“Pode ser que um certo nível de violência seja inevitável.”

Entrevista por Han Renard, via Le vif, traduzida por Daniel Alves Teixeira

Vestido em calças de trabalho verde e uma jaqueta de lã, Alain Badiou, em seu modesto apartamento no centro de Paris, mais parece um homem aposentado do que o homem considerado um dos maiores pensadores de nosso tempo. A ostentação cara aos intelectuais franceses é totalmente estranha para ele. 

O filósofo de inspiração marxista, ex-aluno de Louis Althusser, é professor emérito na prestigiada École Normale Supérieure de Paris. Nós devemos a ele vinte livros e ensaios filosóficos, bem como romances, peças de teatro e obras matemáticas. “Estou pensando em uma peça com o Brexit”, diz ele com uma risada. “Alguém está tentando sair de casa, mas ele não consegue encontrar a saída.”


Badiou tem tudo de um avô simpático e feliz, que tem prazer em enfatizar ainda mais suas ideias já radicais. O filósofo de oitenta e dois anos publica o ensaio La vraie vie (A vida verdadeira). Seu livro quer encorajar os jovens de hoje a aproveitar mais a vida e o mundo e a mudar de rumo.

Você quer corromper a juventude, como você diz – como um Sócrates contemporâneo.

Alain Badiou: (risos) Um filósofo vai contra as opiniões e valores que prevalecem, ou pelo menos é o que ele deve fazer. E assim sendo, mais vale se voltar aos jovens, que são o futuro, na esperança de subtraí-los dessas opiniões e destes valores.

De acordo com sua análise, os jovens de hoje estão perdidos. Por quê?

Existem boas razões para isso. Os jovens não o escolheram, é uma consequência da sociedade de consumo na qual eles crescem. Tornar-se rico e ter sucesso, conquistar uma função alta, às custas dos outros se necessário: esse parece ser o único ideal que resta. A vida da juventude é dominada pela satisfação de necessidades imediatas. A ideia de melhorar a si mesmo e de melhorar a sociedade através da arte, da ciência ou da política – o que eu chamo de vida real – praticamente desapareceu.

Jovens que não querem ou não podem participar da corrida de ratos escolhem muitas vezes o caminho niilista da autodestruição: viva o nada! Eles se consomem sozinhos. Isso pode se traduzir em vícios em álcool e drogas, mas também por ataques terroristas em nome de ideais religiosos enganosos. Tais ataques são muitas vezes atentados suicidas – e portanto uma maneira de destruir a própria vida. O mundo está sob a influência de uma pulsão de morte.

Por outro lado, você vê uma grande diferença entre o desenvolvimento das meninas e dos meninos.

Hoje, as mulheres têm o que muitos homens não têm mais: a possibilidade de avançar na sociedade. Tornarem-se membros plenos da sociedade em todos os domínios: este pode ser o propósito de suas vidas. Isso explica porque as meninas obtêm melhores resultados escolares do que os meninos. Eu entendo a alegria de uma mulher que consegue conquistar uma posição de liderança em uma “machoesfera”. Esta evolução pode estar certa, mas não muda o mundo em profundidade. Além disso, se as mulheres tomam as posições sociais dos homens sem a sociedade mudar, isso causará uma crise entre os homens.

Os homens de hoje devem desistir de uma parte de seu status. Nos bairros populares, especialmente, cresce a diferença entre mulheres bem-sucedidas, que tornam-se médicas ou advogadas, e seus irmãos, que se encontram na criminalidade. Os homens jovens estão completamente perdidos, inclusive em suas relações com as mulheres.

Os meninos não se tornam mais adultos, você escreve.

Os homens têm papéis bem definidos há muito tempo. Você tinha o pai: uma figura forte, muito forte mesmo, porque muitas vezes autoritária. Você tinha o exército, um papel que estruturou a existência masculina por séculos. Haviam muitos papéis principais. Hoje, todos esses papéis desapareceram ou se obscureceram. Os serviços militares que introduziram os meninos ao mundo masculino, não existem mais. A sociedade se democratizou, as mulheres reivindicam seu lugar, como já foi dito. E os meninos permanecem naquilo que são: meninos. Sua juventude nunca para.

Isso é também perceptível na inveja onipresente. Se você não tem o ar jovem, você é um perdedor. A idade não tem mais o mesmo valor de antes. No passado, as pessoas de idade eram os guardiões da tradição. Sua idade inspirava respeito.

Você recomenda aos jovens: para viver uma vida plena de sentido, é necessário “mudar absolutamente o mundo”. O que você quer dizer com isso?

É preciso colocar fim ao capitalismo. O comunismo é a única ideia que vai ao encontro do capitalismo, a única maneira de trazer mudanças reais.

