A noção de obstáculo epistemológico em Bachelard

Por Delia Irusta, via Papeles de nombre falso, traduzido por Matheus Motta

Os debates sobre epistemologia animaram proficuamente os pensadores de meados do século XX, sobretudo na França. Canguilhem, Foucault, Lecourt e Bachelard foram capazes de influenciar não apenas este campo do pensamento, mas a própria filosofia e as ciências sociais. No presente artigo, Delia Irusta nos apresenta as noções básicas do pensamento de Bachelard atreladas ao conceito de obstaculo epistemológico.


Introdução

Os motivos para a escolha do autor e tema têm a ver com um gosto e várias preocupações, todas de longa data. O gosto nos levou ao primeiro e as preocupações ao segundo.

O primeiro contato – quase duas décadas atrás – com as obras de Gaston Bachelard (1988) e de Georges Canguilhem (1971) despertou uma especial atração por elas: sua originalidade, sua profundidade, sua beleza. E uma espécie de humanismo que permitia olhar fora das interpretações marxistas que até então nos confinavam, sem estar atrelado necessariamente a um subjetivismo tendencioso e acrítico. Foi possível evitar racionalizações infrutíferas e encontrar explicações satisfatórias para muitas questões.

A leitura de Lecourt (1974) nos levou a pensar que esta afinidade com dois autores na sua visão vinculados (Bachelard, Canguilhem e Foucault se sucederam na cátedra de História das Ciências na Universidade de Paris) guardava relação com o materialismo bachelardiano – entre outras características por ele inauguradas – que nos conectava (não ousaria afirmar que em massa) com o materialismo cultural proposto por Marvin Harris na Antropologia.

A drástica crítica de Vadée (1977) contra o idealismo bachelardiano nos obrigou a opor-nos, e depois, poder chegar a esclarecer ao menos alguns dos componentes bizarros da eclética formação que tivemos (Marvin Harris considera o ecletismo o pior dos pecados epistemológicos) (Harris, 1985) passou a ser também um motivo para este trabalho.

A perspectiva dos críticos de Bachelard, esclarecendo, não nos impediu de manter aquele sentimento de que Bachelard e Canguilhem têm a ver com nosso caminho, ou pelo menos com nossa companhia, e desenvolvimentos posteriores como o de Bourdieu (1986) são estimulantes neste sentido, uma vez que a epistemologia das ciências sociais não está suficientemente desenvolvida em nosso país.

Os motivos para a escolha do tema, por sua parte, tem a ver com os obstáculos frequentes na prática da docência e da investigação. Encontro explicações para eles em três ordens de fatores:

Em primeiro lugar, nossa formação universitária de país dependente: subordinada, atrasada, dogmática e enciclopédica, que no caso particular da Antropologia – especialmente a social e cultural – teve de ter sido trabalhosamente forjada fora da Universidade, sobre o patrimônio herdado da “alma professoral”. Por exemplo, não estudamos epistemologia das ciências sociais, não fomos formados na investigação, e sempre bebemos em fontes de pelo menos duas décadas atrás em relação ao que se discute não no primeiro mundo, mas em nosso próprio continente. Somente para o assunto em questão, as discussões de Lecourt e Valadée sobre Bachelard, a aplicação de sua tese na Sociologia por Bourdieu, e os trabalhos de Castells e de Ípola (1981) sobre metodologia e epistemologia das ciências sociais, são do fim dos anos 60 e começo dos 70. Embora tenhamos superado este pesado condicionamento com a formação paralela, mantêm-se restos e inconsistências na forma de lacunas e incongruências, e se sente com pesar que se poderia ter tido uma perspectiva melhor em menos tempo.

Em segundo lugar, as consequências da história recente. Não mais no espectro visível e conhecido, mas no que Kordon e Edelman (1986) investigaram como “efeitos psicológicos da repressão política” e que, particularmente naquele que faz a produção intelectual, produziram inumeráveis inibições e distorções – entre outros efeitos – em nosso inconsciente, que funciona como um escorredor fantasmagórico daquilo que flui dele, de modo que quando vemos os fragmentos dispersos de nosso pensamento como palavras, muitas vezes a surpresa, o descontentamento, a impotência, a perplexidade, contribuem para nos paralisar mais.

Terceiro, obviamente, limitações pessoais; zona escura e final que – como a verdade que o poeta canta “o que ele não tem é um remédio” – embora haja compensações através da produção coletiva.

As dificuldades para a compreensão e produção dos conhecimentos que encontramos pessoalmente, nos estudantes, e em outros profissionais, nos levaram à busca de respostas na noção de obstáculo epistemológico, um dos conceitos nucleares e transumantes da epistemologia de Bachelard.

Embora os fatores acima mencionados fossem o objeto de uma sociologia e até mesmo de uma psicossociologia do conhecimento, queríamos esclarecer os obstáculos epistemológicos específicos, pelo menos através desse autor, que os tratou exaustiva, poética e magistralmente. Digamos de passagem, sobre as críticas que mostram Bachelard como relutante ou distraído em relação ao contexto sociocultural, que os textos que analisamos nos fazem pensar que não é tanto que sua ideologia estivesse ali, mas simplesmente que ali não estava o seu interesse central. O comentário sobre Buffon alude aos condicionamentos ideológicos de classe; as condições básicas de medição e seus instrumentos se referem às teorias de cada período; e o contexto sociocultural não deixa de ser pano de fundo do discurso, que assume um papel protagonista na influência atribuída aos educadores.

Como muitas vezes ocorre, procurando por uma coisa, se encontra outra. A releitura de “A Formação do Espírito Científico” tantos anos depois, quando as questões urgentes se referem à epistemologia das ciências sociais, remete a outros autores, que ultrapassam os limites deste trabalho. No entanto, é inevitável e útil aprofundar as fontes, já que Bachelard certamente abre uma frondosa linha de pensamento. Da mesma forma, confrontar Bachelard com seus críticos e com as categorias teóricas assumidas ampliou o horizonte de compreensão sobre a própria identidade intelectual, pessoal e geracional. Todos foram contribuições para o “contexto de descobrimento”.

Caracterização geral da obra de Gaston Bachelard

A obra de Bachelard encontra certa continuidade nas de Canguilhem e Foucault, e salta a uma irradiação ampla – tanto na Filosofia como na Epistemologia e nas Ciências Sociais – a partir de Althusser. Este fato que a maioria dos comentaristas analisa e pondera – claramente Lecourt – para outros como Vadée, é motivo de crítica por sua função ideológica de ocultação.

Tanto Vadée como Lecourt dedicaram seus interesses à obra em virtude da transcendência e vigência da mesma na produção filosófica e científica francesa, e em geral na epistemologia e a ciência social contemporâneas, a partir dos anos 70. Digamos, por outro lado, que as fundamentações de Vadeé sobre as contradições de Bachelard e sobre as do próprio Lecourt (sem reivindicar sua parte para rebaixá-las) são mais satisfatórias.

A obra de Bachelard tem em geral as características da produção intelectual francesa: racionalismo, erudição, amplitude e versatilidade estética. Em particular: originalidade, profundidade, beleza, ironia sutil, atitude polêmica e -o que todos os comentaristas apontam e alguns chamam- dualidade. No vasto leque de disciplinas e temas abordados, existem dois grandes grupos opostos que desconcertam a posterioridade: sua obra científica e sua obra literária, sua epistemologia é sua poética. Para Vadée, essa dualidade não é assim, pois encontra, abaixo dela e da variedade, a unidade da concepção filosófica e metafísica de Bachelard.

