com transtornos mentais precisam de apoio e cuidados sociais”[xv].

E como realizar concretamente esse apoio?  Como (re)criar estratégias coletivas de defesa possíveis no atual quadro da luta de classes?

Algumas entidades sindicais atualmente movem-se em vários sentidos: oferecendo assistência psiquiátrica e psicológica; levantamentos estatísticos de adoecimento; promoção, apoio e divulgação de estudos, seminários, etc. Tudo isso é útil, necessário, urgente, e a entidade que ainda não faz precisa iniciar. Mas será insuficiente se não vier acompanhado de algo que transcenda a entidade sindical, ao próprio sindicalismo, que expresse a prática de uma outra linha de massas ajustada aos interesses concretos e reais, de classe, em sua luta contra o capital.

Isso significa que ao organizar a luta dos trabalhadores com base nas suas formas específicas, concretas, de resistência à exploração, os resultados econômicos sejam medidos levando em conta os efeitos políticos e ideológicos que acentuem a participação efetiva dos trabalhadores como exercício embrionário de poder (aspecto político), bem como, a cooperação e solidariedade entre os trabalhadores e/ou em sentido contrário do caminhar para debaixo das ideias burguesas e da tutela do seu estado (aspecto ideológico). Ou dizendo mais claramente, não nos interessa luta que não tenha como efeito solidariedade, coletividade, sentimento de força e poder nos trabalhadores.

Nessa questão, importante lembrar o que dizia Louis Althusser. Ele reforçava que a luta de classes se desdobra em três aspectos, o econômico, o político e o ideológico[xvi]:

“A prática do movimento operário, mesmo em suas formas de organização utopistas e reformistas, desenvolve-se em três planos, correspondentes aos três “níveis” que constituem a sociedade: o plano econômico, o plano político, o plano ideológico. […] A ação do movimento operário toma, pois, necessariamente a forma de uma tríplice luta: luta econômica, luta política e luta ideológica. (pág. 70) […] a própria natureza do movimento operário, independentemente de qualquer influência da teoria de Marx, engaja-o em uma tríplice luta: luta econômica, luta política, luta ideológica. (pág. 74)”

Tentando colocar para trabalhar esse raciocínio, podemos deduzir, com Althusser que, se a luta se desdobra correspondendo aos três “níveis” da sociedade, os limites econômicos, não são os únicos determinantes no processo:

“[…] toda luta implica intervenção da “consciência” dos homens, toda luta gera um conflito entre convicções, crenças, representações do mundo. Também a luta econômica e a luta política implicam esses conflitos da luta ideológica. […] a luta ideológica abraça o conjunto dos campos de sua luta. […] Não pode haver luta econômica ou política sem que os homens engajem nela suas ideias e, ao mesmo tempo, as suas forças. (pág. 73) […] A orientação geral depende, portanto, da ideologia do movimento operário. É essa ideologia que comanda diretamente a concepção que ele tem de sua luta ideológica e, portanto, a maneira como ele a conduz para transformar a ideologia existente. É essa ideologia que comanda diretamente a concepção que ele tem de sua luta econômica e política, de suas relações mútuas e, por conseguinte, a maneira como conduz essas lutas.” (pág. 75)

Podemos com isso dizer que, os adoecimentos mentais, dentro da dicotomia das novas formas de processo de trabalho/exploração e seu efeito de desagregação dos coletivos de trabalhadores, de um lado, e de outro a ausência de uma luta contra essa desagregação inserida na luta contra a própria exploração, apesar de relacionados, possuem o segundo aspecto como dominante. E nos remete a dizer que, se temos um efeito desagregador, e o lado de cá não responde, não combate e, no mais das vezes, acentua a ideologia dominante na disputa individualista, no egoísmo, acreditamos que isso está contido na longa ausência de uma linha de massas que combata, nas várias instâncias, a ideologia das classes dominantes, no recuo ideológico, na crise ideológica que determina esse recuo.

Partimos da afirmação que, uma crise ideológica, para o movimento operário, se manifesta como recuo sob a ideologia dominante, na perda e subversão de espaços políticos, que a desagregação de coletivos de trabalhadores é a expressão da desagregação de sua política e sua ideologia, espaço ocupado por outras “visões de mundo” que sustentam formas acentuadas de domínio e opressão dos trabalhadores para retirar mais sobretrabalho.

O ataque do outro lado nos desarticula. Mas nosso contra-ataque é ineficaz porque se dá sob os comandos do próprio inimigo, o que nos coloca diante da linha política-ideológica do movimento e sua relação com a resistência espontânea e desarticulada dos trabalhadores.

