(Anti)Reforma psiquiátrica e a anti-ideologia.

Por Thiago Marques Leão [1] e Carine Sayuri Goto [2]

Em 07/02/2019, a Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (CGMAD) do Ministério da Saúde publicou a Nota Técnica n.º 11/2019 (NT 11/2019), com esclarecimentos sobre mudanças na Política Nacional de Saúde Mental.A NT 11/2019 foi recebida pelos movimentos da Reforma Psiquiátrica como um grande ataque às realizações e à institucionalização da chamada luta antimanicomial como política pública oficial do setor, uma espécie de manifesto de Anti-Reforma, um verdadeiro “ataque a símbolos e ganhos da luta antimanicomial brasileira”, como acertadamente escreveu Dunker. Impressionou, ao ler a Nota, como a linguagem deste ataque à Reforma adotou os mesmos princípios e diretrizes construídos pela própria Reforma Psiquiátrica ao longo dos anos: integralidade da assistência, reconhecimento da complexidade do adoecimento mental, eficiência e humanização da assistência, ampliação do acesso, adoção de projetos terapêuticos singulares que considerem o contexto cotidiano dos usuários e assim por diante. Mas com um twist perverso: o ressurgimento do Hospital Psiquiátrico (HP) e da internação como estratégias centrais para garantir estes princípios e diretrizes assistenciais. Ainda que seja verdade o que disse Saramago – “as palavras são umas desgraçadas, fazemos com elas tudo o que queremos” – chamou a atenção como estes princípios se mostraram tão intercambiáveis entre projetos eticamente tão distintos.


Seguiram-se à NT 11/2019 diversas manifestações de militantes, professores e profissionais em defesa da Reforma. O psiquiatra Paulo Amarante – um dos mais influentes teóricos brasileiros da Reforma (LEÃO, 2018) [i] – lançou vídeo em que critica a NT 11/2019 por contradizer as políticas públicas do setor, contestando seu caráter técnico. Ele parece estabelecer uma disputa entre a Reforma e a AntiReforma por quem seria afinal mais técnico, e segue comparando dados e números, avaliações de eficácia, gastos orçamentários, indicações diagnósticas, a melhor técnica terapêutica e assim por diante, mesmo quando trata de uma dos pontos mais polêmicos da NT 11/2019: a Eletroconvulsoterapia (ECT), atualização da técnica-punição de eletrochoques – aquela que no filme Um Estranho no Ninho era “the weapon of choice” da enfermeira Ratched para punir McMurphy, personagem de Jack Nicholson [ii].

A Nota-resposta da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), por exemplo, não se afastou muito do vídeo de Amarante, defendendo modelos de atenção, sua aceitação internacional e eficácia em oposição à ECT e à psicocirurgia – modernização da lobotomia que em Um Estranho no Ninho finalmente reduz McMurphy a um estado vegetativo – e seu uso mais (in)adequado. Também questiona a natureza técnica e denuncia o caráter ideológico da NT. Mesmo quando a Nota-resposta reconhece fatores sociais ligados ao adoecimento, ou a necessidade de “mudanças estruturais em uma sociedade cada vez mais desigual e intolerante”, ela o faz de forma genérica, isto é, enquanto a disputa por modelos terapêuticos costura toda a nota da ABRASCO com proposições, explanações técnicas, evidências e assim por diante; as tais mudanças sociais necessárias são citadas abstrata e pontualmente. Como estas, outras manifestações disputam com a NT 11/2019 quem seria mais científico e menos ideológico, elencando as melhores técnicas terapêuticas, ou quais os efeitos iatrogênicos (danos à saúde resultantes do ato médico) desta ou daquela estratégia, falam sobre número de leitos, número de serviços abertos, gastos orçamentários e assim por diante. Como diz Badiou: “Se o número (sondagens, contas, índices de audiência, orçamentos, créditos, Bolsa em alta, tiragens, salário dos executivos, stock options e assim por diante) é o fetiche dos tempos atuais, é porque onde o real vem a falhar o número cego aí está” (BADIOU, 2007, p. 50) [iii].

