David Harvey, Michael Roberts, Michael Heinrich e o Debate da Teoria das Crises

Por Sam Williams, via A Critique of Crisis Theory traduzido por Augusto Ribeiro Silva

Recentemente David Harvey, o conhecido escritor de economia marxista, criticou a visão do blogueiro de economia marxista Michael Roberts sobre a teoria das crises. De acordo com Harvey, Roberts teria uma teoria das crises “monocausal”. A objeção de Harvey é à ênfase de Roberts na teoria de Marx da tendência de queda da taxa de lucro [FRP ou Falling Rate of Profit, em inglês] como a causa subjacente das crises capitalistas.

Harvey vai além de simplesmente criticar a teoria FRP-centrada de Roberts. Ele diz questionar a própria existência de uma tendência à queda da taxa de lucro. Ele indica concordar com a visão do marxista alemão Michael Heinrich sobre a invalidez da teoria da tendência de queda da taxa de lucro de Marx. Sua visão é desenvolvida em “An Introduction of the Three Volumes of Karl Marx’s Capital” [“Uma Introdução aos Três Volumes d’O Capital de Karl Marx”] (Monthly Review Press, 2004). Ele as elaborou neste artigo.

Nesse trabalho, Heinrich tenta demonstrar que o próprio Marx nos últimos anos de sua vida afastou-se de sua teoria da tendência de queda da taxa do lucro. Heinrich defende que um exame dos manuscritos que formam a base do Volume Três d’O Capital mostra que Marx caminhou em direção a uma teoria das crises centrada no crédito. Heinrich acusa Friedrich Engels de editar os manuscritos de modo a esconder o suposto movimento e Marx de afastamento de uma teoria das crises FRP-centrada para uma centrada no crédito.

Em sua defesa da escola da queda da taxa de lucro em relação à crítica de Harvey, Roberts faz uma referência indireta a este blog: “… recentemente, um economista marxista da escola da superprodução chamou-me monomaníaco por causa de meu apego à lei da lucratividade de Marx como a causa principal/subjacente das crises capitalistas (ver Mike Treen, diretor nacional da organização sindical Unite da Nova Zelândia na conferência anual da organização socialista Fightback, sediada em Wellington, em 1º de junho de 2014, e um seminário apresentado pela Aotearoa Socialista em Auckland em 10 de novembro de 2014 http://links.org.au/node/4156 ).”

Mike Treen, um marxista neozelandês, é de fato o organizador do sindicato Unite da Nova Zelândia (não confundir com o sindicato estadunidense de nome similar, UNITE HERE, que também organiza trabalhadores de fastfood e de outros ramos de baixa remuneração). Este blog, na verdade, é alinhado com a “escola da superprodução” à qual Roberts se refere, inclusive Mike é um de seus editores. (1)

Mike, como liderança de trabalhadores neozelandeses de baixa remuneração, expressou sua preocupação, em nossas conversas privadas, de que a escola FRP tende a inadvertidamente reproduzir a propaganda dos patrões. Esses patrões e seus economistas contratados alegam que a crise de 2007-2009, assim como crises capitalistas anteriores, econômicas e de desemprego, teriam sido causadas por salários que excediam o “valor econômico” que trabalhadores produzem com seu trabalho. Sindicatos, segundo os economistas (burgueses), impedem que os pobres trabalhem e adquiram experiência e habilidades que eventualmente os permitiriam ascender à “classe média”.

Agora, deixemos algo claro. Michael Roberts, Andrew Kliman, e todos os outros marxistas que apoiam a escola FRP moderna querem ver o capitalismo substituído pelo socialismo. Eles não apoiam a diminuição de salários objetivando alcançar o “pleno emprego” sob o capitalismo. Pelo contrário, todos os apoiadores marxistas da teoria FRP das crises acreditam que a necessidade do capitalismo por salários cada vez menores – assim como a destruição massiva de capital excedente – prova, como coloca Andrew Kliman, a “falência da produção capitalista.” (“The Failure of Capitalist Production: Underlying Causes of the Great Recession,” brochura, 2011).

Mike não é apenas um marxista que deseja substituir o capitalismo pelo socialismo. Ele também tem responsabilidades com a participação em seu sindicato, que representa alguns dos trabalhadores mais explorados da Nova Zelândia. Se você for um trabalhador mal remunerado tentando sustentar sua família com salários e benefícios totalmente inadequados, você não poderá aguardar a chegada do socialismo para resolver os problemas imediatos seus e de sua família. Você precisará defender e, se for possível, melhorar sua qualidade de vida e suas condições de trabalho imediatamente.

Como um líder sindical que se preze poderia não se preocupar com as lutas diárias dos membros de seu sindicato por melhores salários e condições de trabalho? Se os trabalhadores estiverem incapacitados ou indispostos a lutar para melhorar suas condições em uma situação que ainda não é revolucionária, como serão capazes de fazer a revolução que lhes permitirá construir uma nova sociedade? Nesse caso, como Marx observou em “Salário, preço e lucro” (“Wages, Prices and Profits” ou “Value, Price and Profit” (2)), eles seriam pouco mais do que escravos.

Com a “escola do subconsumo” e a “escola Monthly Review,” essas questões não são abordadas. Esses economistas radicais até argumentam que os capitalistas industriais – ainda que não os capitalistas monetários – e os trabalhadores têm o interesse econômico comum de salários mais altos, uma vez que salários mais altos aumentariam a demanda monetariamente efetiva e contrabalanceariam as tendências de estagnação inerentes ao capitalismo monopolista. Essa visão pode ser criticada por superestimar as possibilidades de “reformar” o capitalismo e criar ilusões a respeito da possibilidade de formar alianças com setores da classe capitalista. Mas não há nada aqui que desencoraje a atividade sindicalista militante. Pelo contrário.

Este blog concorda com a escola FRP no sentido em que a mais-valia deve ser produzida antes de ser realizada, enquanto concorda com a escola subconsumista/Monthly Review quando essa afirma que a mais-valia também deve ser realizada na forma-dinheiro para que os capitalistas realizem seu lucro. Concorda também com ambas as escolas, no ponto da necessidade do lucro para a existência do capitalismo.

Diferentemente da escola subconsumista/Monthly Review, este blog também acredita que há, periodicamente, uma superprodução generalizada de mercadorias diante do mercado, de modo que o poder de compra combinado dos trabalhadores e dos capitalistas, assim como os possíveis “terceiros,” incluindo o Estado, é periodicamente insuficiente para comprar a produção total de mercadorias a preços lucrativos.

Se este blog estiver correto em relação a isso, simplesmente mudar a taxa de mais-valia – quer para cima como desejam os patrões e seus economistas no sentido do aumento dos lucros, ou para baixo na esperança de aumentar a demanda monetária efetiva pelo aumento de salários – não poderia tirar a economia de uma crise de superprodução ou prevenir sua recorrência. Enquanto insistirmos em resguardar o capitalismo, só uma profunda liquidação das mercadorias e meios de produção excedentes – capital excedente – poderá “limpar” o mercado, possibilitando uma recuperação até a chegada da próxima inexorável crise.

Se este blog estiver correto, seria, portanto, insensato que os trabalhadores fizessem sacrifícios para evitar ou sair de uma crise de superprodução uma vez que ela tenha sido deflagrada. A posição deste blog, assim como a visão de todo líder sindical honesto e bem informado, é de que os trabalhadores devem lutar o quanto puderem para defender e, se possível, melhorar suas condições. É verdade que essa tarefa é muito mais fácil durante períodos de prosperidade e expansão do ciclo industrial do que durante a fase de crise/depressão.

Na economia, como ocorre em todas as outras ciências, tanto sociais quanto naturais, devemos sempre buscar pela verdade e apenas a verdade. Se a economia capitalista funcionar da forma que a escola da queda da taxa de lucro acredita, esse deveria ser o ponto de partida da luta de classes. Nós deveríamos explicar aos trabalhadores que a luta sindical é muito limitada e que enquanto o capitalismo existir, será a própria luta dos trabalhadores que levará à crise. De fato, essa é a visão da assim chamada teoria da crise da luta de classes.

Isso também ocorre se a economia funcionar da forma que as escolas subconsumista e da Monthly Review acreditam, no entanto nesse caso chegaríamos a conclusões completamente diferentes a respeito dos limites e possibilidades da luta sindical do que se considerássemos a visão da luta de classes da FRP ou da teoria da crise da “luta de classes”.

