Arquiteto, Cidade e História: contradições e problemas candentes de nosso campo disciplinar

Por Vinícius Okada M. M. D’Amico

“O arquiteto não está excluído da influência determinante do capital. Pelo contrário, ele nasce a partir dela. A separação entre trabalho intelectual e trabalho manual no canteiro de obras corresponde a uma das etapas fundamentais no desenvolvimento das forças produtivas na sociedade capitalista. A superação do “trabalho autônomo” no canteiro e sua posterior fragmentação alienante, desemboca na característica fundante do “construir” moderno: a contradição elementar entre o canteiro e o desenho.”


1. notas metodológicas

“[…] o conhecimento científico consiste em saber o que se passa, e não o que é. A concepção metafísica das ‘essências’ – o que as coisas são – precisa dar lugar nas ciências humanas, de uma vez por todas, como já deu há tanto tempo nas ciências físicas, à concepção científica do que acontece. Concepção essa em que o próprio ser não é senão o acontecer, um momento desse acontecer. É o que ‘acontece’ que constitui o conhecimento científico; e não o que é.” [PRADO JR., 1977, p. 15].

Antes de mais nada, faz-se necessário algumas breves considerações de método a respeito do presente escrito. Trata-se de uma análise científica no qual se discorrerá a respeito, em última instância, da Arquitetura e Urbanismo enquanto campo disciplinar.
Para tal, é imperativo que se abandone alguns preconceitos teóricos tão recorrentes dentro de nosso campo. A arquitetura, enquanto ofício, e, portanto também o arquiteto, enquanto sujeito, não pairam sobre as contradições de nossa sociedade. Pelo contrário, são determinados e determinantes de nossa realidade. Portanto, são resultantes objetivos de uma série de determinações e processos históricos.

Dito isso, precisamos compreender, antes de saltar para qualquer objeto ou caso de análise, a realidade histórica e social de nosso campo disciplinar como um todo, para assim não partirmos de pressuposições já dadas e concebidas, mas sim, traçarmos aqui um cenário comum para daí desenvolver as subsequentes considerações.

A análise científica concreta deve se dar de tal modo que não se conceba a “essência” dos fatos, pois tal coisa nada mais é que puro idealismo, mas sim que se compreenda acertadamente os fatos históricos em seu processo contínuo. Trata-se de de buscar apreender a unidade contraditória em contínuo movimento no decorrer da história, e a partir daí extrair o devir que cabe a cada tempo e a cada sujeito.

Dessa forma, a análise concreta da realidade concreta se dá a partir de um claro rigor científico, conceitual e metodológico. A respeito do método, assim discorre Caio Prado Junior:

“A teoria revolucionária brasileira, que é a resposta a ser dada às questões propostas na atual conjuntura do país, não se inspira assim de um ideal expresso na ‘natureza’ da revolução para a qual se presumiria a priori que marcha ou deve marchar a evolução histórica brasileira – revolução socialista, democrático-burguesa ou outra qualquer. Revolução essa a que se trataria na mesma ordem de ideias, de ir aproximando e afeiçoando as instituições do país e ajustando assim os fatos com a finalidade de alcançar um modelo preestabelecido. Nada há de mais irreal e impraticável que isso. A teoria da revolução brasileira, para ser algo de efetivamente prático na condução dos fatos, será simplesmente – mas não simplisticamente – a interpretação da conjuntura presente e do processo histórico de que resulta. Processo esse que, na sua projeção futura dará cabal resposta às questões pendentes. É nisso que consiste fundamentalmente o método dialético. Método de interpretação, e não receituário de fatos, dogma, enquadramento da revolução histórica dentro de esquemas abstratos preestabelecidos.” [PRADO JR., 1977, p. 19, grifo meu].

Afirmado claramente o método de análise a ser seguido, o marxista, subentende-se também que se parte, para tal análise, de uma concepção rigorosamente anticapitalista. Não se tratando de uma afirmação vazia ou teleológica, mas sim de uma resposta pragmática clara aos fatos a serem estudados a partir da ótica proveniente da tradição marxista.