Segundo este autor, a obra é polifônica e politemática. Reúne aproximações por todas as considerações científicas, filosóficas, psicológicas, culturais, éticas, etc. É sistematicamente pluralizada, voluntariamente diversificada, mas com gosto pelo concreto e com uma abordagem profunda e autêntica.

Se caracteriza também pelo seu não-positivismo e anti-evolucionismo, que se destaca em “A formação do espírito científico” e é interessante nesse sentido tanto o que cita Reichenbach, quanto o que não se centra na crítica ao positivismo , mas no desenvolvimento de uma posição original e própria. Esta diferença de atitude em relação aos críticos marxistas, fazem apelo à obra de Bachelard.

Chegamos aqui ao ponto de flexionar opiniões: enquanto Lecourt descobre o materialismo bachelardiano, Vadée impugna seu idealismo, é também o caráter revolucionário que quase todos os comentaristas atribuem à epistemologia de Bachelard.

Materialismo ou idealismo? Filosofia ou epistemologia?

Lecourt nos apresenta a um Bachelard filósofo autodidata, que como tal, reflete livremente a partir da filosofia externa e da prática e ensino da história das ciências. Do materialismo dialético, ele considera controverso tanto o racionalismo francês em sua vertente espiritualista, como no positivismo, com poucos adeptos, mesmo na época de Bachelard, na filosofia e na ciência oficiais francesas.

Também a partir do materialismo, Vadée afirma em sua tese principal que há uma filosofia de Bachelard que é essencialmente um novo idealismo, apresentado sob a forma e sob a capa de uma “epistemologia” que pensa ser capaz de se desenvolver para além das oposições filosóficas tradicionais. Esse idealismo filosófico é delineado ou se oculta sob os vários nomes de polifilosofismo, sobrerracionalismo, filosofia “de segunda posição”, “racionalismo aplicado”, “materialismo racional” ou mesmo “idealismo discursivo. Mas mesmo sua “filosofia do não” nunca poderia ser ausência de filosofia ou não-filosofia.

Embora Bachelard – continua – tenha rompido efetivamente com o espiritualismo -a forma dominante do idealismo francês- de nenhuma maneira ele poderia exceder estes marcos. Suas posições e teses sobre as ciências, como por exemplo seu papel cultural progressista, sua relação com a técnica e a socialização do trabalho científico, assim como questões centrais na “teoria” da ciência, como a interpretação indeterminista dos descobrimentos da metafísica, já eram corriqueiros e até dominantes, por isso não é um absoluto criador das mesmas. Simplesmente as retoma e dá alcance filosófico e proteção ideológica, mantendo a grande corrente racionalista francesa.

A imagem de um Bachelard não filósofo deve ser rejeitada -afirma-. Antes,nos deparamos com um novo racionalismo, a mais recente variante do idealismo, através de teses que nada têm de novo e que estruturam não somente sua obra epistemológica, como também a “filosófica”, estética e de crítica literária. Da mesma forma, Vadée mostra toda uma metafísica bachelardiana, a qual -e em particular as teses metafísicas sobre o tempo – fazem a união de toda a multifacetada obra (Vadée, 1977). Neste sentido, Vadée põe em evidência com muita clareza o que para todos os comentadores, incluindo Lecourt, tem sido uma fonte de perplexidade e quase mistério.

Bachelard considera as filosofias tradicionais -e por extensão a produção filosófica em geral- atrasadas em relação à produção científica. A concepção de Razão nessas filosofias é fixa, imóvel, preguiçosa no pensar e não leva em conta o efeito do conhecimento científico sobre a estrutura espiritual. Além disso, torna-se obstáculos ao conhecimento racional.

Rechaça, portanto, a jurisdição da filosofia sobre as ciências, um fato que, para Lecourt, inegavelmente significa que Bachelard muda o campo filosófico, abandonando o terreno das filosofias idealistas e as teorias do conhecimento delas. Por outro lado, para Vadée, embora seja o lugar justo para a crítica de Bachelard aos filósofos, é também o lugar de sua filosofia (e de sua metafísica) que se provem sua posição epistemológica que valoriza as ciências e especialmente as teorias científicas contemporâneas, mas de maneira alguma fora da filosofia.

Para Lecourt, o princípio teórico preciso e profundo da epistemologia de Bachelard não vem do campo filosófico, mas da concreta história das ciências, o que não implica uma anti-filosofia, mas, nas palavras de Bachelard, no projeto de “constituir uma filosofia apropriada às ciências contemporâneas” e “dar à ciência a filosofia que ela merece”.

Vadée vai ainda fundo e considera a epistemologia bachelardiana como o centro de irradiação de todo o seu trabalho, estendido em direções é domínios altamente variados e inesperados.

A história das ciências não é evolutiva nem cumulativa, procede por saltos, mutações, “rupturas” e contradiz a Verdade das filosofias fechadas, que são sempre desmentidas pelos avanços científicos. Isso, no entanto, não leva Bachelard a um relativismo das verdades, mas sua visão do progresso científico enfatiza os momentos de erros, fracassos e dúvidas, que caracterizam a concepção que ele afirma estar em aberto. Esta é a sua interpretação das “revoluções científicas”, das quais a filosofia deveria extrair “ensinamentos”.

O que Lecourt considera o “núcleo filosófico”- não explícito, mas inferível- da epistemologia de Bachelard, é um conjunto de teses, a primeira e mais importante das quais é a da objetividade, que constitui o pressuposto de suas análises tanto na física quanto na química, associado à noção de “valor epistemológico”. Em virtude delas, a filosofia da cultura científica deve aceitar a reorganização permanente do conhecimento que produz as verdades científicas, já que estas têm garantia de racionalidade e objetividade em virtude de sua própria e autônoma dinâmica.

Para Lecourt, esta tese é revolucionária na medida em que “a objetividade dos conhecimentos é pensada como a do fundamento da verdade (definida como “concordância da mente é da coisa”) do conhecimento (Lecourt, 1974, p.60). O desenvolvimento sistemático desta questão constitui o “conteúdo” da “teoria do conhecimento” de Bachelard, em ruptura com as filosofias idealistas modernas: “Ao apoiar-se na tendência espontaneamente materialista da filosofia dos cientistas comprometidos com sua prática, se cria a obrigação de construir sua estrutura epistemológica em outro campo da filosofia: no campo do materialismo.” (Idem, p. 61)

Duas teses relacionadas com a anterior se referem à questão da Verdade: “A verdade científica é uma verdade que tem um futuro” e “Os acontecimentos da ciência se encadeiam em uma verdade que aumenta incessantemente” (Idem, p. 61-63) com a qual se afirma que as ciências produzem verdade, aceitáveis a partir de seus métodos de validação, que não podem ser contestadas pelas filosofias idealistas com argumentos gerais finalistas, e que a verdade científica pode ser considerada “absoluta” não  no sentido de ser um ponto final, mas sempre produto de etapas de um processo de aproximação crescente (aproximação probabilística de Bachelard, segundo Garretar Mora) (1982). A ciência, diferente da filosofia, cresce incessantemente com novas verdades, num processo sem limites.