A reprodução capitalista e suas muitas crises

Como todo sistema de produção social, o capitalismo deve ser também um sistema de reprodução. Ao longo da produção, os meios de produção são gradualmente consumidos e desgastados, incluindo a importantíssima força produtiva, a força de trabalho dos trabalhadores. Se os meios de produção não são substituídos ou reproduzidos, a produção entra em colapso. Isso é especialmente evidente na economia de guerra, na qual fábricas que normalmente produzem meios de produção ou de consumo para a classe trabalhadora são aplicadas na produção de meios de destruição. Se essa situação for mantida por tempo demais, o sistema de produção inteiro progressivamente desaba.

A reprodução capitalista é um processo complexo e sujeito a diversos tipos de crises, tanto gerais quanto locais. De fato, nem um minuto se passa sem que ocorra uma crise na reprodução capitalista em algum lugar. A grande maioria dessas crises são locais, afetando uma parte pequena da economia. Virtualmente qualquer um que teve um emprego e já passou por uma situação em que o trabalho foi perturbado por causa de “pane” em alguma máquina ou “falta” de energia experimentou uma pequena crise na reprodução capitalista.

Mas algumas crises da reprodução capitalista são gerais, afetando virtualmente todas as pessoas no planeta. Um tipo de crise generalizada no sistema de reprodução seria uma economia de guerra tal qual a que se viveu entre 1914 e 1918 e novamente entre 1939 e 1945.

Outros tipos de crises que podem ser muito amplas envolvem carência severa de determinado insumo – por exemplo, uma falta aguda de alguma matéria-prima ou fonte de energia. Um exemplo histórico de tal crise que ocorreu nos tempos de Marx foi uma carestia de algodão que acometeu a indústria têxtil de Manchester durante a Guerra Civil dos EUA de 1861-1865.

Uma crise na reprodução capitalista – ou qualquer sistema de reprodução econômica nesse sentido – pode ocorrer devido a perdas de colheita. Um exemplo histórico que eu examinei neste blog envolveu a crise que ocorreu imediatamente após o fim das guerras napoleônicas causadas pelo desastre climático natural de 1816. Isso foi causado, acredita-se, pela erupção do Vulcão Tambora em 1815, produzindo o que é conhecido por “o ano sem verão.” Esse curto episódio de resfriamento global causou perdas de colheitas que levaram a escassez de bens alimentícios necessários para a reprodução da mercadoria força de trabalho.

Um tipo de crise única da reprodução capitalista

Enquanto crises causadas por guerras e perdas de colheitas podem afetar qualquer sistema de reprodução social, um tipo de crise no processo de reprodução é único do capitalismo – crises de superprodução relativa generalizada de mercadorias. Na ausência de outros tipos de crises maiores – guerras, perdas de colheita, escassez de matéria-prima – uma vez que o capitalismo tenha alcançado certo estágio de desenvolvimento, crises de superprodução generalizada estouram em intervalos quase regulares.

Quando Marx cita, em O Capital e outras obras, as crises na reprodução capitalista, ele pode ou não estar se referindo às crises gerais de superprodução. Marx sempre deve ser lido considerando-se o contexto.

De fato, uma grande fonte de erro na interpretação da obra de Marx é assumir que sempre que ele descreve ou cita uma crise no processo de reprodução capitalista ele está se referindo à fase de crise do ciclo industrial. No entanto, é verdade que Marx, assim como Engels, deram ênfase às crises gerais de superprodução.

A evolução da taxa de lucro no curso do desenvolvimento capitalista

Em Marx, a taxa de lucro é o total da mais-valia dividida pelo capital adiantado total em um determinado período de tempo, em geral um ano. Isso não deve ser confundido com a mais-valia MV dividida pelo capital variável total V, ou taxa de mais-valia. Nem deve a taxa de lucro ser confundida com a mais-valia MV dividida pela soma do capital variável total V com o capital constante C consumido em um ciclo de capital circulante.

Capital circulante é capital variável mais os elementos do capital constante consumidos em um único ciclo produtivo. Isso inclui matéria-prima e materiais auxiliares – por exemplo, energia. Capital circulante também não deve ser confundido com o capital monetário que faz circular mercadorias, outro erro comum. Capital fixo, em contraste, é consumido ao longo de mais de um ciclo de produção. Exemplos de capital fixo são máquinas, edifícios e melhoramentos do solo.

Pelo menos até a época da Segunda Guerra, praticamente todas as escolas de economia política assumiam que a tendência de longo prazo da taxa de lucro era decrescente. Até os marginalistas acreditavam na queda da taxa de lucro, a qual era vista como parte vital de sua apologia ao capitalismo.

Os marginalistas argumentavam que à medida que o capital se acumulava e se tornava mais farto, sua escassez diminuiria e a taxa de lucro cairia. A grande diferença entre os salários e o lucro seria, portanto, de acordo com eles, um problema apenas do capitalismo precoce, quando o capital ainda estaria escasso.

Keynes, apesar de ser crítico de alguns aspectos do marginalismo, expressou esperanças semelhantes em sua “Teoria Geral.” Conforme os lucros caíssem em relação aos salários, os antagonismos de classe diminuiriam. Keynes e outros economistas burgueses argumentavam que o capitalismo levaria, em seu desenvolvimento, a uma sociedade mais rica e igualitária. O recente livro “O Capital no Século XXI,” do economista marginalista francês Thomas Piketty, causou tamanho impacto justamente por mostrar que a previsão marginalista de que o lucro cairia em relação aos salários simplesmente não se realizou.

A crítica de Marx a Adam Smith em relação à tendência de queda da taxa de lucro e à teoria das crises

Adam Smith foi outro economista que acreditava que a tendência da taxa de lucro era de queda por motivos que, no fim das contas, eram os mesmo que aqueles apresentados por Keynes e os marginalistas. Nos primeiros estágios da sociedade capitalista, de acordo com Smith, o capital seria escasso e os lucros seriam altos. Mas conforme o capital se acumulasse, a competição entre capitais cresceria. Isso diminuiria sua taxa de lucro até que todo o progresso cessasse. Como todos os economistas capitalistas, Smith era incapaz de imaginar uma sociedade para além do capitalismo.

O desenvolvimento progressivo da sociedade, de acordo com Smith, terminaria em uma permanente “superacumulação” de capital, o que implicaria também numa superprodução permanente de mercadorias. Smith, lembre-se, escreveu antes da “descoberta” da Lei de Saw, que supostamente provou que a superprodução generalizada de mercadorias era impossível. Marx, no entanto, rejeitou a teoria de Smith de uma vindoura superprodução permanente de mercadorias e capital. Segundo Marx, não há “crises permanentes.”

Marx, assim como Smith, sabia que os lucros poderiam desaparecer completamente ou até se transformar em perdas se as mercadorias fossem superproduzidas. De fato, a “mão invisível” de Smith – o que futuramente passaria a ser chamado de “lei do valor” – depende disso.

Marx sabia que a superprodução de mercadorias poderia ocorrer em um ramo particular da indústria, como se vê no petróleo hoje, ou poderia haver uma superprodução generalizada de mercadorias, levando a um colapso temporário da taxa de lucro amplamente.

No entanto, a causa da queda ou até do desaparecimento dos lucros como resultado da superprodução vem do valor das mercadorias não poder ser realizado na forma-dinheiro. No caso da superprodução, a mais-valia é de fato produzida, mas não pode ser realizada como lucro monetário e se torna, portanto, inútil para o capitalista.

Marx não acreditava que uma superprodução generalizada de mercadorias em relação às necessidades humanas, ou superprodução absoluta de mercadorias, era possível sob o capitalismo. Diante das necessidades humanas, Marx acreditava que o capitalismo sempre produziria menos que o suficiente, e não o contrário. Ademais, Marx acreditava que uma superprodução generalizada de mercadorias em relação à demanda de mercado sempre seria uma situação temporária. Ao longo de crises de superprodução, fossem elas gerais ou parciais, a produção no longo prazo seria ajustada à demanda de mercado.

Supondo que Marx estivesse certo ao afirmar que não há superprodução permanente de mercadorias, restam dois problemas. Primeiro, como ocorre uma crise geral, em oposição a uma parcial?

Marx solucionou esse problema explicando que uma crise geral de superprodução significa, na verdade, não uma superprodução de todas as mercadorias, e sim uma superprodução geral de mercadorias em relação a uma mercadoria particular – a mercadoria-dinheiro.

Resta ainda um problema. Por que desde 1825 as crises de superprodução generalizada têm ocorrido num ritmo quase regular, considerando que não era assim antes? Este blog se concentra em explorar exatamente essa questão.

