Os biólogos dialéticos: genética e ideologia

Por Bekah Ward, via International Socialist Review, traduzido por Ramon Frias

Resenha do livro “Não em Nossos Genes: Ideologia, Biologia e Natureza Humana”, por Richard Lewontin, Steven Rose e Leon Kamin. Lewontin também é conhecido por sua obra “O biólogo dialético“, em parceria com Richard Levins.


No Início desse ano, Charles Murray, um dos autores do infame “Bell Curve” [A Curva Normal] foi confrontado com um vívido protesto durante um discurso que deu na Universidade de Middlebury. Ele estava lá divulgando seu novo livro, “Desmoronando: O Estado da América Branca, 1960–2010“. Neste, ele argumenta que tem havido uma desintegração ética e intelectual da classe trabalhadora branca desde os anos 60. Ele alega que isso só piorará porque pessoas pouco inteligentes e antiéticas tendem a terem filhos entre si, passando adiante seus traços. O racismo abjeto de Murray dos anos 90, está agora complementado por seu obsceno elitismo. Middlebury estava certa em protestar; essas ideias devem ser confrontadas. Embora haja muito debate no interior da esquerda sobre como melhor opor-se à intolerância, é um alívio que a Haymarket Books está republicando uma arma ideológica indispensável nessa luta: “Não em Nossos Genes: Ideologia, Biologia e Natureza Humana“, por Richard Lewontin, Steven Rose, and Leon J Kamin.

No primeiro capítulo, os autores expõem como seu momento político, meados dos anos 80, foi um momento chave para os cientistas desempenharem um papel no debate societário. As revoltas turbulentas contra a opressão que caracterizaram os anos 70 estavam dando lugar ao retalhamento neoliberal da rede de seguridade social. O determinismo biológico, ou a ideia de que características inatas, ou biologicamente conectadas dos homens determinam seus comportamentos, seriam ideologicamente bem úteis para essa nova economia. Os deterministas biológicos argumentam que tanto a diferença quanto a desigualdade derivam dos genes (geralmente) e justificam essa desigualdade ao concluir ela sendo “natural’. No entanto, outra geração de biólogos tomaram uma posição firme contra essa corrente. Entre eles, “Mismeasure of Man” [Desmesura do Homem] de Stephen Jay Gould e o Not in Our Genes de Lewontin, Rose e Kamin foram antídotos incrivelmente importantes.

Os autores citam um artigo de 1969 de Arthur Jensen, que argumentava que diferenças de QI observados entre pessoas negras e brancas eram primordialmente genéticas em sua origem. Jensen chegou à conclusão lógica de seu trabalho: que o ensino superior era desperdiçado com os negros, os quais deveriam ser providos de mais educação em habilidades comerciais, condizendo com seus dons naturais. O que ficou conhecido como “Jensenismo” foi a pseudo-teoria adotada por nada menos que o Presidente Richard Nixon. Quando cientistas, encobertos num manto de autoridade objetiva, dizem aos políticos o que já queriam ouvir, política nasce. Este e outros exemplos são usados pelos autores para demonstrar a utilidade política de argumentos deterministas biológicos.

Eles são cuidadosos ao apontar que, no entanto, os problemas com o determinismo biológico não são unicamente encontrados nos efeitos. Voltando ao nascimento da ciência moderna, nos primórdios do capitalismo em desenvolvimento, eles notam a contradição inerente em nossa economia política corrente. O Feudalismo, com sua autoridade assentada na igreja, foi destituído pelos apelos da burguesia aos trabalhadores de que a igualdade poderia e deveria existir. Claro que a burguesia queria mesmo era a liberdade para fazer lucros, não a liberdade da humanidade em geral. Logo, uma vez no poder, a desigualdade permaneceu e esta precisava de uma ideologia que explicasse sua continuação. Que entrem os novos padres: Cientistas, e um referencial filosófico útil – o reducionismo.

O reducionismo, aplicado ao comportamento humano, foi importante para uma sociedade capitalista emergente como um meio eficaz de controle social sobre os trabalhadores. Nesse caso, um fenômeno social e histórico – um local de trabalho eficiente – é reduzido a um atributo biológico inato de trabalhadores individuais, como uma máquina pode ser reduzida a suas partes menores. Como ciência expandida, essa premissa poderia ser feita mais precisamente; esse gene específico produz esse traço específico que produz essa característica específica da sociedade. Notem as setas causais aqui; o componente mais reduzido determina o fenômeno. Outro componente do método reducionista é ver fenômenos societários como um agregado de comportamentos individuais. O determinismo biológico diz que por causa desses genes, humanos exibem agressão e isso causa guerra. Logo, guerra é parte da natureza humana!

No início do livro, os autores enfrentam uma das maiores premissas dos argumentos racistas sobre inteligência: quanto da inteligência humana é hereditário? O jeito típico que as pessoas estudam essa questão é testando o QI (quociente de inteligência) de pessoas da mesma família contra pessoas fora desta. Existe enorme controvérsia sobre a métrica em si. No entanto, eles escolheram abordar um conjunto diferente de erros metodológicos na maior parte desses estudos.