Nessa crise ideológica, a resistência espontânea, inclusive passa a não ser vista pelas vanguardas que estão saturadas pela ideologia trade-unionista, reformista, portanto afastadas das massas. Afastamento que, importante ressaltar em nossa conjuntura, ao mesmo tempo conformam a base da ocupação de um processo de fasciszação (sic), como diz Poulantzas[xvii]:

“O processo de Fasciszação corresponde a uma crise ideológica da classe operária e a uma crise característica das organizações revolucionárias. […] O início do processo de fascizção corresponde a um pronunciado corte dos partidos comunistas alemão e italiano com a classe operária. Pode-se dizer, suscintamente, que estes partidos estão cortados das massas. A massa operária, em sua massa, não segue a direção que estes partidos, sem nenhuma linha de massa, tentam impor a luta. Estes partidos estão longe de ter capitulado, em sentido rigoroso, face ao fascismo, como quereria fazê-lo crer uma tradição “anticomunista” solidamente estabelecida. […] A ideologia marxista-leninista está profundamente abalada no próprio seio da classe operária: não só não consegue conquistar as grandes massas como é ainda vivamente combatida nos lugares onde tinha conseguido implantar-se. […] são a ideologia burguesa e a ideologia pequeno-burguesa quem, sob formas específicas, invade o vazio deixado pela retirada da ideologia marxista-leninista. A influência da ideologia burguesa sobre a classe operária, nesta situação de crise ideológica, manifesta-se sob a forma clássica do trade-unionismo e do reformismo”. (pág. 154, 155)

Como podemos ver isso, de forma mais concreta, no local de trabalho? Em uma entrevista[xviii], o estudioso Dejours nos deixa um exemplo: “Quando alguém era assediado, beneficiava do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou simplesmente do testemunho dos outros. Agora estão sós perante o assediador – é isso que é particularmente difícil de suportar. O mais difícil em tudo isto não é o fato de ser assediado, mas o fato de viver uma traição – a traição dos outros”. A primeira coisa a se pensar é que devemos fomentar relações de amizade, companheirismo e afetividade nos locais de trabalho, o que não é um mero detalhe, para montar uma rede de sustentação com conversas regulares, empatia, convivência fora do local de trabalho, etc. Mas como espalhar isso? Jogando essa ideia em um panfleto? Ou isso será efeito de uma luta geral, que cerque, se insira, parta desse ambiente de trabalho?

Diante do extremo controle e pressão dos locais de trabalho, é tarefa imediata saber enxergar as brechas e investir nelas. Criar, a partir delas, outras relações possíveis, que tornem suportáveis o cotidiano e teçam laços de um coletivo, único com força e capacidade de lutar contra as causas mais profundas desse sofrimento ao qual estamos nos referindo. Remapear quem se entende como inimigo ou concorrente; fazer nascer força onde havia fraqueza.

Mas isso será sempre um conjunto de palavras ou microações sem muito acúmulo se não houver uma retomada de uma linha de massas por organismos que concentrem a ideologia e a política operária. Até porque esses exemplos de resistência já existem, só não se reproduzem de forma ampliada por serem não-vistos/reprimidos pelos aparelhos de estado, inclusos nisso, os próprios sindicatos e partidos políticos autoproclamados dos trabalhadores, por estarem hoje obnubilados pela ideologia pequeno-burguesa e burguesa.

Eduardo Stotz e José Augusto Pina, mostram que subterraneamente aos aparelhos de estado sindical, os trabalhadores constroem suas formas de resistência[xix]. Quando vistos por suas “vanguardas”, essas formas de luta concretas são um mero ponto de tangência nos objetivos de conformar os trabalhadores ao estado e a “monetização do risco à saúde” nas formas específicas de exploração moderna.

“[…] essas práticas de exploração são inseparáveis das múltiplas formas de resistência, veladas ou abertas, desenvolvidas pelos trabalhadores. […] Guardada as devidas proporções, assim como na experiência italiana, entre nós na atualidade, as ideias mais avançadas no que concerne à relação trabalho-saúde, ainda que em estado prático, emergem da experiência de luta dos trabalhadores de base, e não das cúpulas sindicais dos setores majoritários do sindicalismo no país.”

No mesmo texto, os mesmos autores citam R. J. Penkal que, na sua dissertação: Quando a lógica do capital contagia o movimento sindical: qualidade total e o sindicalismo moderado produtivo nos metalúrgicos da Grande Curitiba, mostra que uma greve contra a PLR e o banco de horas

“[…] teve como principal causa, não a PLR e o banco de horas, mas o ritmo intenso de trabalho. Os trabalhadores utilizaram a greve para ganhar fôlego. […] a pauta de negociação da greve foi apenas uma forma de dar caráter reivindicatório e palpável à direção da empresa.”

E isso absurdamente não foi enxergado pelos sindicalistas por conta de sua cegueira ideológica para constatar que a luta concreta contra o intenso ritmo de trabalho (e por isso, pela saúde mental) é ao mesmo tempo, luta contra o seu processo de trabalho/exploração – algo irreal, imperceptível ao reformismo.