Ricardo e a queda da taxa de lucro

Ricardo e Marx, como praticamente todos os outros teóricos econômicos que escreveram antes da Segunda Guerra, acreditavam que a tendência de longo prazo da taxa de lucro era de queda. E ambos Marx e Ricardo, ao contrário de Keynes e Smith, concordavam que a tendência de queda na taxa de lucro não envolvia a questão da realização do valor das mercadorias no mercado, mas a produção do valor corporificado nas mercadorias.

De fato, Ricardo foi além. Diferente de Marx, Ricardo era um apoiador da lei de Saw. Ele não acreditava sequer que uma crise geral temporária de superprodução, ou uma saturação generalizada, fossem possíveis, mesmo teoricamente. Marx, por outro lado, acreditava. Fazendo justiça a Ricardo, ele morreu em 1823, pouco antes da era das crises generalizadas de superprodução começar. Portanto, dificilmente se esperaria que ele tivesse algo a dizer a respeito.

Ricardo, além de aceitar a lei de Saw – um grande erro – também aceitou a assim chamada lei malthusiana da população, outro erro. Essa “lei” alega que cada aumento nos meios de subsistência levará a um aumento geométrico no tamanho da população humana.

Essa “lei” foi refutada não só na teoria como também sobretudo na prática. É precisamente nos países mais ricos, onde há abundância de meios de subsistência, que a taxa de crescimento populacional diminuiu e, mais recentemente, tornou-se negativa – na União Europeia, por exemplo. Os Estados Unidos também teriam um crescimento populacional negativo se não fosse pela alta taxa de imigração.

Se a lei malthusiana de população estivesse certa, a situação seria o exato oposto. A assim chamada “lei de ferro dos salários” aceita por Ferdinand Lassalle (1825-1864), segundo a qual os salários reais dos trabalhadores não podem subir e a atividade sindical é inútil, senão positivamente danosa, também é baseada na “lei” populacional malthusiana.

Ricardo, ao aceitar a assim chamada lei populacional malthusiana, concluiu que seria apenas uma questão de tempo até que a população humana crescente causasse a plena utilização de toda terra capaz de produzir meios de subsistência. Uma vez alcançado esse ponto, a sociedade humana – que Ricardo só podia conceber como capitalista – chegaria a um limite absoluto. Primeiro, apenas as terras mais férteis, mas depois progressivamente também as menos férteis seriam cultivadas. Rendas diferenciais surgiriam e absorveriam mais e mais do “produto líquido” – mais-valia – o que traria acumulação aos proprietários de terras.

Inevitavelmente, o valor dos meios de subsistência – a quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-los, segundo a teoria ricardiana do valor – aumentaria. Partindo do pressuposto que o valor do dinheiro permaneceria inalterado, o preço da comida então aumentaria progressivamente. Como resultado, salários em dinheiro – mas não salários reais – também aumentariam. A taxa de mais-valia cairia, causando queda da mais valia e da taxa de lucro. (Para Ricardo, a taxa de mais-valia e a taxa de lucro eram idênticas, já que assim como outros economistas clássicos ele ignorava o capital constante.)

Traduzindo o argumento de Ricardo para linguagem marxista, os trabalhadores trabalhariam uma parte maior da jornada de trabalho para si mesmos e uma parte menor para a obtenção de mais-valia por parte de capitalistas, proprietários de terras e seus respectivos dependentes.

Na verdade, o decurso do desenvolvimento capitalista seguiu na direção exatamente oposta. O valor da força de trabalho – o valor do trabalho segundo Ricardo – caiu progressivamente. Como resultado, vimos um enorme aumento da mais-valia relativa. (3) Com o desenvolvimento do capitalismo, portanto, a taxa de mais-valia cresce, e não decresce como Ricardo esperava.

Ricardo acreditava que os limites históricos do capitalismo – para ele também os limites da sociedade humana – eram determinados pela capacidade do capitalismo de produzir cada vez maiores quantidades de mais-valia. Ele não via, no entanto, a realização da mais-valia – o crescimento do mercado – como um problema.

Marx e a queda da taxa de lucro

A abordagem de Marx da queda da taxa de lucro foi única. Ele não confundiu a tendência da queda da taxa de lucro com superprodução – o problema de realizar o valor das mercadorias no mercado, como fez Smith. Também não a baseou na exaustão das terras cultiváveis ou algum “limite de crescimento” natural que se aplicaria a qualquer modo de produção, inclusive o socialismo, como fez Ricardo. Além disso, ao contrário de Ricardo, Marx não confundiu a taxa de mais-valia com a taxa de lucro.

A economia política clássica alegava, desde Adam Smith, que o capital constante poderia ser reduzido “na análise final” aos meios de subsistência consumidos pelos trabalhadores. Portanto, embora a economia política clássica fizesse distinção entre capital circulante e capital fixo, ainda não concebia a diferença muito mais importante entre capital constante e variável. Como resultado de seu erro em não reconhecer capital constante, a política econômica clássica foi incapaz de encontrar uma solução correta para o problema da tendência de queda da taxa de lucro no curso do desenvolvimento capitalista.

Marx dividiu o capital produtivo em duas partes principais. Uma é o capital constante, que apenas mantém seu valor – daí seu nome – e o segundo, o capital variável, a força de trabalho dos trabalhadores uma vez que ela tenha sido comprada pelos capitalistas, a única produtora de mais-valia.

A mais-valia, quando realizada na forma-dinheiro no mercado, torna-se lucro. Marx acreditava que, com o desenvolvimento do capitalismo, a parcela do capital produtivo total que é constante – isto é, toda mercadoria na produção de outras mercadorias exceto força de trabalho – cresce em relação à força de trabalho. Portanto, partindo-se de uma taxa fixa de mais-valia – não um salário real constante – a taxa de lucro deverá cair. Aqui estamos lidando com um efeito permanente, não algo temporário como o colapso da taxa e da própria massa do lucro que vemos nas baixas do ciclo industrial.

Marx tira disso algumas conclusões. Primeiro, como a produção capitalista é motivada por lucro e apenas lucro, o fato de que o desenvolvimento do próprio capitalismo enfraquece a taxa de lucro mostra que a produção capitalista não pode ser a forma final da produção. Pelo contrário, segundo Marx, ela é apenas um estágio transitório na história da produção.

Segundo, com a queda da taxa de lucro, os capitais menores, tão relevantes para a “inovação” capitalista, são comprometidos. Isso significa uma tendência ao monopólio, e com o tempo uma taxa menor de adoção de novas forças de produção possibilitadas pela ciência e tecnologia.

Portanto, não são os “limites naturais” da produção que se tornam a principal força que detém o maior desenvolvimento das forças produtivas. Além disso, Marx escreveu que a queda da taxa de lucro não é o mesmo que superprodução, especulação e crises, mas apenas “cria” as condições para esses fenômenos. Mais sobre isso a seguir.

O ataque à teoria da tendência da queda da taxa de lucro de Marx

Desde a Segunda Guerra, economistas burgueses têm cada vez mais rejeitado a visão previamente aceita por praticamente todas as escolas de economia política de que a tendência histórica da taxa de lucro é de queda. O primeiro grande marxista a questionar essa postura foi Paul Sweezy (1910-2004) na sua obra “Teoria do Desenvolvimento Capitalista,” publicado em 1942. Sweezy reagia à posição de Henryk Grossman (1881-1950), o fundador da teoria da crise FRP moderna.

Sweezy, um grande apoiador das reformas do New Deal, estava reagindo às implicações das teorias de Grossman de que tais reformas eram mais do que inúteis. Isto é, quaisquer concessões dos capitalistas aos trabalhadores derrubariam ainda mais a taxa de lucro e aprofundaria a crise.

A revista Monthly Review continuou a se opor aos sucessores de Grossman – hoje a escola de teoria da crise FRP. Monthly Review não só escolheu traduzir para o inglês e publicar o livro de Michael Heinrich, que contém um ataque à FRP, mas deixou claro sua solidariedade com Heinrich nesse sentido.

Portanto, o debate sobre a tendência de queda da taxa de lucro que se iniciou com Sweezy e Grossman continua até hoje. Isso é bom, já que a verdade só é revelada através da contraposição de visões diferentes.

Eu acredito que a mudança da posição da economia política burguesa de aceitar para negar a tendência histórica de queda da taxa de lucro foi consequência da Guerra Fria. A velha visão da economia política burguesa foi transformada, durante a Guerra Fria, em outra “doutrina comunista” a ser “refutada.”