Numa tentativa de separar “natureza e cultura” (“nature and nurture”) estudos de gêmeos separados no nascimento comparados com aqueles criados juntos são frequentemente conduzidos. Daí, o QI de uma criança em particular pode ser comparado com o pai biológico e o adotivo para produzir um número – uma correlação quantificada interpretada como “herdabilidade”. No entanto, esses pais adotivos não são amostrações aleatórias. Pais adotivos são cuidadosamente peneirados e tendem a ser mais abastados e mais educados. Como um grupo, todos eles tendem a ter um QI muito similar (uma das correlações com QI mais fortes é o status socioeconômico). Por conta da maneira que essas estatísticas são rodadas, se você não tiver uma variação decente numa amostra, você nunca encontrará uma correlação com a variação na outra (QI da criança). Condenados desde o princípio, todos esses estudos mostram que QI é hereditário – apesar deles discordarem por um fator de quatro sobre quanta influência o DNA possui.

Tendo despachado os estudos dizendo que a inteligência é primordialmente herdada, os autores perseguem outro problema com o uso de dados sobre QI usados para justificar o racismo: a própria definição de raça. Eles apontam que não há base biológica para uma linha divisória entre uma “raça” e outra, embora eles sejam cuidadosos em lembrar o leitor que mesmo que “raça” seja uma ficção, o racismo é um fato social. O argumento advém do exame de versões altamente variáveis de um gene, ou alelos. Numa tentativa de encontrar uma base genética para a raça, a frequência de diferentes alelos dentre as “raças” foi determinada. Porém, mesmo os genes que tinham as maiores diferenças de frequência entre populações diferentes ainda tiveram sobreposição. E muitos genes possuem mais variabilidade dentro de uma “raça” que entre grupos. Assim, não pode haver diferença de QI entre raças – a questão toda está errada.

O próximo argumento que os autores enfrentam gira em torno dos traços “inatos” exibidos por sexos diferentes (eles fazem uma distinção entre sexo e gênero). Ao observar as diferenças entre os sexos no nascimento, eles mostram o quão escassas são as evidências para as grandes afirmações feitas sobre humanos em sua vida posterior. No entanto, ao invés de negar as diferenças, eles questionam as afirmações causais: genes fazem as garotas piores em matemática etc. Uma das explicações populares na época para a dominação masculina (que ainda perdura) era que o hormônio testosterona causava agressão e a força que estava associada a isso. Eles lembram o leitor que todos os sexos possuem um conjunto de genes – estrogênio, testosterona e progesterona – que são encontrados em diferentes níveis em momentos diferentes na vida de todo indivíduo. Eles, também, confrontam o uso da analogia a animais não-humanos para justificar o patriarcado contemporâneo. Pelo exame de outras espécies, cientistas são capazes de projetar padrões humanos em lugares em que isso não é preciso. Estudos mais recentes, conduzidos durante o ponto alto do movimento de liberação das mulheres nos anos 70, descobriram interpretações completamente diferentes de alguns padrões de acasalamento. As circunstâncias prevalecentes nas quais a pesquisa é conduzida apontam e modelam nossos horizontes intelectuais.

Em seguida, os autores examinam a patologização do comportamento “indisciplinado”. Há uma longa história disso; da Rússia Soviética a rebelião de Watts, cientistas tem tentado localizar e, então, “consertar” a base biológica da dissidência. Eles notam o dramático aumento no diagnóstico do que é hoje conhecido como TDAH. Essa forma de determinismo biológico carrega a premissa de que se você não pode consertar os genes causando o comportamento (porque isso é considerado eugenia e isso não é mais considerado aceitável), então você conserta a bioquímica causada por esses “genes ruins”. Eles apontam que essas iniciativas são profundamente lucrativas para a indústria farmacêutica e encontram sérias falhas em muitos dos estudos que são usados para dizer que essas drogas são ao menos eficazes. Eles continuam com isso atacando algumas das alegações de herdabilidade entre outros transtornos mentais, especialmente a esquizofrenia.

Nessa seção, eles contrastam uma visão determinista biológica com aquela dos deterministas culturais. Deterministas culturais, como o psicólogo B. F. Skinner, postulam que o comportamento é unicamente ou primordialmente determinado por condicionamento social. Skinner, como se sabe, advogou o condicionamento operante, ou mudança de comportamento baseada no reforço positivo ou negativo. Ele descreveu todo comportamento como sendo causado por uma série de diferentes reforços para um ou outro comportamento. Tanto em prisões quanto em escolas, uma mistura de determinismos culturais e biológicos estão na base de sistemas de controle social. E embora essas duas formas de determinismo pareçam opostas, elas partilham de uma premissa fundamental: ambas são essencialmente “culpabilizadoras da vítima”, localizando o problema dentro do indivíduo, que deve ser talhado para se encaixar na ordem social que ele ou ela tão evidentemente não corresponde no presente.