Neste sentido, os atores da Reforma acabaram mimetizando reativamente o discurso da Associação Brasileira de Psiquiatria, que por 25 anos (1990-2015) foi oposição às políticas implementadas pela Reforma, acusando-as de ideológicas, não-científicas e responsáveis pelo agravamento dos quadros de adoecimento mental. Neste sentido, quando confrontado com as críticas à Anti-Reforma, também o Ministro da Saúde se refugiou no discurso técnico-científico e anti-ideológico para justificar a ECT e a compra de aparelhos: “Não é função do Ministério da Saúde vetar, nem ideologizar essas discussões. (…) Se existe essa técnica e ela tem indicações [do Conselho Federal de Medicina], não posso proibir. Há procedimentos que chocam muito mais se eu começar a ideologizar a história”. E nesta gramática tecnicista, que os movimentos pela Reforma resolveram também adotar, finaliza o Ministro: “Mesmo que seja uma nota dele [da CGMAD], ciência se entende no campo da ciência. Eu não vejo como condições passíveis de serem censuradas”. À primeira vista, a fala do Ministro soa alinhada aos princípios do SUS e demandas de ampliação do acesso e maior investimento: “Quando se trata de oferta de tratamento efetivo aos pacientes com transtornos mentais, há que se buscar oferecer no SUS a disponibilização do melhor aparato terapêutico para a população”. Esta fala não parece tão distante do discurso do campo da saúde mental. Assim, lemos na mesma matéria da Folha de SP: “o estímulo à compra de aparelho preocupa não pela eficácia ou não em alguns casos, mas devido ao risco de uso sem controle. ‘Uma vez que o SUS já dispõe disso, isso levanta suspeita sobre a quem interessa essas compras”, afirma a psiquiatra Rosana Onocko-Campos, professora da UNICAMP e uma das principais referências teóricas e de avaliação das políticas públicas do setor.

Mas não nos parece que seja no plano técnico-científico, mas no plano político, ético e ideológico que a disputa precisa se dar. Neste sentido, poderíamos discutir à exaustão qual é a melhor técnica assistencial, ou forma de aplicá-la. Mas nos parece central reconhecer que estão colocadas aí diferentes éticas de ação, diferentes projetos políticos, formações sociais e disputas ideológicas. Precisamos nos perguntar como o discurso da Reforma tornou-se tão inofensivo ao establishment, ao ponto de convir propostas tão antagônicas do ponto de vista político, ético e ideológico. E por que os atores da Reforma Psiquiátrica parecem incapazes de pensar além dos limites do discurso técnico e anti-ideológico?

Em sua constituição inicial, a Reforma teve clara influência revolucionária do movimento da Psiquiatria Democrática italiana de Franco Basaglia, e de sua leitura marxista da sociedade. Em diversas obras, Basaglia [iv] se referia ao adoecimento mental como manifestação individual das insustentáveis contradições da exploração capitalista e a loucura como a denúncia destas contradições estruturais da sociedade de classes. A resposta às denúncias viria na forma de instituições da violência como os manicômios (e os presídios, fábricas, escolas e assim por diante), onde a Psiquiatria exerceria o mandato de violência outorgado pela sociedade (que não poderia exercê-la diretamente) para isolar e dissimular, sob o véu da doença mental, as contradições do mundo capitalista e a naturalização da exploração da classe operária. Citando Sartre, dizia Basaglia (2010, p. 69): “‘para lutar contra a fome é preciso mudar o sistema político e econômico’, no nosso campo, para lutar contra os resultados de uma ciência ideológica, é preciso também lutar para mudar o sistema que a sustenta”.

Este posicionamento político, contudo, não prevaleceu no campo da saúde mental brasileiro. Basaglia morreu em agosto de 1980, e o bloco que assumiu a direção do movimento italiano lhe impôs uma inflexão administrativa preocupada com a criação e prestação de serviços assistenciais. Franco Rotelli é o grande nome desta nova direção e a principal influência da Reforma brasileira desde então, com idéias difundidas principalmente pela obra do psiquiatra Paulo Amarante. A ascensão de Rotelli no cenário internacional coincidiu com o período pós-queda do Muro de Berlim, com o fim das esperanças revolucionárias de transformação estrutural, a hegemonização ideológica neoliberal, a ascensão da tecnocracia e da virtualização da política como “a arte da administração competente, ou seja, a política sem política” (Žižek, 2003, p. 25)[v]. No Brasil, o pragmatismo administrativo ressoou entre os movimentos pela Reforma, que condicionaram as demandas sociais à responsabilidade fiscal, e firmaram parcerias com atores do capitalismo internacional (Banco Mundial, Organização Pan-Americana de saúde e assim por diante) para formulação e financiamento de políticas públicas (FLEURY, 1994; RIZZOTTO 2012; COSTA-ROSA, 2013; IANNI, 2014) [vi].