A ligação entre crises cíclicas e a tendência de queda da taxa de lucro

De acordo com a escola da queda da taxa de lucro, qual é a relação entre a FRP e as crises? Essa escola põe muita ênfase em uma passagem no Capítulo 15 do Livro III d’O Capital, em que Marx descreve uma crise hipotética trazida pelo que ele chama de superprodução absoluta – e não relativa – de capital. Eu acredito que a escola da queda da taxa de lucro esteja falhando em entender a importância da palavra “absoluta” neste caso.

Na minha opinião, o fato de Marx usar a palavra “absoluta” nessa passagem indica que ele não está discutindo a fase de crise do ciclo industrial. Na verdade, Marx imagina uma situação em que, para usar a linguagem corriqueira, há uma escassez aguda de trabalho. Imagine uma situação em que praticamente todos os trabalhadores em potencial tem um trabalho – não apenas aqueles contados como “empregados”nas estatísticas governamentais oficiais. Em tal situação, a competição dos trabalhadores por empregos desapareceria. Todos – não só os altamente habilitados ou educados – poderiam abandonar seus empregos e adquirir novos quando desejassem.

A competição entre capitalistas por força de trabalho ascenderia a um pico. Como não há exército de reserva de desempregados restante, a única forma de um capitalista individual contratar mais trabalhadores é contratar trabalhadores que já estão empregados por colegas capitalistas. E a principal arma dos capitalistas nesse tipo de competição é oferecer salários maiores.

Agora, o que acontece com a taxa de mais-valia, a razão entre trabalho não pago e trabalho pago, nessa situação? Fazer essa pergunta é responde-la. A taxa de mais-valia e a taxa de lucro desabariam, mesmo na ausência de organização sindical. Não só a taxa de lucro, mas também a massa de mais-valia encolheria e até desapareceria completamente, porque as condições que permitem a produção de mais-valia seriam destruídas pela superprodução absoluta de capital.

Uma crise de superprodução absoluta de capital

Conforme o lucro desaparece devido a uma superprodução absoluta de capital, o investimento desaba e muitos capitais são destruídos. Trabalhadores são demitidos, a competição entre trabalhadores por empregos aumenta novamente enquanto a competição entre capitalistas por força de trabalho adicional diminui e desaparece na medida em que o exército de reserva dos desempregados reaparece. A combinação da destruição de uma parte do capital industrial – o fechamento de empreendimentos não lucrativos – e o crescimento da população da classe trabalhadora resolve a crise ao restaurar as condições sob as quais a mais-valia é produzida.

Os capitalistas novamente têm a opção de contratar trabalhadores desempregados e não estão mais limitados a contratarem trabalhadores já empregados por seus colegas. No meio tempo, o tamanho da classe trabalhadora cresceu devido ao crescimento natural da população. A taxa de mais-valia e a taxa de lucro se recuperam, há a retomada do investimento e o retorno da prosperidade capitalista.

À primeira vista, essa parece ser a descrição do ciclo industrial em sua passagem por uma crise/estagnação e então uma retomada à prosperidade e ao boom. Mas será esse o caso? Quando foi a última vez que vimos algo remotamente parecido com uma “superprodução absoluta de capital” no mundo real? Certamente, ao menos nos Estados Unidos, não desde a Segunda Guerra ou por décadas antes da Segunda Guerra.

O mais próximo que se chegou de um genuíno “pleno emprego” foi durante a Segunda Guerra. Mas esse foi o resultado de uma economia de guerra que temporariamente interrompeu o processo normal de reprodução capitalista ampliada, que acabara de ser retomada ao fim da grande crise de 1929-1932 e a recessão Roosevelt de 1937-1938, quando houve a intervenção da guerra.

Isso não significa negar que em certos setores que empregam trabalhadores altamente qualificados – por exemplo, engenheiros do Vale do Silício – ou na construção em tempos de boom – uma escassez aguda de trabalhadores altamente qualificados possa ocorrer de tempos em tempos. De fato, se isso não ocorresse, não haveria incentivo econômico para alguém se tornar um trabalhador qualificado – seja ele programador, neurocirurgião, encanador, marceneiro ou joalheiro.

Mas o que não vemos e não temos visto por muitas décadas – exceto pela economia de guerra da Segunda Guerra – é uma situação em que trabalho não qualificado estava em baixa oferta. Mesmo em períodos de “grande prosperidade,” sempre há mão de obra não qualificada suficiente disponível.

Quando os patrões são perguntados sobre o motivo de não contratarem mais pessoas, eles frequentemente respondem que os trabalhadores em potencial não são capacitados o suficiente. No entanto, se os patrões estivessem enfrentando uma escassez generalizada de trabalho genuína – uma superprodução absoluta de capital ou semelhante – eles contratariam qualquer trabalhador incapacitado e o treinariam. Essa é a melhora forma de um trabalhador aprender novas habilidades. Ou eles encontrariam uma forma de substituir trabalho capacitado por um trabalho menos capacitado ou até mesmo sem nenhuma capacitação.

Portanto, a crise de 2007-09 não foi causada por uma superprodução absoluta de capital. Apesar de o tamanho do exército de reserva dos desempregados ser certamente menor em 2007 logo antes da Grande Recessão, era certo que não havia indício de qualquer escassez generalizada de trabalho naquele momento.

Em sua famosa descrição das crises em “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico,” Engels destaca que crises são causadas por dificuldade na venda de mercadorias, não por dificuldade em encontrar mais trabalhadores. Para encontrar algo semelhante a uma superprodução absoluta de capital teríamos que voltar mais de um século, para as “colônias brancas” da América do Norte e da Austrália, onde “trabalho livre assalariado” de fato estava em falta.

Na verdade, um dos motivos da terrível instituição da escravidão africana ter início no que posteriormente se tornaria os Estados Unidos da América foi a escassez de “trabalho livre assalariado.” Com o desenvolvimento do capitalismo e com a separação de cada vez mais pessoas dos meios de produção, o risco de uma superprodução absoluta de capital no capitalismo diminuiu progressivamente. Uma das funções mais importantes de crises da superprodução geral relativa de mercadorias – quedas reais no ciclo industrial – é que elas impedem que crises de superprodução absoluta de capital sequer aconteçam.

Crises podem ocorrer em qualquer ponto do processo de reprodução ampliada

Para esclarecer esse ponto, examinemos a fórmula básica da reprodução capitalista D – M…P…M’ – D’. A reprodução consiste de uma série desses ciclos. No caso da reprodução capitalista ampliada – e a reprodução capitalista só pode existir no longo prazo como reprodução ampliada – os números representados pelas quantidades algébricas D, M, P, M’ e D’ tornam-se maiores com cada ciclo sucessivo da produção. Uma crise no processo de reprodução ampliada pode ocorrer em qualquer ponto dessa fórmula, de D na extrema esquerda até D’ na extrema direita.

Comecemos pela esquerda. Se não houver D suficiente disponível, o circuito nem se inicia. Historicamente, não foi por acaso que a “aurora” do desenvolvimento capitalista, como Marx ironicamente chamou no capítulo sobre acumulação primitiva de capital no Volume I d’O Capital, teve início com a busca por ouro e prata nas Américas.

Os conquistadores encontraram ouro em abundância no Peru. Enquanto para os nativos do Peru o ouro tinha um valor de uso eminentemente artístico, para os conquistadores aquilo era dinheiro. Esse material monetário, na forma de ouro e prata roubado dos nativos ou extraído com seu trabalho escravo nas minas das Américas, formou em grande medida o D inicial que deu partida no processo capitalista de reprodução ampliada.

Partindo-se do pressuposto de que há dinheiro suficiente disponível, chegamos a M. Os capitalistas industriais precisam encontrar mercadorias no mercado para desempenhar a produção de mercadorias que contenham mais-valia. Isso inclui os elementos do capital fixo – edifícios e máquinas. Adicionalmente, os capitalistas industriais devem encontrar fontes de força-motriz, iluminação nas fábricas e assim por diante. Esses são os materiais auxiliares. E eles devem encontrar matéria-prima. Se eles não conseguirem encontrar mercadorias adequadas na quantidade necessária, ou substitutos adequados, a (re)produção capitalista enfrentará uma crise.

O mais importante, capitalistas precisam encontrar a mercadoria força de trabalho na forma de “trabalho livre assalariado,” que na verdade é a única produtora de mais-valia. Se isso não for possível, a reprodução capitalista ampliada enfrentará uma crise por superprodução absoluta de capital. No início, esse talvez tenha sido o maior problema para o capitalismo.

Todo o ouro e prata das Américas não teria sido suficiente para viabilizar o capitalismo se o problema da oferta adequada de trabalho assalariado não tivesse sido resolvido. Também era necessário separar os produtores de seus meios de produção. Apenas desse modo os produtores seriam forçados a vender sua força de trabalho aos capitalistas no mercado em troca de salários.