Nesse sentido, o conceito associado de “fronteira epistemológica” refere-se aos limites absolutos propostos à ciência pela filosofia e que, para Bachelard, é indício de um problema mal colocado e conduz a uma detenção momentânea do pensamento.

Vadée ressalta que a tese do conhecimento científico como essencialmente aproximado foi a primeira de Bachelard e que a categoria epistemológica de aproximação é central em sua obra ao longo de trinta anos, embora não tenha sido nessa época uma tese nova, o que Bachelard fez foi retomá-la. É neste ponto que Vadée aponta que Bachelard não distingue entre os diferentes termos que são: teoria do conhecimento, epistemologia e filosofia da ciência. Através de sua análise crítica, ele aponta que a ênfase está posta no método é não no real, no assunto, e isso marca a impossibilidade de Bachelard superar sua posição idealista.

Por outro lado, Lecourt, aceitando as características da filosofia kantiana presente em Bachelard, aponta para superar os limites da subjetividade do sujeito cognoscente e garantir a objetividade do pensamento científico, Bachelard recorre a um quase-sujeito que são as matemáticas, “sujeito do processo das ciências físicas”, às quais considera não uma mera linguagem, mas um pensamento; “Um pensamento seguro de sua linguagem” (Lecourt, 1974, p.89).

No entanto, desconcerta a Lecourt que nesta caracterização tão claramente dialética e subjetiva do processo científico, Bachelard dedique tanta atenção à psicologia do sujeito produtor de conhecimento, tema privilegiado de “A formação…” e recorrente em sua obra. Trataria-se de uma contradição e sobretudo a manifestação da “ilusão epistemológica de Bachelard” (Idem, p. 81), que não seria interna à sua epistemologia, mas externa, situada no plano do transcendente, na resistência que os componentes idealistas que persistem na filosofia de Bachelard opõem-se às suas teses materialistas; o revestimento do problema real: os valores ideológicos do sujeito produtor de ciência por uma explicação vinda de outro lugar.

Nenhum desconserto assola Vadée, para quem essa avaliação do pensamento matemático vem da avaliação prévia da indução como uma expressão da criatividade, portanto a imaginação, própria do idealismo, que atua como verdadeiro operador filosófico no discurso bachelardiano, e pelo qual ele consegue inverter a ordem das causas e manter a determinação da realidade pela teoria, do físico ao matemático, como o verdadeiro motor do conhecimento científico. “A indução, precisamente, é este ‘poder do espírito’ que anuncia entre as linhas a da imaginação, esta capacidade ‘inventiva’ que para Bachelard é a marca do pensamento humano em todos os domínios da cultura e não somente no da ciência.” (Vadée, 1977, p. 49)

“A chave da filosofia de Bachelard está em uma metafísica do tempo sobre a qual reside o vasto desenvolvimento posterior de uma filosofia da imaginação e do espírito que domina todas as concepções bachelardianas” (Idem, p.81).

Cabe esclarecer que Vadé, ao contrário de Lecourt, salta o obstáculo da dualidade e analisa a totalidade da obra, e portanto, suas influências recíprocas, o que nos parece mais correto, já que um pensador em suas contradições não é o mesmo que um pensador fragmentado.

Assim, a insistência de Bachelard em se apresentar como um racionalista em “abrir” a razão é superá-la, e sua necessidade de vincular esse racionalismo aberto com um certo materialismo, é mais propriamente um racionalismo aplicado, um materialismo técnico. E seria claro o vínculo entre a interpretação indeterminista na epistemologia (interpretação idealista) e a filosofia do tempo descontínuo (metafísica). De onde as numerosas correspondências entre todas as suas obras mostram um centro ativo de seu pensamento, do qual tudo irradia e para o qual tudo converge, que é a meditação sobre o tempo.

Assim, as famosas teses epistemológicas sobre as rupturas na história do espírito científico e da cultura e as teses sobre a história recorrente estão em relação direta com as da natureza descontínua do tempo, o instante “inovador” e o “tempo vertical” oposto ao tempo horizontal, que é o tempo do espírito.

Desta forma, em Bachelard, não há distância entre a posição anti-evolucionista na história das ciências (tempo puntiforme, causalidade psicológica universal e repetitiva); a posição antibergsoniana na ontologia (segundo Forrater Mora Bergson aceita a universalidade da evolução da vida e  considera a conceituação como falsificação da realidade e a posição antimaterialista na teoria da cultura (primazia do espírito, da consciência, dos valores). É, portanto, nas concepções sobre o tempo que devemos procurar a chave para uma compreensão dessa ideia de “ruptura” proposta por Bachelard, para a qual o foi julgado vinculado ao materialismo dialético, ao menos na epistemologia. (Idem, p. 104).

Isso não se dá somente na questão da continuidade ou descontinuidade do tempo, mas leva a sua objetividade, porque a prova da descontinuidade residirá essencialmente na subjetividade: o tempo como manifestação do real está reduzido ao instante presente como único e absoluto pela “identidade total” entre o instante presente e o real. O objetivo essencial da tese da descontinuidade absoluta do tempo é fundamentar a oposição entre o tempo horizontal (o da matéria ou da vida) e o tempo pensado (o do espírito é do psiquismo). Em relação a isso e com sua complexa teorização da causalidade eficiente e da causalidade formal, Bachelard obtém argumentos para desenvolver uma concepção de atividade espiritual concebida: 1, efetuada num eixo de tempo vertical (teoria do instante absolutamente puntiforme); e 2, absolutamente liberada de toda condição material (histórica, social ou outra). Seu interesse pelas ”causalidades espirituais” esclarecem seu esforço para constituir uma “psicologia do espírito científico”. Aspira inclusive à vida espiritual como pura estética, livre de qualquer determinação por coisas ou mesmo por pensamentos.

Vadée sintetiza: “Seus dois principais discursos (epistemologia e estética) são mais que homólogos: do ponto de vista filosófico, há apenas um discurso… idealista. É uma verdadeira filosofia do espírito no auge do seu tempo e a partir de aí se deduzem todas as correspondência que podem ser encontradas entre as diferentes partes de sua obra. … A dualidade da obra, ou melhor, sua pluralidade, … é a manifestação da tradução em forma idealista, em teses idealistas, de um conteúdo materialista concreto. A profissão de idealista em Bachelard se repete por todas as partes e todo seu trabalho consistiu em transpor  os novos ensinamentos materialistas, propiciadas pelo século XX em certo número de domínios, em um discurso idealista e em uma filosofia do espírito” (Idem, p.108). É por isso que Bachelard mantém sua concepção idealista do espírito, embora o faça em um contexto epistemológico renovado.

A nova metafísica e o novo idealismo bachelardianos, contém da mesma forma, sua própria filosofia de valores. Dado que a razão e a imaginação possuem formas ordenantes da matéria, às quais elas transcendem e que possuem um dinamismo autônomo, elas “tonificam a psique”. São então valores culturais o da cultura científica e o da cultura poética, em constante superação, e são esses valores culturais os que foram passados como valores epistemológicos ou valores de conhecimento, já que Bachelard se opõe permanentemente aos valores da convicção. Se sobrepõe aqui sua filosofia do espírito e sua moralidade científica. Desta forma, afasta-se tanto dos racionalistas, por falar de uma fenomenologia da alma, como dos espiritualistas, por sua insistência no racionalismo científico.