Os autores também abordam a sociobiologia, ou o que foi transformado mais recentemente em psicologia evolutiva – que também representa uma forma de determinismo genético ou biológico. Os autores miram, particularmente, em E. O. Wilson, autor do livro de 1975 “Sociobiologia: Uma nova síntese“. Wilson usou comportamento animal e de muita especulação para identificar os traços comportamentais humanos que, ele alega, permitiram maior sucesso reprodutivo e, portanto, foram mantidos na população. Wilson argumentou, escrevem os autores, “que territorialidade, tribalismo e xenofobia são de fato parte da constituição genética humana, tendo sido erigidos nesta por milhões de anos de evolução”. Os autores citam a afirmação de Wilson de que “mesmo nas mais livres e mais igualitárias das sociedades futuras, homens provavelmente continuarão a desempenhar um papel desproporcional na vida política, nos negócios e na ciência”.

Os autores identificam vários erros fatais na sociobiologia. Primeiramente, a sociobiologia faz escolhas arbitrárias e não-ditas sobre o tamanho da unidade de seleção. Se o queixo humano moderno não é selecionado nem a favor nem contra, mas é meramente um produto de outras pressões seletivas, o quão mais difícil seria, então, identificar um comportamento isolado ou agrupamentos de comportamentos que poderiam ser independentemente sujeitos a seleção natural.

Em segundo lugar, eles fazem de conceitos modernos e relações sociais uma coisa, ou seja, reificam-nos, e em seguida, projetam-nos de volta ao passado. A tendência a propriedade privada de horda, por exemplo, não pode ter sido selecionada a favor ou contra em sociedades pré-classe porque tal tendência, e tal forma de propriedade, não existia. Sociobiólogos também usam métodos circulares de argumentação: pegando metáforas derivadas de relações sociais humanas, aplicando a outras espécies e, daí, usando essa observação para “provar” sua naturalidade à vida humana. Por exemplo, eles vêem sociedades de formigas, chamam-nas de sociedades escravocratas, e depois dizem que escravidão é uma parte da natureza. Por fim, eles tendem a agrupar comportamentos, de forma a confundir ao invés de elucidar a questão. Agressão pode ser qualquer coisa desde uma pessoa discutindo sobre uma vaga de estacionamento até um soldado profundamente relutante, que só queria pagar sua universidade, servindo no Iraque.

Contra todas as críticas ao reducionismo e a biologia determinista, os autores apresentam uma visão diferente, uma que não responde a questão “natureza x cultura” (“nurture versus nature“), mas que rejeita essa dicotomia como sendo inútil para o entendimento do mundo. Eles lembram o leitor que organismos são tanto um produto das forças do ambiente como também o modelam de volta. O exemplo mais simples é encontrado nas bactérias; quando elas decompõem os carboidratos eles podem fazer ácido, por exemplo, queijo, mas eventualmente o ambiente torna-se ácido demais e daí elas nadam para outro lugar. Então, seria a natureza ou a cultura que teria causado o comportamento de nadar? Agora traduzindo esse preceito para humanos: desenvolvimento – e certamente o desenvolvimento psíquico humano – deve ser visto como o co-desenvolvimento do organismo e seu ambiente, pois estados mentais têm um efeito no mundo externo através da ação humana consciente.

Como os autores explicam “natureza x cultura”:

“Nós rejeitamos essa dicotomia. Nós afirmamos que não podemos pensar em nenhum comportamento social humano que seja erigido em nossos genes de modo que não possa ser modificado e moldado por condicionamento social. Mesmo atribuições biológicas como comer, dormir e sexo são enormemente modificados pelo controle consciente e condicionamento social. O impulso sexual, em particular, pode ser abolido, transformado, ou aumentado por eventos da historia de vida. Ainda sim, ao mesmo tempo, negamos que seres humanos sejam nascidos tabulae rasae [“folhas em branco”], o que eles evidentemente não são, e que seres humanos individuais sejam simples espelhos das circunstâncias sociais. Se esse fosse o caso, não poderia haver evolução social.”

No lugar de uma abordagem reducionista, determinista para compreender a sociedade humana, nós devemos tomar uma abordagem integrada e dialética que inclua tanto a nossa incrível plasticidade biologicamente recebida, e nossa própria capacidade de remodelar profundamente o ambiente ao nosso redor.

O debate sobre determinismo biológico está longe do fim. Em Maio, saiu um artigo na prestigiada revista “Nature Genetics” afirmando haver identificado dezoito áreas no genoma humano que estão “influenciando a inteligência humana”. Mas, bem como seus antecessores, eles tiveram sérios problemas metodológicos. Estou ansioso por uma nova geração de pessoas lendo “Not In Our Genes” para que possamos juntos montar uma poderosa resposta.

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2 comentários em “Os biólogos dialéticos: genética e ideologia”

  1. Pelo amor de Deus, se vocês publicarem Not in Our Genes ou o The Dialectical Biologist em português eu compro uns 10 ainda no catarse para ter um para ler, um para manter guardado e oito para dar de presente.

    Eu não sei se já foram publicados só não encontrei nada sobre, ou se nunca foram publicados no Brasil. Amo vocês e os livros de vocês, obrigado!

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