Essa missão foi cumprida – não sem intervenção massiva de violência e coerção estatais. A escola FRP de teoria das crises acredita que crises cíclicas que marcam a história do capitalismo desde 1825 ocorrem nesse ponto, no qual capitalistas convertem ou tentam converter dinheiro em capital variável. Eu discordo.

Chegamos então a P, a produção de mercadorias que contêm mais-valia. É em P que M é transformado em M’. A parte constante de M transfere seu valor para M’. A porção variável de M – força de trabalho – repõe seu próprio valor. O que é mais importante, a força de trabalho, além de repor seu próprio valor, adiciona valor, a mais-valia. M’ difere de M de duas maneiras. Primeiro, M’ tem valor de uso diferente de M. Segundo, M’ tem um valor quantitativamente maior que M. A diferença, M’ menos M, é a mais-valia.

Crises podem e às vezes ocorrem nesse ponto do processo de reprodução capitalista. Por exemplo, se houver uma greve de trabalhadores, a reprodução para nesse ponto porque os grevistas retiram seu trabalho e nenhuma mais-valia é produzida enquanto a greve continuar.

No caso da agricultura, condições desfavoráveis de cultivo ou pragas podem fazer P falhar. Trabalhadores realizam trabalho não pago, mas o valor de uso de M’ não emerge pela não cooperação da mãe natureza. Por exemplo, como eventualmente acontece no meu estado de Nova Iorque, uma geada tardia na primavera destrói as flores num pomar de maçãs de um fazendeiro capitalista. Como não surgem maçãs nas árvores, o valor de uso físico de M’ não é produzido. P falhou. E quando não há valor de uso, não há valor.

Se, no entanto, tudo correr bem para eles – e podemos ver que isso não é garantido – os capitalistas industriais possuirão M’, mercadorias que contêm mais-valia. Mas a não ser que eles produzam a mercadoria que serve como material monetário, eles ainda não estão livres para ir para casa. Um passo perigoso os aguarda. Eles devem encontrar compradores capazes de pagar pelas mercadorias que contêm mais-valia.

Consideremos que eles encontrem compradores. Eles agora terão D’, ou uma soma de dinheiro maior do que aquela com a qual eles começaram. Eles estão em posição agora de desempenhar um novo ciclo de produção D – M…P…M’ – D’ numa escala ainda maior. A reprodução capitalista ampliada prossegue. Mas se eles falharem, a reprodução ampliada é paralisada nesse último e mais perigoso ponto no ciclo da reprodução capitalista ampliada.

A experiência já havia mostrado, nos tempos de Marx e Engels, que é nesse último ponto que a reprodução capitalista ampliada é mais vulnerável a um colapso geral ou crise. É importante não confundir esse tipo de crise com outros tipos de crise que podem ocorrer em outros momentos da reprodução capitalista ampliada – e na verdade em qualquer sistema de reprodução econômica – sendo esse tipo particular de crise exclusivo ao capitalismo altamente desenvolvido. Eu acredito ser esse um erro que a teoria das crises FRP cometa.

Voltemos ao exemplo da crise do algodão que acometeu a indústria têxtil britânica por causa da Guerra Civil dos Estados Unidos. Essa crise ocorreu em D – M, não M’ – D’. Os produtores têxteis de Manchester tinham D suficiente, mas quando foram ao mercado, não encontraram algodão cru o suficiente para produzir fio igual ao valor de D que eles estavam adiantando, devido à Guerra Civil dos Estados Unidos e o consequente bloqueio dos estados escravistas rebeldes pela União.

O processo de reprodução parou nesse ponto. Isso foi uma questão séria para o sistema capitalista – Marx escreveu que essa tinha sido a crise mais séria que o capitalismo tinha experimentado até então – mas essa não era uma crise de superprodução, geral ou parcial.

A tendência de queda da taxa de lucro e o percurso histórico da produção capitalista

A tendência de queda da taxa de lucro opera ao longo de toda a história do modo de produção capitalista, um período medido em séculos. Crises cíclicas operam num período de, em média, um ano e meio. No caso extremo da supercrise de 1929-1932, a crise no mercado mundial propriamente dita – e não a depressão pós-crise – durou mais de três anos.

Em relação ao tempo de vida do modo de produção capitalista, crises gerais de superprodução são, portanto, perturbações momentâneas na história da reprodução capitalista ampliada.

Nos primeiros estágios do capitalismo, os capitais são relativamente pequenos, e a taxa de lucro é alta. Há ainda uma pequena parcela de capital fixo. Em pequenas oficinas descentralizadas, trabalhadores ainda usam métodos artesanais herdados do passado pré-capitalista. Por todos os capitais serem pequenos, a taxa de lucro deve ser muito alta para possibilitar a própria existência do capitalismo.

Suponha que um capital, em termos de poder de compra do dólar atual, tenha o valor de US$ 25.000. Mesmo se a taxa de lucro anual for de 100%, nosso capitalista e sua família terão de viver com apenas US$25.000. Eles mal conseguirão viver com essa renda, muito menos ter lucro o suficiente para “investir de volta nos negócios” – desempenhar a reprodução capitalista ampliada. Nós esperaríamos então que o processo de reprodução ampliada procedesse de forma extremamente lenta.

Nessas circunstâncias, se a taxa de lucro caísse de 100 para 10%, o capitalista e sua família teriam de sobreviver com a renda anual de US$2.5000, uma impossibilidade. O capitalismo então colapsaria devido à baixa taxa de lucro. Portanto, é o capitalismo jovem, com seus capitais pequenos, que absolutamente necessita de uma taxa de lucro extremamente alta.

Mas como foi possível que o jovem capitalismo realizasse taxas de lucro tão altas? Isso não vinha de uma taxa mais alta de mais-valia. Na verdade, a taxa de mais-valia era mais baixa nos primeiros estágios do capitalismo do que é hoje. Isso não ocorria porque o padrão de vida médio dos trabalhadores era melhor. Era assim porque a produtividade do trabalho era muito mais baixa do que é hoje.

Como resultado, os trabalhadores passavam uma parte muito maior da jornada de trabalho trabalhando para si mesmos e uma parte muito menor trabalhando para os capitalistas, donos de terras e seus dependentes. Se tivesse sido de outra forma, os trabalhadores simplesmente teriam morrido de inanição, frio e desalojamento, e o capitalismo de fato teria morrido por uma “superprodução absoluta de capital.” O que “salvou” o dia para o capitalismo recém-nascido e permitiu que ele “crescesse” foi justamente a baixa composição orgânica do capital.

Mas conforme o capital se acumula na forma de grandes fábricas que representam grandes massas de capital fixo acumulado, o qual sofre apenas uma pequena depreciação ao longo de um ano, a taxa de lucro anual do capital total cai. Adicionalmente, grandes fábricas requerem grandes quantidades de matéria-prima e energia – materiais auxiliares – todos os quais representando capital constante. O que “salva” o capitalismo em desenvolvimento, no entanto, é o fato de os capitais individuais crescerem muito em tamanho, o que significa uma tremenda expansão da escala produtiva.

Como resultado, os capitalistas podem tolerar uma taxa de lucro muito mais baixa do que seus antecessores do início do capitalismo. Como vimos acima, seria impossível para os capitalistas subsistir com uma taxa de lucro de 10% sobre um capital de $25.000. No entanto, suponhamos que o capital seja de $250 milhões. Mesmo se a taxa de lucro for de “só” 10%, eles e suas famílias podem desfrutar de uma renda de $25 milhões para gastar por ano. Eles até podem poupar uma parcela considerável dessa renda para o consumo produtivo, ou reprodução ampliada.

Apesar de a taxa de lucro ser muito mais baixa do que era no início do capitalismo, a reprodução ampliada do capital agora pode ser desempenhada com muito maior vigor do que antes. Na verdade, é precisamente por a taxa de lucro estar tão baixa que os capitalistas são obrigados a realizar a produção em larga escala.

A queda da taxa do lucro, portanto, cria, como Marx coloca no capítulo 15 do Volume III d’O Capital, a superprodução, a especulação e as crises. Expansões repentinas na escala de (re)produção que eram absolutamente impensáveis nos primeiros momentos do capitalismo, o tipo que precede crises gerais de superprodução, começaram a ocorrer em intervalos periódicos. Nascia o ciclo industrial.

Não obstante o relativo encolhimento da quantidade de capital variável diante da massa de capital constante, o número de trabalhadores explorados pelo capital continua crescendo enormemente. Isso ocorre junto com a taxa crescente de mais-valia.