Isto se relaciona com a defesa do ideal racionalista clássico do conhecimento desinteressado, que é um dos significados do seu anti-realismo e anti-positivismo, acusando todos os positivismos, pragmatismos e materialismos de reduzir a ciência a restrições práticas ou utilitárias. Mas isso acontece porque não faz distinção entre uma explicação materialista das condições de existência da ciência e o valor teórico e progressista do conhecimento objetivo. Acredita que realistas e materialistas reduzem o segundo às primeiras, e suprimem, deste modo, o valor cultural que representa eminentemente o  novo espírito científico. Desta forma se apresenta -descreve Vadée- em pleno século XX, animado pelo ideal dos filósofos das luzes.

Outro ponto de discussão é o da dialética bachelardiana, que Lecourt aceita como tal, apesar das numerosas e diversas definições que o próprio Bachelard ofereceu. Leva ao pé da letra suas últimas teses, onde afirma que o processo de produção dos conhecimentos científicos é dialético (pois se mostram “vivos”, “francos”, “descontínuos”; avançando por “saltos”, “falhas” ou “rupturas”) e faz dessas declarações uma prova do materialismo de Bachelard.

Para Vadée, o uso do conceito é selvagem (a tradução mais correta seria silvestre) e, na melhor das hipóteses, polissêmico. Em todo caso e segundo Canguilhem “O que Bachelard chama de dialética é o movimento indutivo que reorganiza o conhecimento expandido de suas bases, onde a negação de conceitos e axiomas é apenas um aspecto de sua generalização” (Idem, p. 147). Se trata de dialéticas sobre o modelo de complementaridade, no plano conceitual, mas não há negação dialética na realidade. Dialetizar quer dizer simplesmente complexificar, pluralizar, desmaterializar. Mas não há prioridade da matéria no plano ontológico nem concepção de totalidade no plano gnoseológico.

Apesar de seu apoio na história, e seus conceitos de ruptura, reconstrução e revolução, não há causalidade fora do atemporal inconsciente. Se entende assim o uso da psicanálise como ferramenta conceitual para sua epistemologia, através da noção de um obstáculo epistemológico.

Psicanálise do conhecimento objetivo

Segundo Lecourt, a de obstáculo epistemológico, é uma “Noção construída para descrever (…) os retardos do processo de produção de verdades”, que oferece uma teoria “naturalista” da ideologia, já que os “falsos valores” impeditivos vêm do inconsciente (instintos), daí “… ao tomar como natureza uma ideologia da natureza, Bachelard naturaliza a ideologia” (Lecourt, 1974, p. 113) e a torna também a-histórica. No famoso exemplo de Goethe, o que o próprio Bachelard toma como “o impulso da natureza” nada mais é que a ressonância “afetiva” de uma representação ideologicamente determinada da natureza.

Em uma bela imagem Bachelard descreve uma “filosofia diurna” dos cientistas, que é o que guia seu trabalho de laboratório, e uma “filosofia noturna” que aparece na forma de obstáculos, e é a que tomam emprestada, ou a qual se infiltra sub-repticiamente, a filosofia dos filósofos. E ela não é autônoma, já que obedece a interesses que são externos a ela. Ele notou claramente essa realidade da prática da ciência e buscou sua explicação através da psicanálise. Deve-se notar que Bachelard tomou a psicanálise de maneira heteróclita, (isso é evidente em “A formação…”) a fim de esclarecer a questão dos obstáculos em sua epistemologia, e que a medida que avançou em sua “poética”, com seus estudos sobre a imaginação literária, foi distanciando das teses psicanalíticas até o ponto de chegar a criticá-las abertamente para adotar a ótica fenomenológica.

Além disso, ele começou a dissociar a teoria analítica e a ideia de terapia analítica, inaceitável na realidade da psicanálise, mas que também serviu para que não permanecesse apenas no esclarecimento dos obstáculos, mas também propor modos de superá-los.

Desta forma, é colocada uma intervenção; uma “terapia” filosófica é proposta. Mesmo quando, mais tarde, se afasta e rejeita a tese, ele retém essa ideia da necessidade de uma “psicanálise do conhecimento objetivo”. E é justamente a ideia de intervenção terapêutica- de um lugar exterior, como do médico-, reforçada pela ideia de neutralidade do terapeuta, para a qual Bachelard incorre na ficção de criar um lugar exterior ao seu âmbito de intervenção (a filosofia), negando deste modo o lugar real de onde fala, já que é na filosofia onde ele toma posição, e esse lugar externo imaginário cria a ilusão de que ele não é uma parte envolvida na intervenção.

Essa questionável dissociação, para Lecourt, pôde ser feita por Bachelard, pois cada parte desempenha um papel diferente em sua construção epistemológica. A teoria foi sendo deslocada pelo desenvolvimento de uma metafísica da imaginação através de sua poética, que questionava à psicanálise seu psicologismo e organicismo; seu determinismo psíquico; seu subjetivismo. Críticas respaldadas por uma teoria decididamente não subjetiva, não psicológica, uma teoria ontológica da imaginação ou, para utilizar os termos de Bachelard, uma Metafísica da Imaginação.

Em vez disso, “O modelo da cura analítica subsistirá porque lhe permite negar o lugar real do qual se fala sem obrigá-lo a restaurar o mecanismo das teorias do conhecimento: ao da jurisdição da filosofia sobre as ciências. Pode se dizer que aí está a pedra angular da ilusão epistemológica. Assegura sua coerência no ponto de menor resistência”. (Idem, pp. 119)

É interessante seguir esse desdobramento ou paralelismo dos dois tipos de produção. Em sua poética sustenta que “a imaginação produz pensamento”, isto é, é um produtor do ser e do pensar, ou seja, a primazia do pensamento sobre o ser (idealismo). Mas em sua epistemologia a tese da objetividade afirma a primazia do ser sobre o pensamento (materialismo). São afirmações de uma contradição irredutível, mas simétricas e isomórficas. O ponto de concordância foi proposto por Jean Hyppolite (citado por Lecourt): consistiria em reafirmar o sujeito absoluto que é a Imaginação sobre o “quase-sujeito” do processo de conhecimento científico que é a matemática. Hyppolite propõe explicitamente ver na “imaginação matemática” o ponto de acordo em que a unidade se realizaria em silêncio (ou seja, contra a opinião explícita de Bachelard).

Em suma, para Lecourt, da sua intenção de uma “teoria materialista do conhecimento”, “a ilusão epistemológica” bachelardiana é o preço de sua posição filosófica contraditória: o seu dispositivo filosófico descobre um campo teórico inédito, negado/rechaçado por toda tradição filosófica idealista: o da história do processo da prática científica, de suas formas e de suas condições. Mas essa descoberta é imediatamente abordada em suas obras pela persistência de uma concepção especulativa da filosofia. Ilusão que se fecha no projeto de “psicanálise do conhecimento objetivo”. Ilusão específica de Bachelard que se explica sua situação excepcional na tradição filosófica francesa e na corrente da epistemologia internacional. Através desta contradição, a obra de Bachelard, de fato, o mecanismo interno que rege todo o discurso epistemológico: o revestimento por teses filosóficas dos problemas científicos que marcam a história do processo de conhecimento.