Desde sua constituição, a Reforma preocupa-se com a transformação das relações entre a loucura, a psiquiatria e a sociedade.  Mas se para Basaglia estas relações eram determinadas pela (violência estrutural) da sociedade capitalista e só a revolução social poderia transformá-las realmente; sob inspiração rotelliana, a Reforma apostou todas as suas fichas na transformação técnico-assistencial. Assim, nascidos com inspirações revolucionárias, os movimentos pela Reforma Psiquiátrica se consolidaram como movimentos técnico-emancipatórios, “ou seja, pretendem cumprir uma agenda emancipatória a partir da assistência. Colocam em segundo plano a ação política, reforçando o monopólio do saber técnico e aspirando a certa objetividade científica e pretensamente não-ideológica (porque técnica)” (LEÃO, 2018, p. 184).

Mas, em um sentido tradicional, tanto o discurso técnico da Psiquiatria (dita) hegemônica, quanto o discurso técnico da Reforma, são eminentemente ideológicos, na medida em que “escondem a verdadeira natureza da sociedade” sob um saber-totalidade, e isto “não diz respeito absolutamente ao caráter de seus autores, mas ao papel objetivo que aqueles atos assumem para sociedade” (HORKHEIMER, 2015, p. 10-11) [vii].  Em uma “sociedade ameaçada pelas tensões a ela imanentes, crescem as energias orientadas para a salvaguarda da ideologia e são afinal redobrados os meios de preservá-la pela força” (idem). Assim, a maneira como se expressa a defesa de um discurso técnico-psiquiátrico anti-ideológico é Ideologia em seu estado puro, buscando dissimular e remediar as contradições imanentes à sociedade contemporânea, ressuscitando mecanismos anacrônicos de violência como os manicômios, ou formas mais sutis do discurso técnico-científico na tentativa de conter a acelerada dissolução das formas sociais da modernidade tradicional, sobre as quais se alicerçaram tanto o HP quanto a Reforma Psiquiátrica. A Psiquiatria asilar que fundamenta a NT 11/2019 e a Reforma antimanicomial passaram a desempenhar um mesmo papel ideológico de dissimulação das contradições sociais imanentes ao Capitalismo contemporâneo, ainda que suas motivações éticas possam ser radicalmente distintas. É isso que deduzimos das Notas e manifestações que competem pelo status de não-ideológicas e pela titularidade do discurso técnico. Com a incessante repetição de que as questões de saúde mental são e devem ser técnicas e anti-ideológicas, os dois polos deste cabo-de-força­ contribuem para a falsa noção de que nada pode ou deve ser disputado no plano político (da disputa de poder), no plano ideológico ou de transformação da sociedade, cujas contradições são denunciadas pelo adoecimento psíquico. A Reforma insiste em falar sobre a utopia de uma sociedade sem manicômios o que significou, na prática, para usar as palavras de Basaglia (2010, p. 226), “propor e aceitar um discurso puramente ideológico no qual a utopia, a hipótese, em vez de servir para transformar a realidade, é por esta determinada e neutralizada”.

A ideologia técnico-científica promove uma desautorização da política, passando um cheque em branco que dispensa debates e consensos democráticos, sujeito unicamente às categorias e critérios de aprovação técnico-científico e, portanto, eliminando a influência de mecanismos democraticamente legítimos de controle, fiscalização e participação social: uma espécie de “auto-ordenação sem mediações” (BECK, 2010, p. 309-10) [viii]. Mesmo o Poder Judiciário, quando instando a decidir sobre questões ligadas à clínica “acaba tendo de recorrer justamente a normas e fatos que foram medicinalmente produzidos e controlados e que, em última instância, podem ser julgados apenas por médicos e por mais ninguém” (idem, p. 310). Neste contexto podemos pensar a supracitada fala do Ministro da Saúde, “ciência se entende no campo da ciência. Eu não vejo como condições passíveis de serem censuradas”. De fato, a ideologia técnico-científica (compartilhada pela Reforma e pela Anti-Reforma) retira o debate do campo democrático e anula sua potência política. Este é o cheque em branco passado pela Reforma que a Psiquiatria hegemônica vem, agora, cobrar.