A arquitetura não pode se limitar a análises teóricas metalinguísticas, descoladas da realidade, pintando a disciplina a partir de uma lógica interna própria, “gestáltica” segundo Sérgio Ferro. A arquitetura e urbanismo possuem uma determinação histórica clara, as transformações ocorridas em seu campo não podem ser completamente entendidas senão a partir de um rigoroso estudo científico totalizante que exponha os aspectos sociais, econômicos e políticos que perpassam a história de nossa sociedade.
Da mesma maneira, segundo a tradição marxista, não se trata somente de analisar os fatos passados e os correntes, mas também de produzir uma análise científica claramente em compasso com a realidade concreta visando a sua transformação objetiva com uma perspectiva clara: a emancipação humana.

“É certo, e repetímo-lo novamente, que, como marxistas, e considerando por conseguinte a revolução brasileira dentro do contexto geral do mundo contemporâneo, estamos seguros de que iremos afinal desembocar no socialismo, isto é, na socialização dos meios de produção, na eliminação da exploração do trabalho e da divisão da sociedade em classes antagônicas, bem como nas demais consequências de toda ordem material e moral que daí decorrem. Mas isso por força não de uma previsão que seria antes adivinhação, nem tampouco de uma pressuposta fatalidade histórica, de um Destino que tenderia necessariamente a se realizar, mas em consequências tão somente do desenrolar dos fatos que, a partir do momento atual (que se trata agora de interpretar), se irão sucedendo uns em seguimento e em consequência dos imediatamente anteriores. Conhecendo-se esses fatos atuais na sua interligação e nas suas contradições, podemos daí inferir as soluções a serem dadas a tais contradições. […] Não nos é dado adivinhar essa série [completa de fatos que se interpõem entre o dia de hoje e o do socialismo afinal realizado], mas tão somente o momento presente como resultante que é de um processo passado, e projetando-se, em consequência, num momento seguinte e continuação deste que se trata de promover e impelir para diante na base de uma ação política e norma revolucionária, ditadas pela mesma conjuntura em que hoje se propõem as questões pendentes.” [PRADO JR., 1977, p. 19 – 20].

2. arquitetura, história e sociedade

2.1. a casa popular e a casa burguesa

“em qualquer bairro operário […] a maioria das residências foi construída pelos próprios moradores.” [FERRO, 2006].

As limitações qualitativas são evidentes nas casas populares. Sempre construídas com os materiais mais baratos e simples, a maior parte delas, à época em que Sérgio Ferro escrevia (e ainda hoje), verdadeiras habitações mínimas, contam apenas com dois cômodos [FERRO, 2006]. A miséria objetiva-se elementarmente nas habitações proletárias. Eliminam qualquer particularização do construtor pela escassez, transforma, desse modo, a exceção em regra, “a produção aparentemente marginal revela o sistema totalmente inclusivo.” [FERRO, 2006]. A casa operária, conforme descrita por Ferro constitui, portanto, um retrato de nossas cidades.

“O valor de uso particular na miséria é intrinsecamente um valor de uso social entre os danados da terra: não há excessos que permitam a objetivação de idiossincrasias, a particularização. E como o nível a que se deve ater é o da satisfação única de imperativos vitais elementares, os resultados são praticamente os mesmos, sempre e em qualquer parte, variando somente em função do estágio histórico dos materiais primários (isto é, qual o mais barato a cada momento e local) compatíveis com a produção artesanal e individual.” [FERRO, 2006, p. 64].

Se, por um lado, a casa popular é o retrato nu da miséria absoluta, a construção da moradia pelo proletário evidencia a armadilha contraditória em que este se encontra: é a autoconstrução, trabalho não pago na obtenção de um item básico para a sua sobrevivência, que rebaixa ainda mais (tendo em vista o abundante exército industrial de reserva no contexto latino-americano) o valor social médio de sua força de trabalho.
Por outro, no lado oposto da escala social, temos a mansão, a mercadoria em sua forma mais elementar. A casa burguesa reflete a imagem e semelhança de seu proprietário, ou seja, este, assim como aquele, existe para os outros, quer dizer, para oferecer aos outros uma imagem de si, é um “tesouro” para a representação convencional de seu poder (econômico). Na mansão “não é o uso que garante a troca, mas a troca possível justifica o uso limitado. […] predomina o valor sobre o uso, a forma abstrata do trabalho social puramente quantitativa, sobre a conveniência pessoal.” [FERRO, 2006].