Para Vadée, por outro lado, mostraria a crise da filosofia racionalista diante do progresso das ciências e da filosofia materialista, a possibilidade de uma história real do conhecimento por parte do racionalismo francês. LAs causas principais do erro são imanentes ao “ato epistemológico” e por isso é necessário procurá-las no plano psicológico. Embora ele rejeito o psicologismo é o subjetivismo, ele está muito distante de uma explicação naturalista ou materialista e mesmo de uma verdadeira explicação psicoanalítica, dos fundadores ou atual. Suas fontes inconscientes, no espírito, estão muito longe do imaginário freudiano e do desejo.

Novo ponto de partida

A síntese de Lecourt, em seu estudo sobre Canguilhem (Lecourt, 1987), coloca Bachelard como o primeiro a reconhecer que a historicidade é essencialmente pertinente ao objeto da “filosofia das ciências”. Este objeto é o sistema articulado das práticas científicas, um conjunto de relações historicamente determinadas de produção de conceitos.

Sua contribuição revolucionária na filosofia e epistemologia é a tese de que toda ciência produz, em cada momento de sua história, suas próprias normas de verdade. Esta verdade de Bachelard pode ser declarada: a) a determinação essencial de toda a filosofia, na medida em que implica como uma peça-chave na “teoria do conhecimento”, é a relação específica que mantém com as ciências; b) essa relação específica, mesmo adotando formas diferentes ou opostas (idealismo ou empirismo), é sempre uma relação de “deslocamento”, “distância” ou de “secessão” da filosofia dos filósofos em relação ao trabalho efetivo dos cientistas.

A noção chave é a de “obstáculo epistemológico”. A filosofia dos filósofos ocorre no imaginário, ao contrário dos cientistas que operam com objetos reais. Daí a proposta de realizar uma psicanálise do conhecimento objetivo, para defender-se das ilusões é descobrir a filosofia clara de sua prática real. Embora essa metodologia não tenha tido futuro, forçou a filosofia das ciências a um deslocamento revolucionário para o lugar onde nunca haviam estado, em que se unem cada prática científica e as ideologias que nelas intervêm disfarçadas de filosofia. Processo de luca ,que transcorre em uma história.

A síntese da Vadée, por outro lado, é que a leitura (e a ponderação) de Bachelard, especialmente por parte dos marxistas, é unilateral e baseia-se nas posições gerais dos novos idealismos epistemológicos. O preço é: 1, um rechaço da gnoseologia materialista do marxismo; 2. um ajuste recíproco do materialismo histórico e do racionalismo idealista de Bachelard. Lecourt seria um exemplo cristalizado dessa posição, num contexto em que a filosofia materialista marxista encontra novos adversários no próprio campo da racionalismo: estruturalismo, arqueologismo. 20 anos atrás (de 1975) teria contribuído para criticar o idealismo espiritualista, mas para revalorizar Bachelard hoje não só ajuda a crítica do idealismo atual, mas retarda o desenvolvimento do materialismo dialético, porque representa “o empiriocriticismo da nossa tradição nacional”.

A essa altura, esclarecemos algumas questões e surgem em consequência novas perguntas. É claro é coerente o argumento de Vadée em sua desmistificação de Bachelard, e em apontar as contradições daqueles que – como Lecourt- o acolhem do marxismo como um dos seus.

A ampla base desenvolvida por Vadée para desafiar Bachelard tem origem nos efeitos de seu pensamento e de seus seguidores. Da mesma maneira -obviamente sem uma fundamentação semelhante- procuramos dispensar os desenvolvimentos marxistas também de seus efeitos, das experiências sociais e pessoais das quais fomos testemunhas e protagonistas em nosso tempo histórico. Isso não implica negar o essencial da revolução marxiana e seu papel fundador na ciência social, mas sim buscar teorias de alcance geral mais explicativas e igualmente consistentes.

Nos perguntamos, no entanto, em que ponto estará hoje essa discussão de vinte anos de idade; por que sociólogos renovadores como Bourdieu puderam abrigar Bachelard na ciência social sem se envergonhar; o que podemos tomar de Bachelard sem pecar de ecletismo; e se essa opção realmente nos leva a um maior esclarecimento teórico e metodológico ou se devemos buscar em outro lugar.

Embora já estejamos prevenidos contra a obsessão da totalidade e seus efeitos perniciosos, como o dogmatismo e o sectarismo, estamos convencidos de que não se pode pretender compreender a realidade -física ou social- sem teorias filosóficas e científicas que respondam pela totalidade do existente. Nesse sentido, apesar da riqueza, amplitude e profundidade das investigações de Bachelard, não nos basta sua metafísica, e requeremos, seguramente de nosso racionalismo e materialismo (qualquer seja sua forma e sua mistura), outro tipo de explicações.

Por outro lado, ele explica mais e melhor do campo da antropologia o materialismo cultural que propõe Marvin Harris, concebido como estratégia de investigação “que combina o pragmatismo e empirismo anglo-americano com o melhor do marxismo, ou seja, o estudo marxiano das condições materiais como chave para a compreensão científica da vida social humana (Harris, 1985). Sua teoria geral sobre as semelhanças e diferenças socioculturais e a evolução das mesmas se apoia em pressupostos teóricos e epistemológicos explícitos, opostos aos de Bachelard como materialistas, dialéticos e evolucionistas, mas com pontos de encontro através do reconhecimento da necessidade de equilíbrio entre racionalismo e empirismo, entre teoria e ação, do respeito às regras gerais do método científico e da valorização da ciência como modo -embora não único- destacado e insubstituível de conhecimento do real.

No entanto, e aqui está a dúvida central neste ponto, a totalidade no nível das macroteorias nos deixa desconfortavelmente suspensos sobre a realidade, como a vivenciamos cotidianamente na prática do ensino e da pesquisa. Em outras palavras, a análise do micro não pode ser feita sem essa estrutura global, mas também não apenas com ela.

É clara a dificuldade de ampliar os arcabouços teóricos, sem incorrer em contradições grosseiras, e para encontrar caminhos inovadores. A metodologia, tal como a aprendemos, tornou-se um livro de receitas esquemático e, o que é pior, como um superego castrador. Os materialismos não nos esclarecem o que acontece “nas cabeças das pessoas” porque são insuficientes, e os idealismos ainda menos, porque são excessivos, ou excessivamente subjetivos e fantasiosos.

Consequentemente: Como manobrar uma espiral sem cair de seus extremos?

Aceitada a caracterização crítica de Vadée, deixamos nos portais de Filosofia e Epistemologia a discussão desses territórios, para analisar o que nos resta, do aporte de Bachelard e por quê. A partir desse trabalho peculiar que é “A formação do espírito científico”, tão concreta como estética, tão rigorosa como poética, “refinamos” um conjunto de reflexões metodológicas meticulosas e apreciamos o efeito estimulante de sua atitude intelectual, para a tarefa científica.

No que diz respeito ao porquê, acreditamos que a síntese de Harris apresentada acima , mostra pontos de convergência entre posturas tão opostas como as deste e Bachelard: o equilíbrio entre empirismo e racionalismo, que na linguagem musical poderia ser chamado de “a razão bem-humorada”; e em termos familiares “a razão bem usada”; a valorização positiva da ciência como bem cultural da humanidade, que em nenhum dos dois aparece como soberba ou desqualificadora de outros modos de conhecimento, mas é exigente com aqueles neste iniciados. Destacados expoentes de ambos os produtos mais valorizados da cultura ocidental, parecem muito menos etnocêntricos que muitos relativistas culturais.