Dialogando com Lacan (1992, p. 32-3) [ix], o Discurso da Ciência ingressa no mecanismo de dissolução e individualização das formas sócio-políticas e dos referenciais de significação sociossimbólicos moderno-tradicionais, e esvazia o Discurso do Mestre como lugar organizador do Laço Social, substituído por uma nova “tirania do saber” (o saber científico). “Se há um saber que não se sabe, como já disse, ele é instituído no nível do S2, ou seja, aquele que chamo de outro significante. Esse outro significante não está sozinho. O ventre do Outro, do grande Outro, está repleto deles. Esse ventre é aquele que dá, como um cavalo de Tróia monstruoso, as bases de uma saber-totalidade” (idem, p. 33), que ora assume a forma da ideologia anti-ideológica do saber técnico-científico.

Sabemos muito bem desta opção ideológica que orienta a Reforma – seja por razões estratégicas ou por miopia epistemológica – e sentimos, sem admitir, o tiro-no-pé de “considerar que hoje, numa sociedade em transformação, uma organização de saúde psiquiátrica seja um mundo fechado que pode continuar reportando-se apenas à ideologia técnico-científica de quem está incubido de geri-la” (BASAGLIA, 2010, p. 226).  O discurso técnico-emancipatório da Reforma foi (e continua sendo) uma peça fundamental para a consolidar o fenômeno da Medicalização que ela combate, e da solução psiquiátrico-farmacêutica dos riscos sociais, com hegemonização do que nós chamamos de Psicocultura, em que o discurso psiquiátrico e psicopatológico assumem lugar de medium de significação da experiência subjetiva em sociedade. Junto com a Psiquiatria hegemônica, a Reforma contribui para dissimular “uma realidade que não pode revelar suas contradições porque não as quer transformar, traduz-se na ideologia da transformação, realizável enquanto usada como instrumento de domínio” (idem). Sabemos muito bem dos interesses e forças ocultos por trás da ideologia técnico-científica, mas ainda assim não renunciamos ao fetiche de que somos indivíduos autárquicos em relação às forças sociais dominantes. Somos fetichistas na prática, não na teoria, como diz Žižek (1996) [x]. Sabemos disto, mas a Reforma segue ignorando a realidade social e disputando com a Psiquiatria hegemônica o lugar de profetas da ideologia técnico-científica e anti-ideológica.


[i] Vide LEÃO, Thiago Marques. Loucura, psiquiatria e sociedade: o campo da saúde mental coletiva e o processo de individualização no Brasil. 325 pp. [Tese de Doutorado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, 2018.

[ii] “Um estranho no ninho”. Fantasy Films Productions. Direção de Milos Forman. EUA, 1975 (Brasil, 1976).

[iii] BADIOU, Alain. O Século. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2007.

[iv] BASAGLIA, Franco. El hombre en la picota. In BASAGLIA, Franco et al. Psiquiatria, Antipsiquiatria y Orden Manicomial. Barcelona: Barral Editores, pp. 155-84, 1975./ BASAGLIA, Franco. Rehabilitación y control social. In BASAGLIA, Franco et al. Psiquiatria, Antipsiquiatria y Orden Manicomial. Barcelona: Barral Editores, pp. 185-96, 1975./ BASAGLIA, Franco. A psiquiatria alternativa: Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo: Brasil Debates, 1979./ BASAGLIA, Franco. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

[v] ŽIŽEK, Slavoj. Bem-Vindo ao Deserto do Real! São Paulo: Boitempo, 2003.

[vi] FLEURY, Sonia. Estado sem Cidadãos: Seguridade Social na América Latina. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994./ RIZZOTTO, Maria Lucia Frizon. Capitalismo e saúde no Brasil nos anos 90: as propostas do Banco Mundial e o desmonte do SUS. São Paulo: Hucitec, 2012./ COSTA-ROSA, Abílio. Atenção Psicossocial além da Reforma Psiquiátrica: Contribuições a uma Clínica Crítica dos processos de subjetivação na Saúde Coletiva. São Paulo: UNESP, 2013./ IANNI, Octavio. A era do globalismo. 12 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

[vii] HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica I. São Paulo: Perspectiva, 2015.

[viii] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: Rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010

[ix] LACAN, Jacques. O Seminário livro 17 : o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

[x] ŽIŽEK, Slavoj. Como Marx Inventou o Sintoma In.      . (org.) Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, pp. 297-331, 1996.

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