Finalizando, gostaríamos de ressaltar que é na reaproximação com e dos trabalhadores, em ambientes e situações concretas que não só temos um remédio imediato e provisório para nosso sofrimento no/do trabalho. Se isso não possibilita sua absoluta eliminação, ao menos representa sua ressignificação, em um novo espaço coletivo, onde esse sofrimento pode ser pronunciado e trabalhado, por não estarmos mais entre concorrentes, e sim entre camaradas. Mas, também, é a partir e através dessa ação de reaproximação que teremos as sementes de uma nova linha política-ideológica para combater e superar a crise que nos assola e nos enfraquece frente ao inimigo. E assim poder de fato, um dia, tomar nossas saúdes e nossas vidas em nossas mãos.

E quem fala de reaproximação, fala em perseverança, como nos ensina Mao[xx]:

“Todo o trabalho para as massas deve partir das necessidades destas, e não do desejo deste ou daquele indivíduo, ainda que bem-intencionado. Acontece frequentes vezes que, objetivamente, as massas necessitam de certa mudança mas, subjetivamente, não estão ainda conscientes dessa necessidade, não a desejam ou ainda não estão determinadas a realizá-la. Nesse caso devemos esperar pacientemente. Não devemos realizar tal mudança senão quando, em virtude do nosso trabalho, a maioria das massas se tenha tomado consciente dessa necessidade e esteja desejosa e determinada a realizá-la. Doutro modo, isolamo-nos das massas. Enquanto as massas não estão conscientes e desejosas, toda a espécie de trabalho que requer a sua participação resulta em mera formalidade e termina num fracasso. O “devagar se vai ao longe” não traduz uma oposição à rapidez, mas sim ao putschismo. O putschismo é que conduz inevitavelmente ao fracasso. Isso é justo para todos os trabalhos, sobretudo para o trabalho cultural e educativo, transformador da ideologia das massas.”


[i] Empregado no Banco da Amazônia desde dezembro de 2001.

[ii]  Este texto tem como base outro feito para a AEBA, Associação dos Empregados do Banco da Amazônia, onde estou como diretor, que, como diz a sua apresentação, foi “escrito na comoção da notícia de uma colega que abraçou a morte pulando de um hotel ao lado do prédio onde trabalhava”. É uma tentativa de colocar para trabalhar uma visão, científica, portanto, marxista, de fundo, sobre o adoecimento e o sofrimento psíquico dos bancários. Ideias ainda em formação, sujeitas as críticas necessárias para aproximá-las da realidade concreta da luta da classe operária e demais classes trabalhadoras.

[iii] A luta contra o suicídio é coletiva. Encontrado em http://www.aeba.org.br/2018/12/26/a-luta-contra-o-suicidio-e-coletiva/ publicado em 26/12/2018 e acessado em 26/12/2018.

[iv] Adoecimento no trabalho – um debate da militância bancária. Encontrado em: https://passapalavra.info/2018/11/123510/, publicado em 09/11/2018 e acessado em 08/01/2019.

[v] Distúrbios de saúde mental aumentam em todos os países do mundo, alerta relatório. Encontrado em https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/disturbios-de-saude-mental-aumentam-em-todos-os-paises-do-mundo-alerta-relatorio-23146088  publicado em 10/10/2018 e acessado em 26/12/2018.

[vi] Depressão será a doença mental mais incapacitante do mundo até 2020. Encontrado em: https://emais.estadao.com.br/noticias/bem-estar,depressao-sera-a-doenca-mental-mais-incapacitantes-do-mundo-ate-2020,70002542030, publicado em 10/10/2018, acessado em 26/12/2018.

[vii] Crise no emprego eleva em 1,6 milhão o número de consultas psiquiátricas. Acessado em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/11/crise-no-emprego-eleva-em-14-milhao-o-numero-de-consultas-psiquiatricas.shtml, Publicado em 28/11/2018 e acessado em 25/12/2018.

[viii] Adoecimento mental na rotina dos bancários – Situação, que já era grave, ficou pior com a reestruturação em bancos públicos e com a demissão em massa nos bancos privados. Encontrado em: http://spbancarios.com.br/02/2017/adoecimento-mental-na-rotina-bancarios . Publicado em 14/02/2017, acessado em 15/12/2018

[ix] Suicídio: desfecho trágico de bancários que sucumbem às violências do trabalho. Encontrado em : http://www.agebb.com.br/suicidio-desfecho-tragico-de-bancarios-que-sucumbem-as-violencias-do-trabalho/  Publicado em 30/03/2017, acessado em 19/11/2018.