Nós podemos sempre tentar suavizar o capitalismo. Tornar o sistema menos maldoso, como nos anos de reconstrução e crescimento econômico do pós-guerra. Mas estes não foram anos de pós-guerra por nada. Se quisermos voltar àqueles anos, é preciso primeiro uma nova guerra. Eu não excluo esta situação de forma alguma. O grande socialista francês Jean Jaurès disse: “O capitalismo carrega consigo a guerra como a nuvem carrega a tempestade”. Depois da guerra, o capitalismo também tinha fortes adversários: concessões sociais foram feitas para cortar a grama sob os pés do socialismo e do comunismo. Hoje, a situação é completamente diferente. Os partidos socialistas nunca foram tão fracos.

Muitas vezes tenho a impressão de que voltamos a década de 1840. Hoje, o capitalismo reencontrou sua barbárie do passado. O primeiro comunismo, testado na Rússia ou na China, fracassou em todos os aspectos. No fim das contas, esses países se readaptaram ao capitalismo global. Nós precisamos do novo. Uma mudança radical.

O que implica esse novo comunismo?

Libertar a humanidade daquilo que ela se tornou desde o fim do Neolítico, fazem 4.000 a 5.000 anos: eis do que se trata. As raízes profundas do capitalismo remontam a essa época, quando do nascimento da agricultura sedentária e das classes sociais. Brevemente, haviam pessoas trabalhando duro de um lado e pessoas do outro que se enriqueceram sem fazer nada. O Estado se organiza, inventamos a escrita para cobrar impostos, começamos a produção em massa de alimentos. Isso resultou em uma explosão populacional; o número de cidades, exércitos e guerras aumentam. O capitalismo é a perfeição deste velho mundo.

Mesmo Marx não compreendeu, mas o comunismo significa na verdade: romper com uma forma milenar de organização. Devemos colocar fim a este velho mundo. Com todas as questões clássicas do comunismo: o que há com as classes, o Estado, a propriedade privada, as desigualdades entre os povos e as nações, o imperialismo?

Organizar toda a humanidade de maneira diferente: isso parece muito abstrato. As pessoas podem conceber essa ideia?

Não é impossível. Elas podem conceber que o fim do mundo está próximo. Esta é a mensagem dos ecologistas: “Se não mudarmos, o planeta se tornará inabitável e a humanidade desaparecerá”. E bem, as pessoas também deveriam ser capazes de imaginar o fim do capitalismo? E eu gostaria de acrescentar: esse fim é uma pista de reflexão mais interessante. (Risos)

Você considera os protetores do clima como um sinal de esperança e otimismo?

Existem algumas formas de protesto que brotam um pouco em toda parte, mas todas essas revoltas visam corrigir o capitalismo. Há pouca consciência do verdadeiro problema. Os manifestantes pelo clima pedem medidas adicionais aos governos existentes. Mas enquanto você não erradicar o capitalismo, você não encontrará uma solução para o problema climático. Olhe para as exigências dos gilets jaunes: eles exigem um pouco mais de poder de compra, nada mais. A força de um movimento reside na sua capacidade de formular um objetivo positivo. É fácil de se entender sobre os pontos frente aos quais fazemos oposição. Mas um movimento de protesto tão negativo termina assim que enfrenta um adversário forte. A ocupação de praças ou rotundas durante algumas semanas não tem consequências sobre a duração.

Todos esses movimentos – pense também no Occupy Wall Street ou Nuit Debout – esperam uma síntese que leve em conta sua demanda por mudança e seu potencial. Redigir um manifesto comunista contemporâneo e defender o novo comunismo em todos estes novos movimentos de oposição: esta é a tarefa do momento.

Em suas análises recentes, você é particularmente duro em face dos gilets jaunes.

Eu sou especialmente duro pela admiração irracional que eles receberam. Essas pessoas, os mais pobres da classe média, naturalmente têm boas razões para protestar. Mas aquilo que eles demandam é bastante reacionário e desinteressante. Seu protesto terminará com o fortalecimento dos detentores do poder existente. Ou por qualquer coisa pior do que as coisas contra as quais eles protestam. Conquanto não haverá nova síntese positiva em torno da insatisfação onipresente, a extrema direita se beneficiará. A grande maioria dos gilets jaunes são contra os migrantes. Os residentes da periferia logo perceberam isso, e essa é a razão pela qual eles são pouco representados nesse movimento. Na Itália, já existe uma espécie de combinação de gilets jaunes e de pessoas que se parecem com Marine Le Pen no poder. Não é terrível. (Risos)

Nas pesquisas, o presidente Emmanuel Macron recuperou o nível de antes dos protestos – Marine Le Pen é sua única rival. O apoio cego pelos gilets jaunes na opinião pública a colocou em risco por algum tempo. Agora que esse suporte desapareceu, os gilets jaunes não só estão fracamente organizados, mas também numericamente insignificantes. 100.000 manifestantes em toda a França, não é muito.

Muitos gilets jaunes consideram como um trunfo que seu movimento não tem estrutura hierárquica ou direção central, e que ele não tem doutrina estrita.

(Gargalhadas) Cada um dos elementos que você menciona aqui ilustra porque esse movimento vai quebrar a cara.