Ainda mais, a massa de mais-valia cresce em termos dos valores de uso de bens de consumo necessários e de luxo que representam a mais-valia ou, uma vez que ela seja convertida em dinheiro, o lucro. O padrão de vida da classe capitalista progressivamente melhora, apesar da queda da taxa de lucro e da crescente taxa de acumulação. Hoje, uma certa quantidade de lucro medido em termos de horas de trabalho abstrato humano representa uma quantidade de bens de consumo vastamente maior em termos de valor de uso do que nos tempos do início do capitalismo, quando a produtividade do trabalho humano era bem menor.

Os “heróis” capitalistas da acumulação

Os capitalistas agora são obrigados a “poupar” num ritmo muito maior do que seus ancestrais do início do capitalismo. Mas conforme eles o fazem, nossos “heróis economizadores” desfrutam de um nível de luxo com o qual seus predecessores sequer poderiam sonhar! Nenhum outro sistema prévio de exploração proporcionou algo semelhante! Tudo isso é possível graças ao crescimento da produtividade do trabalho humano. Mas, muito mais importante, ao mesmo tempo a possibilidade e, de fato, a necessidade de um sistema de produção sem exploração está sendo criada. (4)

As mudanças nas crises conforme o capitalismo se desenvolve

O jovem capitalismo – antes de 1825 – não tinha crises cíclicas – isto é, colapsos generalizados periódicos de M’-D’. Mas isso não quer dizer que o jovem capitalismo estava livre das crises – no entanto as crises tendiam a ocorrer no lado esquerdo, e não no direito, da fórmula D – M…P…M’ – D’.

Por exemplo, em seus dias de juventude o capitalismo era muito mais vulnerável a carestias de alimento devastadoras e fomes. Assim como era o caso na era pré-capitalista, “tempos difíceis” não significavam uma crise de superprodução, mas uma fome com preços de alimentos altíssimos que levavam boa parte ou até a maior parte da população à inanição.

Essa situação afetava também as vendas – o mercado. Quando os preços dos alimentos estavam excepcionalmente altos, trabalhadores e de fato qualquer um que não fosse rico tinha pouco dinheiro restante para comprar outras mercadorias. Isso poderia levar a crises de vendas também (M’ – D’), e trabalhadores poderiam ser demitidos como resultado da má situação dos negócios. Mas as crises de M’ – D’ eram crises secundárias se comparadas àquelas centradas em P – a própria produção – que poderia falhar devido a condições desfavoráveis de cultivo e as ainda limitadas forças de produção.

Embora perdas de colheita ainda possam ocorrer, e aumentos periódicos do preço da comida ainda possam afetar o ritmo dos negócios, seu impacto nas condições gerais dos negócios decresceu progressivamente ao longo do desenvolvimento capitalista. De fato, a última grande fome ou crise “material” no mundo ocidental – isto é, a última vez que a Europa Ocidental (exceto a Irlanda) e a América do Norte experimentaram uma fome generalizada devido a perdas de colheita – ocorreu em 1816, no “ano sem verão.” (5)

A tendência de queda da taxa de lucro e as crises econômicas de superprodução generalizada

O aumento da composição orgânica do capital e a tendência resultante da queda da taxa de lucro caminham lado a lado com o aumento da escala produtiva no desenvolvimento capitalista. Torna-se possível aumentar rapidamente a escala produtiva quando há expansões repentinas no mercado. Conforme a indústria capitalista se desenvolve, ela desenvolve a habilidade de aumentar a produção em grande escala em pequenos intervalos de tempo. Isso leva ao aumento da produção numa taxa consideravelmente mais rápida do que o ritmo de expansão dos mercados.

Esse descompasso entre o aumento da capacidade produtiva e o crescimento dos mercados torna inevitável a ocorrência de crises de superprodução generalizada de mercadorias em intervalos quase regulares. A reprodução capitalista falha periodicamente em M’ – D’. Esse tipo de crise não só era impossível sob qualquer outro sistema prévio de reprodução econômica, também era impossível nos primeiros momentos do capitalismo. Mas sob o capitalismo moderno, dificilmente é possível passar uma década sem esse tipo de crise.

O crédito e as crises

Todas as escolas sérias de teoria das crises, incluindo a Monthly Review e a da queda da taxa de lucro, acreditam que o crédito desempenha um papel importante na formação das crises. Mas todas as escolas marxistas de teoria das crises também buscam a raiz das crises nas contradições básicas do capitalismo e não no sistema de crédito, como fazem muitos economistas burgueses. Todas as várias escolas de teoria das crises são, portanto, superiores às visões superficiais proporcionadas, por exemplo, pelo departamento de economia da Universidade de Chicago.

A escola Monthly Review enxerga que a causa da estagnação – e sua manifestação aguda nas crises – está baseada na tendência de estagnação do monopólio capitalista. Em sua busca por lucro, argumenta a escola Monthly Review, os monopólios restringem a produção para manter os preços de monopólio e superlucros. Essa produção restrita representa um maior ou menor grau de estagnação que só pode ser superado por gastos governamentais ou revoluções tecnológicas tais quais o desenvolvimento do automóvel e as novas indústrias relacionadas. Segundo a Monthly Review, inovações revolucionárias e/ou intervenções governamentais ineficazes, inclusive gastos de guerra, circunstâncias de depressão semelhantes à de 1930, são, na verdade, a norma do capitalismo monopolista.

A escola da queda da taxa de lucro acredita que uma taxa de lucro baixa demais leva periodicamente a baixo investimento. Na sua visão, é a baixa taxa de luro que cedo ou tarde leva a crise e estagnação. De acordo com a escola FRP, a taxa de lucro cai ao longo de cada ciclo industrial ao passo que a composição do capital aumenta, enquanto a alta demanda por força de trabalho durante a prosperidade impede que os capitalistas aumentem a taxa de mais-valia. A taxa de lucro cai e eventualmente diminui também a massa de lucro. Os capitalistas então diminuem o investimento, o que leva à crise/estagnação. A crise é deflagrada pelas dificuldades crescentes de produção de mais-valia.

A única saída dentro dos marcos do capitalismo, segundo a escola FRP, é a destruição do capital excedente e o aumento do desemprego, que restauram as condições favoráveis à produção de mais-valia. Um drástico aumento na taxa de mais-valia restaura a taxa de lucro e permite que a massa de lucro cresça novamente, resolvendo a crise.

Mas esse processo pode demorar anos, se não décadas. Tentativas do Estado de combater uma crise seguindo políticas “keynesianas” apenas adia o inevitável dia do acerto de contas. De modo semelhante, quaisquer ganhos que os trabalhadores tenham em sua luta durante esses períodos de baixos lucros, crise e estagnação só piora a crise ou estagnação. No fim, segundo a escola FRP, a única saída de cada período sucessivo de crise-estagnação é ou uma revolução socialista ou um aumento massivo da taxa de lucro resultante de uma destruição massiva do capital excedente combinado com uma grande derrota histórica da classe trabalhadora.

Ambas as escolas, apesar de suas teorias conflitantes de crise/estagnação, percebem que o crédito desempenha um papel na real formação das crises. Ambas as escolas destacam o fato de que especialmente desde a Segunda Guerra o montante total de crédito pendente cresceu mais do que o PIB dos grandes países imperialistas. Como resultado, a dívida pendente total é hoje maior do que o PIB anual das maiores nações capitalistas.

Portanto, ambas as escolas, Monthly Review e FRP, concordam que crises de crédito tais quais a de 2008 – comparável apenas à crise de crédito de 1932-33 – surgem da incapacidade da produção de acompanhar o crescimento do crédito. (6) Ambas as escolas de teoria das crises concordam que a inabilidade do capitalismo de desenvolver a produção industrial no mesmo ritmo em que expande o montante da dívida pendente esteja por trás da transformação da estagnação em crise aguda. Nesse sentido, ambas a Monthly Review e a FRP veem as crises capitalistas modernas como crises de subprodução, não crises de superprodução.

Deve-se ter em mente que o PIB não mede a riqueza total da sociedade, mas o valor de “bens e serviços,” nos termos dos economistas burgueses, vendidos em determinado ano. Grosseiramente, isso representa, em termos marxistas, c + v + s, em que c representa o valor do capital constante consumido em determinado ano – não C, a quantidade total de capital fixo que existe – v, o montante total de dinheiro gasto com salários para a produção de mercadorias que são vendidas ao longo de um ano e então gasta por trabalhadores em bens de consumo, e s, a mais-valia total consumida produtiva e improdutivamente pela classe capitalista e seus dependentes, incluindo o governo, ao longo de um ano.