“Há que atribuir uma forma qualquer ao ouro feito concreto. Mas qualquer forma frustra. Sua particularidade estreita nega a universalidade latente no ouro. A forma limita o conteúdo. Mas o conteúdo específico do proprietário, para cuja captação e configuração tanto empenho requintado foi posto, é precisamente aquela universalidade. Na ausência de forma concisa que a expresse, o sucedâneo é a multiplicação de sua especificidade, a neutralidade anônima da riqueza invade sua morada inteira.” [FERRO, 2006, p. 75].

Os acabamentos que dominam as mansões e também as construções das classes médias e altas são representativos da irracionalidade da construção civil brasileira, “[…] tais revestimentos são, na maioria, absolutamente dispensáveis do ponto de vista técnico. Raros são objetivamente necessários. Mas consomem de 20% a 40% do orçamento de uma casa ou apartamento.” [FERRO, 2006].

“[…] dizer que 30%, em média, do capital empregado em construção civil massificada vai para ‘acabamentos’, em país de imenso déficit habitacional, é caracterizar a irracionalidade nuclear do sistema. A produção da construção representa cerca de 10% do PIB. Destes 10%, metade é de construção civil. Desta metade, 30% é revestimento, isto é, 1,5% do PIB. É muito. Em seguida, este mesmo fato pode ser associado a outro: não há déficit de materiais de construção no Brasil. As indústrias deste setor trabalham com 48% de capacidade ociosa, em média.” [FERRO, 2006, p. 77]

O que Sérgio Ferro descreve como a provisão habitacional para as elites e às classes médias brasileiras se apresenta baseada estruturalmente na superexploração da força de trabalho na construção civil de modo a extrair, assim, o sobre-trabalho, a mais-valia em taxas exorbitantes, possibilitadas pela pressão do exército industrial de reserva abundante, condição sine qua non da economia dependente latino-americana [MARINI, 2011] (Ferro calcula, em artigo de 1969, que o operário da construção civil recebe, de sua jornada de diária de 8 horas de trabalho, somente o equivalente ao produto de 48 minutos de seu dia). Os “revestimentos” são elemento determinante, portanto, do retrato de superexploração e fetichismo da mercadoria na construção civil brasileira. Desnecessários e, mesmo assim, abundantes nas obras, denunciam a irracionalidade do sistema que emprega “sem finalidade, o trabalho, puro denominador comum, [o qual] é apreciado por sua quantidade.” [FERRO, 2006].

Os revestimentos, para além do puro acúmulo de trabalho abstrato (portanto valor de troca agregado à mercadoria) representam, também, o ocultamento latente das mãos do operário, escondem as marcas do trabalho humano na construção por debaixo de azulejos e afins. A mercadoria emerge, assim, como valor absoluto, a-histórico e autônomo, escondendo por detrás de si as relações humanas de que é fruto.

“A mercadoria, para continuar seu reinado, esconde o que é e toma emprestado o que não é. Esconde as relações humanas de que é pura intermediária e faz parecer as relações humanas como consequência de sua autônoma movimentação. Adquire ares de independência. O valor, reflexo do trabalho social genérico, se transforma em sua propriedade intrínseca.

É fetichismo da mercadoria o nome destes seus ‘bizarros caprichos’.

Esta inversão, plenamente justificada pela aparência do mercado, tem importante função entretanto. Pois é ela que permite as fabulações da forma mantenedora do sistema. Ela alicerça a falsa a-historicidade da forma mercadoria, pois o valor e suas leis surgem como propriedades naturais das coisas e não como dos modos transitórios das relações humanas.” [FERRO, 2006, p. 81].

Dessa forma, sublinhamos que na construção civil, na economia dependente latino-americana, observa-se um duplo cenário fundamental. Primeiro, no estrondoso déficit habitacional observado nos países da América Latina (no Brasil já se atingiu o número de 7,7 milhões de moradias [BOAS; CONCEIÇÃO, 2018]), aliado à lógica estrutural da autoconstrução e irregularidade fundiária que domina as casas proletárias. Segundo, são em áreas de produção arcaicas (a construção civil não é um setor completamente industrializado ainda hoje se tratando de um setor produtivo pautado, predominantemente, pelo trabalho manufatureiro), por utilizarem um capital constante menor que no setor industrial, que conseguem garantir uma taxa de lucro alta. Além disso, devido à baixa composição orgânica do capital aí empregado (mais uma vez devido à forma arcaica de produção) a taxa real de lucro é maior que nos setores industriais [FERRO, 2006]. Tratando-se portanto de um setor econômico fundamental na economia dependente brasileira, principalmente em períodos de crise. A construção civil é um dos exemplos mais claros da superexploração da força de trabalho enquanto estruturante da matriz econômica brasileira.