Você acredita que os jovens podem mudar o mundo por meios parlamentares?

Não. A última vez que votei foi em 1968. No que me diz respeito, as eleições não são mais um campo de batalha para uma mudança real.

Quando digo isso, me fazem a pergunta: a violência é justificada? Talvez um certo grau de violência seja inevitável no processo revolucionário, mas apenas para defender-se contra a violência inimiga e para assegurar seu progresso político. A prudência é necessária. A violência frequentemente estragou a mentalidade revolucionária. Quando, na década de 1970, algumas organizações de esquerda como a Ação Direta, da qual eu conhecia bem alguns membros, começou a atacar, eu imediatamente disse: “Isso é indefensável”. Ou pense na revolução cultural que descarrilou na China.

Se você quer trazer a mudança pacificamente, o caminho parlamentar não é o único. Existem muitas outras maneiras de decidir coletivamente. Por exemplo, você pode criar subconjuntos deliberativas. Ou novos partidos abertos.

Segundo você, a eleição do presidente Macron em 2017 foi “um golpe de estado democrático”.

Um golpe de estado ocorre quando alguém surge de repente sem ter nada a ver com a situação anterior – não é necessariamente violento. E é isso que é aconteceu.

No antigo sistema francês, haviam dois grandes partidos ou ideologias: a esquerda e a direita. Este sistema entrou em uma crise profunda, que levou ao desmembramento do Partido Socialista – na França, praticamente não há mais partidos de esquerda – e à divisão entre a direita e a extrema direita. E então um tipo como Macron surge do nada, é alguém que nunca fez política antes, um quadro do setor financeiro. E ele diz: “Eu sou apenas Macron, eu estou à direita e à esquerda.” Ele funda um novo partido político (En Marche, Ed), que é seguramente, acima de tudo, uma panelinha de fiéis. Os eleitos de Macron parecem também lamentáveis no Parlamento, assim como ele. Mas isso não importa mais porque o próprio sistema político se tornou macroniano: se ele sair amanhã, haverá simplesmente um novo Macron. O poder se torna muito pessoal e a oposição não é mais tolerada. Olhe para o uso excessivo e autoritário da violência contra os gilets jaunes: se você optar por fazê-lo, você não mais atuará como representante da democracia parlamentar.

Depois do famoso filósofo conservador de direita Alain Finkielkraut ter sido recentemente tratado como um sionista sujo pelos gilets jaunes nas ruas de Paris, você escreveu um texto intitulado “Comédia sinistra de um racista vestido de anti-racista”. Uma parte da intelligentsia francesa não sente sua falta, isso é o menos que se pode dizer.

Houve um tempo em que eu debatia com Alain Finkielkraut. Nós até escrevemos um livro juntos. Mas depois, ele foi para a extrema direita e ficou obcecado pela questão da identidade. Depois das declarações sobre as quantidades muito grandes de negros na equipe nacional francesa e dos imigrantes árabes que destroem os subúrbios, eu lhe escrevi uma carta para romper com ele.

O que aconteceu? Mr. Finkielkraut se colocou próximo dos gilets jaunes, esperando alguém reconhecê-lo. Há entre esses gilets jaunes muitos fascistas e anti-semitas de extrema-direita do pior tipo. E eles não o desapontaram. Para sua grande alegria, ele tomou o seu posto. Ele explorou a controvérsia na mídia de maneira repugnante. Esta não é a primeira vez que ele cria uma situação e então reclama dela: foi isso que eu quis levantar. Mas tudo isso levou o jornal Le Monde a se recusar a publicar um texto que eu havia escrito sobre coletes amarelos.

Enquanto o anti-semitismo está aumentando fortemente na França, você parece banalizá-lo.

Certamente não, mas a acusação de anti-semitismo é às vezes usada na França para desviar a atenção de outras coisas. Eu também, tenho sido muitas vezes tratado como anti-semita. Em um certo ponto, eu decidi: de agora em diante, eu vou estapear todos aqueles que me tratam como anti-semita. (risos) É por isso que eu acertei um dia o escritor Philippe Sollers, a quem eu conheço há muito tempo, nos bastidores de um estúdio de televisão. E não, na minha opinião, você não encontrará o menor traço de anti-semitismo no meu pensamento. Eu sempre admirei as reivindicações universalistas da tradição judaica.

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1 comentário em ““Pode ser que um certo nível de violência seja inevitável.””

  1. Cada vez mais que leio sobre Badiou e seus apontamentos há certamente uma centelha de hombridade leninista que me impele aos estudos e produção, aos encontros e debates críticos e revolucionários junto a demais camaradas e lutadoras e lutadores da classe trabalhadora. Num ano de eleição presidencial como este, essa entrevista surge como fundamental para pensarmos em resoluta defesa de nossa classe e organização frente aos desafios que se aproximam e a necessidade de construção de uma nova sociedade comunista no Brasil para todas e todos nós. Avante!

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