Vejamos então as lições de Bachelard através da análise de “A formação do espírito científico”.

La experiencia científica

Bachelard afirma que a experiência científica é, acima de tudo, uma experiência que contradiz a experiência comum, que não é realmente composta, mas, no máximo, feita de observações justapostas, e, portanto, não pode ser efetivamente verificada. Isso continua sendo um fato; não pode nos dar uma lei.

É realmente impressionante que a epistemologia antiga tenha estabelecido um vínculo contínuo entre a observação e a experimentação, quando, na verdade, a experimentação deve se afastar das condições comuns de observação.

Essa distância proporciona uma crítica racional da experiência, que é solidária com a organização teórica da experiência, afirmação a partir da qual emerge uma recomendação metodológica: Tal método de crítica exige uma atitude expectante, quase tão prudente frente ao que é conhecido quanto para o desconhecido, sempre em guarda contra os conhecimentos familiares, e sem muito respeito pelas verdades acadêmicas.

a perspectiva de erros retificados é o que caracteriza o pensamento científico. Uma hipótese científica que não levanta qualquer contradição não está longe de ser uma hipótese inútil. O mesmo, a experiência que não retifica qualquer erro, que é meramente verdade, que não provoca debates, qual é o seu uso? (B: 13)

Nestes parágrafos, são sintetizados vários conceitos centrais na concepção de Bachelard: o corte entre pensamento científico e pensamento comum; o corte entre experiência e conhecimento dentro da própria ciência através da teoria, e da crítica como um método; o avanço científico ponderando o erro e não a certeza; o papel do conhecimento familiar, às vezes baseado na socialização da própria ciência, transformado em verdades dogmáticas e acadêmicas.

A interpretação racional é sempre aquela que coloca os fatos em seu lugar exato. É no eixo experiência-razão, e no sentido de racionalização, onde o risco e o sucesso se encontram ao mesmo tempo. Somente a razão estimula a pesquisa porque apenas ela sugere mais além da experiência comum (imediata e ilusória), a experiência científica (indireta e frutífera) (B: 19).

Do ponto de vista filosófico, poderíamos criticar o sempre como supervalorização da razão e, ao mesmo tempo, desvalorização da ideologia. Mas, do ponto de vista epistemológico, podemos tomar o valor do ensino metodológico por uma racionalidade bem utilizada, à qual aspira sempre o conhecimento científico e que lhe é característico em oposição a outros tipos de conhecimento.

O conhecimento do real nunca é imediato e pleno. O pensamento empírico é claro, imediato quando o aparelhamento das razões tem sido bem montado (B: 15).

Nesse sentido, Bachelard traça um caminho da experiência à abstração, cujo primeiro passo é a geometrização, primeira tarefa na qual o espírito científico se baseia, a meio caminho entre o concreto e o abstrato, no qual o espírito pretende conciliar as leis com os fatos. Por exemplo, colocar em série, ordenar, os acontecimentos decisivos de uma experiência.

Essa tarefa de geometrização sempre acaba sendo insuficiente; Essa primeira representação, sustentada em um realismo ingênuo, revela os vínculos com as representações familiares, destacando a necessidade de trabalhar abaixo, no nível das relações essenciais que sustentam os fenômenos. O pensamento científico é então arrastado para “construções” mais metafóricas do que reais, em direção a “espaços de configuração”.

E então, sendo que o concreto aceita a informação geométrica, já que o concreto é analisado corretamente pelo abstrato, a abstração seria o curso normal e fértil do espírito científico. Na evolução do mesmo, discernir um impulso que vai do geométrico, mais ou menos visual, para a abstração completa. A primeira representação geométrica dos fenômenos significa essencialmente colocar em ordem, e esta primeira ordem abre as perspectivas de uma abstração alerta e conquistadora.

A abstração limpa o espírito, ilumina-o, torna-o dinâmico (é de fato um valor cultural para Bachelard).

Por sua vez, o processo de abstração não é uniforme, não atinge seu objetivo em um momento, apresenta dificuldades. Essas dificuldades ou obstáculos epistemológicos podem ser estudados não apenas no desenvolvimento histórico do pensamento científico, mas também na prática de seu ensino, dado que “… os professores substituem as descobertas pelas lições” (B: 291).

Alma e espírito

O subtítulo de “A formação do espírito científico”: “Contribuição para uma psicanálise do conhecimento objetivo” indica o propósito do trabalho, que é analisar – superar os obstáculos que as forças psíquicas opõem ao conhecimento científico.

Bachelard os exemplifica longamente e com grande erudição em toda a sequência histórica: estado pré-científico (até o século XVIII), estado científico (até a Teoria da Relatividade e outras revolucionárias da Física), era do novo espírito científico (desde então), através do qual se observa uma evolução psicológica (B: 10) que permitiu o avanço da ciência superando esses obstáculos, os quais, no entanto, estão sempre presentes, ou melhor, espreitando, porque mesmo no novo homem existem vestígios do velho homem e em nós do século XVIII continua sua vida surda, como prova -metaforiza – da sonolência do saber, da avareza do homem culto ruminando incessantemente as mesmas conquistas, e tornando-se como todo avarento, vítima do acariciado ouro.

A memória tenta substituir o raciocínio, por isso adverte: “A paciência da erudição não tem nada a ver com a paciência científica” (B: 10)

Ele aconselha então que é preciso ter certeza em todos os momentos da vida mental, de poder reconstruir o saber e que apenas os eixos racionais permitem tal reconstrução:

todo conhecimento científico deve ser reconstruído em todos os momentos; … em todas as questões, para todos os fenômenos, é necessário passar primeiro da imagem para a forma geométrica e depois da forma geométrica para a forma abstrata, e percorrer o caminho psicológico normal do pensamento científico; … a partir das imagens, às vezes muito pitorescas da fenomenologia básica, veremos como e com que dificuldade se substituem essas imagens pelas formas geométricas adequadas. Não é de surpreender que tal geometrização, tão difícil e lenta, se apresente por muito tempo como uma conquista definitiva e que seja suficiente para constituir o sólido espírito científico, tal como aparece no século XIX. Você está muito ligado ao que foi conquistado dolorosamente. No entanto, precisaremos provar que essa geometrização é um estágio intermediário. (B: 11)

Fora de toda a correspondência histórica -ressalta- há uma espécie de lei dos três estados para o espírito científico, através da qual necessariamente passaria em sua formação individual:

1º O estado concreto, no qual o espírito é recriado com as primeiras imagens do fenômeno e se baseia em uma literatura filosófica que glorifica a Natureza, destacando a unidade do mundo e a diversidade das coisas.

2º O estado concreto-abstrato, no qual o espírito atribui à experiência física esquemas geométricos e se apóia numa filosofia da simplicidade. Entretanto, o espírito é mantido em uma situação paradoxal: é ainda mais certo de sua abstração, quanto mais claramente essa abstração é representada por uma intuição sensível.

3º O estado abstrato em que o espírito empreende informações voluntariamente subtraídas da intuição, voluntariamente desligadas da experiência imediata e até mesmo polemizando abertamente com a realidade básica, sempre impuras, sempre informe.

