Crise e Golpe: Resenha

Por Daniel S. Mayor Fabre

Lançada em outubro de 2018, em plena campanha eleitoral que levou Jair Bolsonaro à presidência da república, Crise e Golpe é uma obra fundamental para o período histórico que se inicia na atualidade. Da cunha do mestre da centenária Faculdade de Direito do Largo de são Francisco, Alysson Leandro Mascaro, a obra marca a maturidade de seu pensamento e põe seus desenvolvimentos teóricos sob prova de fogo ao analisar a conjuntura política e econômica do Brasil no último período histórico.


Se em Estado e Forma Política, Mascaro pode apresentar com envergadura e profundidade teórica as nuances e especificidades da forma jurídica e da forma política estatal em relação ao processo de valorização do valor na multiplicidade complexa da sociabilidade no capitalismo, em Crise e Golpe, o autor aplica seus fundamentos teóricos ao caso da crise brasileira, vigente pelo menos desde o início da presente década. Com estilo sóbrio, nos propõe uma grande síntese histórica alinhada ao debate marxista sobre o estado, a política e o direito. Não seria imprudente afirmar que se trata de uma das mais importantes obras do pensamento social brasileiro contemporâneo, ao menos, desde A revolução burguesa no Brasil de Florestan Fernandes na década de oitenta.

A obra se divide em dez capítulos, com três textos originais e um compendio de artigos produzidos nos últimos anos, já publicados em outros veículos. A originalidade fica a cargo de uma análise estrutural do capitalismo brasileiro à luz do processo histórico das últimas décadas, em especial sobre a crise do lulismo e o golpe de estado contra a presidência de Dilma Rousseff, baseada nas proposições teóricas do chamado derivacionismo e do marxismo althusseriano, e tendo como pano de fundo os problemas de acumulação do capitalismo global.

Para além de uma admirável síntese dos debates teóricos sobre o direito das últimas três décadas no Brasil, o livro apresenta ainda uma abordagem marxista original sobre o conceito de golpe. Termo este muitas vezes negligenciado pela ciência social, mas que é abordado com centralidade por Mascaro, haja vista sua importância para a compreensão do que ocorreu no país em meados de 2016. Os golpes não são meramente rupturas do ordenamento jurídico ou do jogo de poderes. Para o marxismo, os golpes devem necessariamente ser compreendidos dentro da totalidade estruturada das relações capitalistas de determinada sociedade. São alterações nas dinâmicas da luta de classes e na acumulação do capital que geram câmbios institucionais e no poder, alterações bruscas na condução da política e da economia, obviamente, sempre inferiores à uma transformação revolucionária, que põe em cheque as próprias relações sociais capitalistas.

Importante também a abordagem do autor quanto às noções de exceção e democracia, conceitos que se tornaram palavras de ordem para o amplo espectro dos setores ditos progressistas após o golpe de Dilma Rousseff. Como bem aponta Mascaro, a democracia não é a forma do capitalismo “normal” e a ditadura sua “anormalidade”. A exceção é também parte dos processos de reprodução e de acumulação do capital. A realidade social é complexa, permeada pela luta de classes, atravessada por contradições e incoerências. E nesse sentido, a exceção pós-2016 não é uma ruptura com a normalidade capitalista do Brasil, mas é a precisa forma de sua manutenção, promovida através do rearranjo de forças, classes, grupos e indivíduos em uma nova conformação social. A multiplicidade de formas políticas dos estados ao longo da história não nos permite vislumbrar padrões únicos de conexão entre democracia e capitalismo. Na realidade, tanto a democracia, como os fascismos e outras formas de exceção, são formas típicas do capitalismo, determinadas pela especificidade concreta das relações políticas e econômicas de cada país em determinado período histórico.

Isso ocorre porque o problema não está simplesmente em quais grupos e indivíduos tomam o poder do estado, mas sobretudo na precisa forma de existência deste estado. No capitalismo a força de trabalho e as mercadorias não podem ser tomadas através da violência física ou da dominação direta, como na antiguidade escravagista, por exemplo. Em virtude das leis do processo de valorização do valor é preciso que os agentes econômicos disponham livremente de seus bens. Nesse sentido, o estado e o direito surgem como esferas apartadas do jogo econômico, secularizadas, pois seu papel é garantir essas precisas relações mercantis, tanto na afirmação de uma universalidade econômica geográfica, um estado nacional, como através da uniformização das normas jurídicas, garantindo a eficácia dos contratos, em especial os comerciais e laborais.

Só é possível que no capitalismo exista uma rede quase infinita de contratos entre agentes econômicos, intercambiando não apenas simples produtos mercantis, mas terra e força de trabalho, pois o estado e o direito ocupam um lugar central na reprodução social. O estado e o direito não são o ‘comitê central da burguesia’, eles são apartados da economia por uma necessidade estrutural da reprodução social capitalista. O estado é burguês em sua forma, não importando, ao menos em um primeiro momento, se é tomado diretamente pela burguesia ou não, se é um estado democrático de direito ou uma exceção.

Talvez se possa dizer que a grande contribuição teórica da obra de Mascaro, de forma geral, seja uma contraposição ao pensamento de Nicos Poulantzas dentro do campo althusseriano. Para este autor, o estado é descrito como a condensação material de uma relação de forças entre as classes e frações da sociedade. O estado é, portanto, a cristalização de uma relação social conflituosa em determinado período histórico. Não há, para Poulantzas, uma derivação da forma política estatal, não há determinações estruturais que liguem a forma política estatal às formas de reprodução e produção capitalistas. O estado é formado pelo balanço geral da luta de classes, não possuindo qualquer determinação especifica advinda do capital.

Ora, Mascaro apresenta tese crucial e diametralmente oposta no que tange ao estado e ao direito. Tese esta verificada pela presente crise e pelo golpe judicial-parlamentar de 2016. Partindo do estudo das dinâmicas de classes, grupos e indivíduos, mas também da crítica da economia política, Mascaro afirma que o estado não configura um lugar neutro de disputa de classes, mas antes, um plexo de instituições, normatividades e aparelhos ligados intrinsecamente com o capitalismo e com a reprodução de suas relações sociais. A forma política estatal é então derivada da própria forma mercadoria e de seu processo de valorização do valor. Portanto, não há neutralidade no estado, sua existência está irremediavelmente ligada à reprodução da sociedade capitalista. Com base na obra do jurista soviético Evguiéni Pachukanis, Mascaro opera uma torção na leitura sobre o estado e o direto na obra de Louis Althusser, para a qual até então era Nicos Poulantzas quem figurava como referencial teórico deste debate.

Na obra do mestre catanduvense o direito e o estado não figuram como meros adendos do pensamento econômico. Eles possuem antes uma precisa função estrutural na própria economia capitalista. Se o direito sempre figurou sob ‘maus olhos’ ao marxismo, com a obra de Mascaro ele torna-se tema central.

Crise e Golpe nos apresenta uma análise da crise brasileira e do golpe judicial-parlamentar de 2016. Talvez a grande contribuição da obra ao pensamento dos campos progressistas do Brasil seja a vigorosa crítica à política calcada no uso e incorporação do direito e do estado como instrumentos supostamente neutros de luta, visão esta que domina majoritariamente as fileiras do campo progressista e que certamente nos levou ao fracasso. É somente empreendendo uma crítica estrutural do capitalismo que se pode compreender os sentidos do golpe e da crise brasileira. Somente compreendendo a especificidade do estado e do direito sob o capitalismo é que se pode iluminar uma política verdadeira, capaz da transformação almejada da sociedade.


 

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