2.2. o arquiteto e o capital

“[…] o mesmo movimento que retira dos trabalhadores sua autodeterminação relativa e seu saber é também o que faz do desenho uma ‘ordem’ codificada que só os iniciados podem utilizar.” [FERRO, 2006].

Antes de qualquer digressão a respeito de nossa disciplina, temos, antes, de saber situar o arquiteto na história de nossa sociedade. É verdade que a arquitetura enquanto disciplina remete aos tempos mais remotos, a exemplo de Vitrúvio, porém, as transformações profundas que possibilitaram que ela obtivesse sua autonomia, bem como um salto qualitativo enquanto ofício é algo relativamente recente. Ou seja, é principalmente com a Revolução Industrial que o arquiteto assume a figura tal como se apresenta hoje.

O desenho enquanto desenho técnico, projetual, é fruto de um processo não tão distante em nossa história. “Coisa curiosa: por longo tempo, até o século XIX praticamente, o desenho foi raramente um documento de trabalho; não era senão a transcrição das formas do ser acabado, uma imagem geralmente ingênua e exterior das coisas.” [DEFORGE apud FERRO, 2006]. Assim como afirma Ferro, os desenhos nada mais eram que expressões gerais das ideias do autor e, portanto, cabia aos artesãos a interpretação dessas intenções no canteiro, ou seja, os trabalhadores encontravam, assim, um alto grau de autonomia e, mais importante, controle sobre a obra arquitetônica, tanto do ponto de visto prático, quanto do teórico.

Se tivéssemos que apontar uma obra como ponto de inflexão dessa transformação da disciplina, essa seria a Catedral de Santa Maria Del Fiore. Não só pela magnânima revolução sob o ponto de vista estrutural da obra, mas sobretudo porque é nela que se observa, sem máscaras, as transformações profundas nas relações de trabalho no canteiro de obras e entre operários e arquiteto.

Ferro descreve com precisão o papel de Brunelleschi no processo construtivo. Centraliza em si a criação intelectual, e é com ele que se desenvolvem os desenhos técnicos mais complexos, como suas elaboradas perspectivas. Além disso, a separação violenta entre trabalho manual e intelectual, processo histórico que Sérgio Ferro caracteriza como “castração” do operário, é perceptível nos episódios de exploração do trabalhador ocorridos ali.

“A perspectiva (nosso desenho de então) [caso de Brunelleschi e Catedral de Santa Maria Del Fiore] já surge com dupla função. Por um lado, reduz a enorme obra a uma escala que permite o controle de todos os seus momentos e partes: código para a centralização, registro e memória para as ordens de serviço. Por outro, arma contra os operários que, impedidos de examinar o projeto, não podem mais colaborar inteligentemente – e contra os outros arquitetos.” [FERRO, 2006, p. 193]

Brunelleschi ordena a construção de uma cantina no domo em andamento, para que não seja necessário que os operários desçam, bebam, se reúnam, e assim percam muitas horas de trabalho. Também quebra uma greve por melhores salários, substituindo os grevistas por operários não florentinos, só os admitindo de volta por salários ainda menores [FERRO, 2006].

“Vossa função é talhar a pedra, trabalhar a madeira, erguer as paredes. Fazer vosso ofício e executar as minhas ordens. Quanto a saber o que tenho na cabeça, vós não o sabereis jamais – isso seria contrário à minha dignidade’, declara [Michelangelo] aos operários hostis à sua direção no canteiro de São Pedro, em 1551.” [FERRO, 2006, p. 197].

Os episódios descritos, tanto de Brunelleschi quanto de Michelangelo, representam a transformação por qual passa o canteiro de obras naquele momento. O arquiteto marcha rumo à sua consolidação enquanto detentor máximo dos conhecimentos teóricos do objeto arquitetônico, o conhecimento total da obra. Enquanto os artesãos são fragmentados, progressivamente, até chegarmos ao ponto que temos até hoje: o canteiro de obras heterônomo, com operários de diversos grupos distintos e profundamente especializados em serviços menores mas não correlatos, tudo isso para garantir um só fim: a extração eficiente de mais-valia.