Até agora Bachelard fala sobre os obstáculos ao conhecimento objetivo, que são psicológicos, que podem ser traçados no processo de construção do conhecimento tanto histórico quanto individual, e que uma maneira de exorcizá-los é através da capacidade de reconstruí-los permanentemente através do raciocínio, através da imaginação criativa, não da memória dogmática.

Este espírito científico, contido por uma alma, mostra o espiritualista Bachelard de seus críticos, e também seu peculiar uso da psicanálise. É, no entanto, além de poético, claro, e permite a reflexão sobre tendências comuns no trabalho intelectual, que o prejudicam. Embora hoje nos expressemos em outro idioma; embora tenhamos conceitos psicológicos mais precisos; embora tentemos respeitar mais sua origem teórica do que ele; mbora poderemos a presença da ideologia, não deixa de ser interessante e atrativa a reflexão sobre as atitudes que sob a forma de “almas” nos apresenta:

A lei dos três estados do espírito científico corresponde a uma espécie de lei dos três estados da alma, caracterizados por interesses que constituem, de certo modo, sua base afetiva, e que precisamente uma psicanálise da cultura objetiva deve deslocar.

O aspecto afetivo da cultura intelectual é um elemento de solidez e confiança. O interesse vital na investigação desinteressada (primeiro dever do educador) é a força que permite sustentar a paciência científica, com a qual ela é vida espiritual e sem a qual está sofrendo.

O que Bachelard nos diz neste parágrafo? O espírito científico pode (deve) realizar a sua racionalidade pura -através do método proposto-, superando os obstáculos que lhe opõem a afetividade. Aquela que nos dá confiança e segurança, porque é o apoio de nossos preconceitos, de nossas opiniões, do conhecimento que alcançamos meticulosamente, de tudo que é doloroso modificar. Aquela que também é o motor para o saber.

Como se sustenta a árdua tarefa que foi escolhida, especialmente nas frustrações, fracassos e outros episódios habituais? Não acreditamos que Bachelard tenha sido alheio às múltiplas fontes de motivação das recompensas e dificuldades do trabalho intelectual, mas neste ponto ele estava interessado em destacar uma muito importante: o interesse vital pela investigação desinteressada, o primeiro dever do educador.

Parece hoje uma ingenuidade óbvia, até mesmo uma intencionalidade dissimulada, esta de investigação desinteressada, e talvez tenha sido também nos tempos de Bachelard; mas acreditamos que o que se pretende aqui são os sentimentos tão inconscientes quanto genuínos que impulsionam o desejo de conhecer e os valores que os acompanham. Sobre a performance há uma ética, que é uma restrição adotada voluntariamente e diante de cujas demandas há sempre um momento de escolha entre uma ação espúria e uma ação que deve ser “desinteressada”, não ideologicamente neutra, mas eticamente autentica. Da mesma forma, no exercício do ensino, a ação desinteressada não estaria em tal neutralidade ilusória, ou em um conhecimento vago, pelo próprio conhecimento, mas na base de suas próprias opções e na explicação fundamentada das opções alternativas.

Vejamos então quais almas são descritas por Bachelard, um tanto quanto ironicamente, e que encontramos diariamente perambulando entre nossos alunos, na opinião pública, e é claro, é amargo reconhecê-lo em nós mesmos, talvez em nós mesmos em primeiro lugar.

Alma infantil ou mundana, animada pela curiosidade ingênua, cheia de admiração diante do fenômeno menos instrumentado, entusiasmada em colecionar, presumindo seriedade, passiva mesmo na alegria de pensar.

Alma docente, orgulhosa de seu dogmatismo, fixa em sua primeira abstração, com toda sua vida apoiada nos êxitos escolares de sua juventude, repetindo cada ano seu saber, impondo suas demonstrações, entregada ao interesse dedutivo, apoio tão cômodo da autoridade.

Finalmente, a alma no processo de abstração e de quintessência, consciência científica dolorosa, liberta de interesses indutivos sempre imperfeitos, jogando o perigoso jogo do pensamento sem apoio experimental estável; perturbada a cada momento pelas objeções da razão, colocando incessantemente em dúvida um direito particular à abstração, mas como certo que a abstração é um dever, o dever científico, e uma posse finalmente expurgada do pensamento do mundo! (B: 12)

Cremos que está tão magistralmente expressado que bem poderia ser o texto de um texto de um cartaz de cabeceira ou de escritório. Sentimos a tentação de exemplificar, com os nossos e outros, cada um destes tipos, mas talvez seja neste texto e, em qualquer caso é um parágrafo para visitar frequentemente em “A formação…”

Bachelard continua assinalando, em sequência, o que deve ser a tarefa da filosofia das ciências, ou quiçá mais especificamente da epistemologia.

A tarefa da filosofia científica está bem delineada: psicanalisar o interesse, destruir todo utilitarismo, por mais disfarçado e elevado que seja, para dirigir o espírito do real para o artificial, do natural para o humano, da representação para a abstração.

O espírito científico necessita (sobretudo em nossa época) ser defendido; ser ilustrado […] de uma maneira normativa e coerente. Deve tornar claramente consciente e ativo o prazer da excitação espiritual no descobrimento da verdade. O amor pela ciência deve ser um dinamismo psíquico autógeno. No estado de pureza alcançado por uma psicanálise do conhecimento objetivo, a ciência é a estética da inteligência (B:12).

Correndo o risco de redundância, diremos que essa crítica do utilitarismo é por nós compartilhada, precisamente na atualidade.

A noção de obstáculo epistemológico

Para investigar as condições psicológicas do progresso da ciência, “devemos levantar o problema do conhecimento científico em termos de obstáculos”, que não são obstáculos externos, porque “é no próprio ato de conhecer, intimamente, onde eles aparecem, por uma espécie de necessidade funcional, as obstruções e as confusões. … causas de estagnação e até de regressão, causas de inércia que chamaremos de obstáculos epistemológicos “(B: 15).

se conhece na contramão de um conhecimento prévio, destruindo conhecimentos mal adquiridos ou superando aquilo que, no próprio espírito, impede a espiritualização. (B: 15)

Vale lembrar que isso já havia sido dito pelo arquétipo do cientista empírico do século XIX, pai nada menos que da teoria da evolução: “A observação deve ser feita a favor ou contra algum ponto de vista se tiver que prestar algum serviço “(Cit de Harris, 1985, pp.27). Sua convicção por parte de Bachelard parece confirmar a natureza progressiva e cumulativa do conhecimento científico; o apoio da filiação empírica de sua filosofia e sua epistemologia que permite conectá-lo inclusive com Harris; o sucesso de Vadée quando ele aponta (em vez disso, diminui) que as teses de Bachelard já eram atuais em seu tempo; e o desprezo de Bachelard por buscar e levar tudo que lhe permitiria avançar.

Voltando ao raciocínio de Bachelard, você não pode começar do zero para fundar ou aumentar o conhecimento; Diante do real, o que você acha que sabe claramente ofusca o que deve ser conhecido. “Quando se apresenta diante da cultura científica, o espírito nunca é jovem. É até muito velho, pois tem a idade de seus prejuízos.” (B: 16)

Ter acesso à ciência é rejuvenescer espiritualmente, é aceitar uma súbita mutação que tem que contradizer um passado. “A ciência, tanto em seu princípio quanto em sua necessidade de coroar, se opõe em absoluto da opinião. Se, em qualquer questão específica, ele deve legitimar a opinião, ele o faz por outras razões distintas das que apoiam a opinião; de modo que a opinião, por direito, jamais tem razão. A opinião pensa mal; não pensa; traduz as necessidades em conhecimento. Ao designar objetos para sua utilidade, ela se proíbe em conhecê-los. Nada pode se fundamentar em opinião: em primeiro lugar é necessário destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a superar.