A riqueza total da sociedade é na verdade muito maior do que o produto mundial bruto, porque o PIB deixa de fora o valor do capital fixo que não é consumido – depreciado – no curso de um ano. Economistas dificilmente tentam medir o valor dessa riqueza total ou a razão entre a dívida pendente total e a riqueza total da sociedade, atendo-se ao PIB.

Eu (a escola da superprodução) acredito que a causa base das crises generalizadas modernas seja a superprodução de mercadorias de todos os tipos em relação a uma mercadoria em particular, o material monetário – ouro na prática, mas teoricamente qualquer mercadoria que sirva como dinheiro. Essas crises de superprodução e os períodos associados de estagnação/depressão que as seguem têm o efeito de desacelerar o desenvolvimento da reprodução capitalista ampliada.

No longo prazo, isso mantém o desenvolvimento da produção dentro dos limites do mercado – isto é, das relações capitalistas de produção. O resultado disso é que o crescimento econômico é muito mais lento do que a ciência e a tecnologia modernas permitiriam se os limites capitalistas à produção fossem eliminados.

Como as crises se desenvolvem

Em certo ponto do desenvolvimento capitalista, o conflito entre o papel do dinheiro como meio de circulação – demanda – e seu papel como a mercadoria que atua como medida de valor de todas as outras mercadorias em termos de seu próprio valor de uso torna a superprodução periódica de mercadorias não só possível, mas também inevitável. A prosperidade traz consigo preços crescentes – a demanda excede a oferta nos preços correntes, o que torna a produção de material monetário relativamente e em certos momentos até absolutamente não lucrativa. A produção de dinheiro cedo ou tarde diminui.

Isso é claramente ilustrado pelo exame da história da produção aurífera. Por exemplo, a produção de ouro diminuiu da virada do século XXI até 2008. Mas após o pânico de 2008, ela voltou a crescer e atingiu nível recorde. Esse é o padrão geral que se observa sempre que uma grande crise é deflagrada e está bem documentado em estatísticas concretas.

Isso significa que qualquer desenvolvimento vigoroso do sistema de reprodução capitalista deve levar a uma situação em que a taxa de crescimento do material monetário mundial desacelere. Portanto, sempre que a reprodução capitalista procede com vigor o suficiente, chega um ponto em que a quantidade de valor de troca na forma de material monetário crescerá em um ritmo mais lento do que o valor de troca que existe na forma de preços das demais mercadorias. Esse valor de troca, assim como o valor de troca que existe na forma física do dinheiro, é medido em termos de valor de uso da mercadoria-dinheiro – peso em ouro. Em cada ciclo industrial, portanto, uma superprodução geral de mercadorias se desenvolve em relação à mercadoria que serve como dinheiro.

O capitalismo reage a essa superprodução geral relativa de mercadorias de três modos

1) O primeiro modo é a aceleração da velocidade de giro de peças individuais de dinheiro. No despertar de uma crise, há sempre uma grande quantidade de dinheiro ocioso – poder de compra em potencial – que não está gerando poder de compra porque os capitalistas que o controlam não o gastam. No entanto, conforme uma expansão econômica cíclica toma corpo, os capitalistas são obrigados a gastar seu dinheiro – investi-lo – cada vez mais. Ao passo que cresce a taxa e a massa de lucro devido à capacidade de uma vez mais realizar a mais-valia sendo produzida, os capitalistas tomam proveito dessa situação investindo seu dinheiro em ritmo acelerado. A “recuperação” se retroalimenta.

A parte do capital monetário que é transformada pelos capitalistas em capital variável – força de trabalho comprada – põe dinheiro de volta nos bolsos dos trabalhadores antes desempregados, permitindo que eles comprem mais mercadorias. Conforme o mercado vai se expandindo, trabalhadores adicionais são contratados pelos capitalistas, levando os níveis de emprego a atingirem marcos recordes. Quando esses novos empregados gastam seus salários, aumenta a demanda.

Isso é o que os economistas keynesianos chamam de efeito acelerador. Quanto mais a produção aumenta, mais a demanda cresce. Mas só até certo ponto. Eventualmente, a oferta de dinheiro é totalmente mobilizada e a velocidade de rotação do dinheiro atinge seu limite. No fim das contas, uma peça monetária só pode fazer uma compra por vez.

2) A quantidade de “dinheiro vivo” – papel moeda corrente, dinheiro do banco central e, no passado, dinheiro metálico – necessária para circular as quantidades crescentes de mercadorias é reduzida a um mínimo através de acordos de liquidação. Aqui o sistema bancário cumpre o papel central. Uma porcentagem decrescente de pagamentos deve ser feita em “dinheiro vivo” pelos bancos em nome de seus depositários. Os bancos cada vez mais simplesmente transferem depósitos do comprador ao vendedor. Como resultado, a demanda por dinheiro vivo por parte dos clientes de bancos cai tendendo a zero. Parece estar surgindo uma “sociedade sem dinheiro.”

Em países cujo sistema bancário é pouco desenvolvido, uma quantidade muito maior de dinheiro – seja papel-moeda e moedas fracionárias ou moedas de ouro e prata como antigamente – é necessária em relação a países com sistemas bancários desenvolvidos.

Aqui os bancos desempenham um papel verdadeiramente – e talvez inadvertidamente – revolucionário. É revolucionário porque permite que a produção cresça – não indefinidamente, mas por períodos de tempo consideráveis – muito além dos limites do que as relações capitalistas permitiriam de outro modo. E quanto maior e mais centralizado o sistema bancário, e quanto mais as contas bancárias são popularizadas, menos dinheiro vivo é necessário. Ao passo que nos tornamos uma “sociedade altamente bancária,” a economia passa a poder operar com quantias cada vez menores de dinheiro em espécie.

3) Conforme o sistema bancário se desenvolve, tornando-se, nos termos de Marx, o “pivô do sistema de crédito,” [página 632 de O Capital Livro III – Boitempo editorial, 1ª edição] o crédito cada vez mais separa o ato da compra do ato do pagamento. Os bancos não só economizam a quantidade existente de dinheiro, eles suplementam a oferta de dinheiro vivo com dinheiro creditício. A maior parte da oferta monetária hoje em dia consiste em dinheiro creditício criado pelo sistema bancário, ao invés de dinheiro de fato.

Por exemplo, quando você abre sua conta corrente e recebe um cartão de crédito, o banco cria um saldo imaginário adicionalmente ao dinheiro depositado. Hoje em dia, pode-se usar a parte imaginária de sua conta bancária – através de seu cartão de crédito ou smartphone – para comprar um simples café. O banco paga a cafeteria transferindo uma parte do seu depósito imaginário na conta do vendedor. No fim do mês, você reembolsa o banco cancelando uma parte da sua conta imaginária.

Resta, no entanto, um aspecto disso que nunca poderá ser superado. Dinheiro creditício pode substituir “dinheiro vivo” só enquanto seus donos não exercerem seu direito legal de converter seu dinheiro creditício em papel moeda corrente. Enquanto tudo vai bem, poucos tentam fazê-lo, uma vez que o dinheiro é cada vez menos necessário e o dinheiro creditício é mais conveniente. Além desse último ser mais difícil de ser roubado.

Na base dessa grande massa de dinheiro creditício, mais crédito é criado. Dívidas, ao invés de serem pagas, são simplesmente “roladas.” Os limites do crédito parecem ser os limites da produção. Mas em última instância, as dívidas criadas pelo sistema creditício devem ser pagas em dinheiro e não em mercadorias (não monetárias).

No momento em que os donos do dinheiro creditício começam a duvidar que seu crédito – as contas bancárias – possa ser convertido em “dinheiro vivo,” o jogo acaba. De repente, “o dinheiro em espécie reina” novamente e todo o “sistema artificial de liquidação de pagamentos,” a que Marx se refere no Volume III d’O Capital, construído sobre a base do crédito, desmorona. A crise de superprodução generalizada surge e emerge à superfície na forma de armazéns cheios de mercadorias invendáveis, fábricas fechadas, trabalhadores ociosos porque “demais” foi produzindo, além da desaceleração do comércio internacional.

Mas não haverá um quarto método de prevenir o surgimento de uma crise? O que impede a “autoridade monetária” – o banco central – de criar “dinheiro vivo” o suficiente na forma de papel moeda e moeda do banco central para prevenir a deflagração de uma crise de superprodução? O governo não conseguiria, trabalhando junto com o banco central, criar um montante necessário de demanda monetariamente efetiva para absorver a produção total de mercadorias a preços lucrativos?