Os dados acima foram levantados por empregados e citados aqui: http://direitofacil.net/reestruturacao-do-bb-teria-gerado-onda-de-suicidios-entre-funcionarios/ , texto publicado em 17/03/2017 e acessado em 19/11/2018. É bom ressaltar que é um levantamento feito por bancários feito em redes sociais, portanto sem um critério científico, mas ao mesmo tempo, se esses números não forem exatos, nos trazem a dimensão do problema em que vivem os trabalhadores do Banco do Brasil.

[x] Aqui trataremos do adoecimento mental dos trabalhadores decorrente sua atividade, o trabalho, de forma geral. Caberia depois nos debruçarmos nós sobre a especificidade do adoecimento e sofrimento psíquico de trabalhadores que também são militantes. Alguns textos recentes têm chamado atenção para esse aspecto. Um exemplo é esse texto da UJC: https://ujc.org.br/adoecimento-mental-umdebate-necessario/ , que possui uma parte abordando adoecimento e militância. No próprio texto já citado, do PassaPalavra, encontramos “O alto nível de adoecimento mental é comum hoje mesmo entre os militantes, me sinto inclusive desconfortável em falar sobre isso aqui, já que esse é um tema tabu nas organizações e que envolve questões muito intimas, ainda assim o assunto é pouco debatido por não ter gravidade. Grande quantidade de uso medicamentos, toda sorte de complicações destrutivas para as relações pessoais, surtos, internações e até mesmo tentativas de suicídio, são situações que presencio e tenho tido que lidar nos últimos anos, tanto com colegas de trabalho como com camaradas militantes dentro e fora do meio sindical. Presenciei situações extremas dessas desde com estudantes secundaristas e até com idosos trabalhadores bancários“. A nosso ver, nossa intervenção aqui pode trazer contribuições, mas talvez mais indiretas e gerais.

[xi] Vários deles, sabemos, em profunda crise hoje, como expressão de uma crise na própria ideologia que os articula como uma política e uma teoria própria dos trabalhadores, que afastou e afasta os interesses da classe operária do seu centro, que por ora não nos aprofundaremos.

[xii] Seguindo, de novo, Engels, questionamo-nos se devemos mesmo continuar a chamar de suicídio tais situações: “cabe-me demonstrar que na Inglaterra a sociedade comete, a cada dia e a cada hora, o que a imprensa operária designa, a justo título, como assassinato social; que ela pôs os operários numa situação tal que não podem conservar a saúde nem viver muito tempo; que ela, pouco a pouco, debilita a vida desses operários, levando-os ao túmulo prematuramente.”

[xiii] Trabalho bancário, adoecimento e suicídio. Encontrado em: http://www.bancariosce.org.br/noticias_detalhes.php?cod_noticia=21654&cod_secao=1 . Última atualização em 18/09/2018, acessado em 20/11/2018.

[xiv] Pesquisador e bancário diz que é preciso falar sobre o suicídio para prevenção. Encontrado em: http://bancariosce.org.br/jornal_detalhes.php?cod_noticia=23088&cod_jornal=3016&cod_jornal_secao=2, Publicado em 15/12/2014 e acessado em 26/12/2018.

[xv] OPAS Brasil – Folha Informativa – Transtornos Mentais. Encontrado em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5652:folha-informativa-transtornos-mentais&Itemid=839, Atualizada em abril de 2018, acessado em 26/12/2018.

[xvi] ALTHUSSER, Louis, em “Teoria, Prática Teórica e Formação Teórica. Ideologia e Luta Ideológica” do livro “Teoria Marxista e Análise Concreta, Textos de Louis Althusser e Etienne Balibar organizados por Thiago Barison, Editora Expressão Popular, 1ª Edição, São Paulo-Brasil, 2017

[xvii] POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura. Editora Martins Fontes. 1ª edição brasileira, agosto de 1978.

[xviii] https://www.publico.pt/2010/02/01/sociedade/noticia/um-suicidio-no-trabalho-e-uma-mensagem-brutal-1420732

[xix] STOTZ, Eduardo Navarro; PINA, José Augusto. Experiência operária e ciência na luta pela saúde e a emancipação social. Encontrado em: http://www.scielo.br/pdf/rbso/v42/2317-6369-rbso-e12.pdf, acessado em 30/12/2018

[xx] TSE-TUNG, Mao. A frente única no trabalho cultural. Encontrado em:  https://www.marxists.org/portugues/mao/1944/10/30.htm, acessado em 30/12/2018.

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1 comentário em “Luta de classes, crise ideológica e saúde mental dos trabalhadores”

  1. Bom texto. E interessante perceber que o tema da saúde mental tem sido elaborado por trabalhadores bancários. Milito com um amigo do Banco do Brasil que tem escrito sobre o assunto, vou compartilhar com ele.
    Ah! E parabéns a vocês da página. Diferenças de posição sempre surgirão – é natural – mas tenho achado os artigos de muita qualidade, assim como a arte também.

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