O espírito científico nos impede de ter uma opinião sobre questões que não compreendemos e que não sabemos como formular com clareza. Antes de tudo, é necessário saber como colocar problemas na vida científica, os problemas não surgem por si mesmos. É precisamente esse sentido do problema o próprio do verdadeiro espírito científico. Para um espírito científico, todo conhecimento é uma resposta para uma pergunta. Se não houve pergunta, não se pode haver conhecimento científico. Nada é espontâneo. Nada é dado. Tudo se constrói. (B: 16)

Citando Bergson (1934): “Nosso espírito tem uma tendência irresistível para considerar mais claras as idéias que são mais úteis para ele.” As idéias conquistam assim uma clareza intrínseca e abusiva, se valorizam indevidamente. Às vezes, uma ideia dominante polariza o espírito em sua totalidade. Chega um momento em que o instinto formativo cede ao instinto conservador; o espírito prefere o que confirma seu conhecimento ao que o contradiz, prefere as respostas às perguntas e então o crescimento espiritual é detido.

Por instinto, entende aqui Bachelard as resistências feitas obstáculos epistemológicos, e referidas fundamentalmente ao conhecimento empírico, que é o do que se ocupa quase unicamente nesta obra… De uma maneira muito visível, pode reconhecer que a ideia científica muito familiar se carrega com um concreto psicológico muito pesado, que nela amassa um número excessivo de analogias, imagens, metáforas, e que pouco a pouco perde seu vetor de abstração, sua afiada ponta abstrata. Em particular, é cair em um vão otimismo quando se pensa que saber serve automaticamente para saber, que a cultura se torna tanto mais fácil quando está mais estendida e que no fim, a inteligência, sancionada por êxitos precoces ou por simples competições universitárias se capitaliza como uma riqueza material. Mesmo admitindo que uma boa cabeça pode escapar ao narcisismo e aos julgamentos do gosto, “pode-se dizer seguramente que uma boa cabeça é, infelizmente, uma cabeça fechada. É um produto da escola.” (B:18)

… “A crise do crescimento do pensamento implica uma reformulação total do sistema de conhecimento. Então a cabeça bem feita deve ser refeita. Mudança de espécie. Através das revoluções espirituais exigidas pela invenção científica, o homem se torna uma espécie mutante que não apenas precisa sofrer mutação, mas também sofre se não mudar. A modificação psíquica que implica a compreensão de doutrinas como Relatividade ou Mecânica das Ondas, levando em conta a verdadeira força da ciência pré-relativista, é um bom exemplo disso.

Frequentemente se repete que a ciência está ávida por unidade, que tende a unificar fenômenos de um aspecto diferente, que busca simplicidade ou economia nos princípios e nos métodos. Esta unidade seria encontrada em breve, se ela pudesse agradar a si mesma. Pelo contrário, o progresso científico marca suas etapas mais puras ao abandonar os fatores filosóficos da unificação fácil, como a unidade de ação do Criador, a unidade do plano da natureza, a unidade lógica, fatores que ainda atuavam na ciência do século. XVIII (B: 18)

Diante de uma experiência bem determinada, o espírito científico nunca se sente impedido de variar as condições, de deixar a contemplação do mesmo e buscar o outro, de dialetizar a experiência. É assim que a Química multiplica e completa sua série homóloga, até deixar a Natureza materializando corpos mais ou menos corpos hipotéticos sugeridos pelo pensamento inventivo. Em todas as ciências rigorosas, um pensamento ansioso desconfia das identidades mais ou menos aparentes, para exigir incessantemente maior precisão, ocasiões maiores para distinguir.

Determinar, retificar, diversificar, são tipos de pensamento dinâmicos que nos distanciam da certeza e da unidade. O homem animado pelo espírito científico, sem dúvida, quer saber, mas é, por enquanto, para interrogar melhor (B: 19).

Um obstáculo epistemológico é um contra-pensamento. O epistemólogo, diz Bachelard, (e qualquer um que tente entender, dizemos nós) deve se esforçar para capturar os conceitos científicos em sínteses psicológicas progressivas, estabelecendo respeito a cada noção de escala de conceitos, mostrando como um produz o outro, como estão ligados entre si. . Ele nos permite apreciar a eficácia epistemológica, o obstáculo superado.

É o esforço de racionalidade e construção que deve atrair sua atenção, inserindo idéias em sistemas de pensamento, medindo sua eficácia – do ponto de vista da razão evoluída – na evolução da ciência. Isto é diferente de uma história como um mero repertório de fatos, que não presta atenção às variações psicológicas na interpretação do mesmo texto, porque ao mesmo tempo, sob a mesma palavra, existem conceitos muito diferentes e a mesma palavra designa e explica ao mesmo tempo. A designação é a mesma, mas a explicação é diferente.

Coloquemos entre parênteses as críticas que Vadée formularia a essa abordagem psicológica que ignora as condições sociais -materiais e simbólicas- da produção de conhecimentos, para destacar o caráter construído dos mesmos. Como criação da nossa imaginação, os obstáculos para fazê-lo, para além da sua origem, são sempre levados a cabo por nós, que são os que têm de lidar com eles, para que sejam sempre, em certo sentido, psicológicos.

Na educação – diz Bachelard – a noção de um obstáculo pedagógico é igualmente desconhecida. Frequentemente, os professores de ciências, ainda mais do que os outros, não entendem que não são compreendidos e poucos mergulharam na psicologia do erro, da ignorância e da irreflexão. Eles não perceberam que o adolescente chega ao curso de Física com conhecimentos empíricos já estabelecido; Não se trata de adquirir uma cultura experimental, mas de mudar uma cultura experimental, de derrubar os obstáculos acumulados pela vida cotidiana. Por exemplo, o equilíbrio de corpos flutuantes é o objeto de uma intuição familiar que é um emaranhado de erros. A atividade é claramente atribuída ao corpo que flutua, ou melhor, ao corpo que nada. Se você tentar afundar um pedaço de madeira na água, ele resiste. Essa resistência não é facilmente atribuída à água. É então muito difícil entender o princípio de Arquimedes, em sua incrível simplicidade matemática, se de antemão o conjunto impuro de intuições básicas não tiver sido criticado e desorganizado. Em particular, sem essa psicanálise dos erros iniciais, nunca se entenderá que o corpo que emerge e o corpo totalmente submerso obedecem à mesma lei. (B: 21)

Não fomos capazes de resistir à tentação de citar extensamente o conhecido parágrafo, pois é um exemplo feliz, claro e sintético, de nossos conhecimentos elementares em física.


 

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1 comentário em “A noção de obstáculo epistemológico em Bachelard”

  1. Achei o artigo muito bom e deu para esclarecer alguns conceitos Bachelardianos que estou tratando em minha pesquisa. Também foi muito bem vinda a reflexão que outros autores fazem das obras de Bachelard nos proporcionando novos olhares.

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