É claro que se for criada demanda demais, de modo que a demanda exceda a oferta de mercadoria nos preços correntes, há subida dos preços e inflação. Mas não deveria ser possível “manejar” a demanda de modo que haja sempre demanda suficiente para absorver a preços lucrativos as mercadorias sendo produzidas e manter um estado de “quase pleno emprego”?

Se a reprodução capitalista ampliada falha em M’ – D’, não seria devido a “erros” da autoridade monetária ou do governo ou porque a autoridade monetária está deliberadamente tentando aumentar o desemprego para baixar salários e prevenir uma crise de superprodução absoluta de capital? Nesse caso, só precisaríamos de um governo progressista que realmente acreditasse em pleno emprego, o que levaria o banco central a também acreditar no pleno emprego. (7)

No fundo, essa era a posição de John Maynard Keynes. Eu penso que tanto a Monthly Review quanto a escola da queda da taxa de lucro aceitam esse argumento. Mesmo que crises de superprodução generalizada possam teoricamente ocorrer, não haveria modo fácil de evita-las? Se elas ocorrem mesmo assim, elas devem ser algo mais do que crises de superprodução generalizada de mercadorias. Isso é senso comum, não é?

É por isso, apesar do fato de que Marx e Engels, ao longo de seus trabalhos, refiram-se a crises do ciclo de negócios como “crises de superprodução,” nossos marxistas atuais, sejam da Monthly Review ou da escola FRP ou outras escolas – exceto pela “escola de superprodução” deste blog – cuidadosamente evitam descrever as crises tais quais a de 2007-2009 como crises de superprodução generalizada de mercadorias.

O erro aqui é que a própria natureza da produção de mercadorias requer que o dinheiro seja uma mercadoria, não simplesmente “papel moeda corrente.” Papel moeda – dinheiro fiduciário – é certamente possível, mas apenas como representante da circulação de dinheiro real. A habilidade da autoridade monetária de criar papel moeda em termos de poder de compra real é limitada não pela quantidade total de mercadorias, como pressupõem ambos os economistas burgueses e marxistas atuais, mas pela quantidade total de material monetário na forma de alguma verdadeira mercadoria-dinheiro – na prática, barras de ouro – que existem no mundo em determinado momento histórico.

Quando as autoridades monetárias permitem que a quantidade de papel-moeda, medida em termos de dólares americanos, libras, euros etc., cresça mais rápido do que a quantidade da mercadoria-dinheiro, cedo ou tarde o papel-moeda sofre depreciação diante do material monetário. Quando o processo progride até certo ponto, a inflação consome o próprio poder de compra que a autoridade monetária está tentando criar “do nada” ao invés de a partir de ouro sólido produzido por trabalho humano. É a incapacidade de compreender isso que tem impedido a maior parte dos marxistas atuais de desvendar completamente o enigma das crises capitalistas modernas.


Notas:

1) É um exagero considerável descrever a posição deste blog como uma “escola” atualmente, apesar de eu esperar que ele irá fundar as bases de tal escola no futuro. Na verdade, este blog pretende reviver a “escola da superprodução da teoria das crises,” que eu acredito ter sido a escola à qual os próprios Marx e Engels pertenciam.

Afinal, diferentemente dos adeptos das escolas FRP e da subconsumista-Monthly Review, Marx e Engels repetidamente e até o fim de suas vidas referiram-se às crises capitalistas cíclicas como crises de superprodução geral relativa de mercadorias ou apenas abreviadamente crises de superprodução.

2) Esse panfleto de Marx constitui a defesa clássica do sindicalismo do fundador do socialismo científico. Foi originalmente preparado por Marx não como um panfleto, mas como um discurso a ser dado no Conselho Geral da Associação Internacional de Trabalhadores – também conhecida como Primeira Internacional – sediada em Londres em junho de 1865.

O discurso era uma resposta ao senão completamente esquecido John Weston, que era membro do Conselho Geral. Weston acreditava que os sindicatos não poderiam melhorar as condições dos trabalhadores, assim como alegam a maioria dos economistas burgueses hoje. De acordo com Weston, qualquer aumento dos salários não só aumentaria os preços como também prejudicaria outros ramos da indústria. Enquanto eu não chegaria ao ponto de alegar que a posição de Weston seja idêntica aos argumentos da atual escola da queda da taxa de lucro da teoria das crises – a posição de Marx a respeito da queda da taxa de lucro não seriam publicadas ainda por muitos anos e o debate não era sobre a teoria das crises como tal – há, do meu ponto de vista, paralelos perturbadores entre a posição de Weston e alguns dos argumentos apresentados pela escola FRP.

Depois da morte de Marx, o texto do discurso foi encontrado e transformado em panfleto por Eleanor, sua filha. Além de dar uma marcante prévia do Volume I d’O Capital, que estava próximo de ser publicado, Marx não só defende como também indica as limitações da luta sindical. Apesar do fato de 150 anos terem se passado desde que Marx deu seu discurso no Conselho Geral, o panfleto é extremamente atual hoje e como tal deveria ser minuciosamente estudado por todos os sindicalistas e marxistas de hoje.

3) Suponha que a jornada de trabalho seja de oito horas e a taxa de mais-valia seja de 100%. Os trabalhadores trabalham por quatro horas para si mesmos e quatro horas para os capitalistas e proprietários de terras. Agora, sem qualquer mudança no salário diário, suponha que a jornada de trabalho seja estendida para 10 horas. Os trabalhadores trabalharão então por quatro horas para si mesmos e seis horas para os capitalistas e proprietários de terras. Haveria um aumento no que Marx chamou de mais-valia absoluta.

Agora, suponha que a jornada de trabalho se mantenha a mesma, assim como os salários diários em termos reais, mas alguma invenção faz com que o tempo necessário para a produção do equivalente aos meios de subsistência para a reprodução da força de trabalho seja de apenas duas horas, e não quatro. Os salários reais mantendo-se inalterados, os trabalhadores trabalharão então apenas duas horas para si mesmos e seis horas para os capitalistas e proprietários, assim como no exemplo anterior. Marx chamou isso de aumento na mais-valia relativa.

A teoria de Ricardo previu uma queda, e não um aumento, na mais-valia relativa. Na realidade, o desenvolvimento capitalista desde os tempos de Ricardo se caracterizou por um crescimento tremendo da mais-valia relativa, exatamente o oposto do que ele havia previsto.

4) Essa é a famosa negação da negação à qual Marx se refere. Nas primeiras fases da sociedade humana, não havia classes. Mas todos viviam na pobreza. Com o advento da sociedade de classes, que permitiu que alguns escapassem da pobreza, mas às custas da grande maioria, que era forçada a realizar trabalho não pago para a classe dominante. Essa era a negação. Mas devido ao tremendo aumento da produção e desenvolvimento científico e tecnológico que ocorreram durante a era capitalista, tornou-se possível livrar-se da divisão da sociedade em classes, e chega-se à negação da negação. Isto é, não se trata do retorno ao comunismo original com pobreza universal da sociedade humana antiga, mas de um comunismo de abundância em que todos podem desenvolver suas potencialidades.

5) É possível, caso o capitalismo e o aquecimento global prossigam livremente, que a produção agrícola em algum momento entre em colapso, levando a uma fome massiva. Tal seria certamente uma crise extremamente severa de reprodução capitalista ampliada, mas não seria uma crise de superprodução geral relativa de mercadorias.

6) Crises de crédito causadas pela subprodução, assim como superprodução, são possíveis e de fato ocorrem. Por exemplo, retomando nosso exemplo do pomar de maçãs, o fazendeiro capitalista pode ir à falência se “maçãs demais” forem produzidas e seus preços caírem, mas também se nenhuma maçã for produzida devido à geada tardia de primavera e o fazendeiro não tiver nada para vender.

7) Economistas keynesianos explicam que a criação de grandes montantes de “dinheiro vivo” na forma de papel-moeda corrente e dinheiro do banco central pode não ser suficiente para garantir o pleno emprego. Os capitalistas, afinal, tendem a entesourar dinheiro durante a crise e eles continuam a faze-lo ao longo da fase e estagnação que se segue à crise. A resposta seria então que o governo pegasse emprestado parte desse dinheiro entesourado nos bancos, gastasse, e então criasse armasse o motor da recuperação. No entanto, essa situação só surge uma vez que a crise de superprodução já tenha sido deflagrada. Se, através de uma “política monetária correta,” fôssemos capazes de evitar a crise, a estagnação não se desenvolveria e a preparação do motor Keynesiano seria desnecessária.

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