“[…] a função fundamental do desenho de arquitetura hoje é possibilitar a forma mercadoria do objeto arquitetônico que sem ele não seria atingida.

[…] O que vale é que esse desenho fornece o solo, a coluna vertebral que a tudo conformará, no canteiro ou nas unidades produtoras de peças. Em particular – e é o principal -, juntará o trabalho antes separado, e trabalho a instrumento. […] Para nós, não há dúvida possível, é porque o canteiro deve ser heterônomo sob o capital que o desenho existe, chega pronto e de fora. O desenho é uma das corporificações da heteronomia do canteiro. Ou, para dizer a mesma coisa mais claramente: o desenho de arquitetura é caminho obrigatório para a extração de mais-valia e não pode ser separado de qualquer outro desenho para a produção.” [FERRO, 2006, p. 108].

Dessa forma, podemos chegar à contradição fundamental do campo da arquitetura, conforme exposto por Sérgio Ferro, entre o canteiro e o desenho. Essa contradição é fundamentada pela divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. O arquiteto, nesse sentido, aparece, historicamente, como figura essencial na fundamentação do canteiro de obras manufatureiro e heterônomo. Quem trata de juntar todas as sucessões de trabalhos dispersos das diversas equipes separadas de operários que nele atuam é o desenho projetual. “Fundamentalmente, o desenho é instrumento de quem não espera a participação lúcida do operário – mesmo se o canteiro não a dispensa. Não espera porque não quer e não pode – ou não serviria ao capital.” [FERRO, 2006]. É o desenho o instrumento que possibilita a forma mercadoria do objeto arquitetônico, justamente porque é ele a ferramenta essencial ao capital para o processo de alienação do trabalho e cristalização da forma mercadoria, o não reconhecimento do trabalhador em seu próprio produto-trabalho, a mercadoria enquanto forma aparentemente alheia às relações humanas de trabalho, e enquanto geradora aparentemente autônoma de valor.

“Os primeiros desenhos técnicos […] que remontam à Idade Média não exprimem senão as principais intenções do autor; comportavam poucas informações precisas e sugeriam globalmente alguns temas para reflexão… tais desenhos estavam longe de trazer uma informação unívoca, tudo era possível e o bom artesão deveria encontrar como pudesse as intenções do autor […]

A partir do século XVII, a necessidade de fabricações repetitivas provoca uma evolução dos desenhos no sentido da precisão. A solução é a da codagem homológica, isto é, uma correspondência traço a traço com o real […] No século XVII, o desenho faz ainda um progresso no sentido da precisão ao respeitar uma escala, o que facilita a reprodução[…]
Progressivamente, as representações se normalizam, certas homologias desaparecem em proveito de uma… simbolização arbitrária […] A informação contida num desenho técnico é percebida da mesma maneira por todo sujeito possuidor dos diferentes códigos. […]

Um desenho completo é uma ordem”. [DEFORGE apud FERRO, 2006, p. 152-153].

Seguindo à risca os apontamentos de Ferro, podemos afirmar que o arquiteto se constitui enquanto tal a partir das determinações do desenvolvimento da sociedade capitalista e suas relações de produção. As relações de trabalho no interior do canteiro de obras alteram-se significativamente através do longo processo de alienação pelo qual passa a classe trabalhadora no geral (nesse sentido a construção civil é somente uma parte do todo).

O desenho projetual é, nesse sentido, o elemento central nesse processo de “castração” intelectual dos operários. Representa, portanto, a cristalização da alienação do trabalho. Como nos termos de Michelangelo, é o elemento que garante o distanciamento completo dos operários com o conhecimento total do objeto arquitetônico e seus processos construtivos.

“Mas a violência a que o desenho serve, para ser bem servida, se aplica primeiro nele. Ao seu enclausuramento acompanha uma higiene suspeita, sobretudo porque é maior quando vem a público, em revistas ou prospectos.

O traço sem desvios, os ângulos rigorosos, o metro bem afiado, o preto no branco; normógrafo, tira-linhas, compasso, régua, esquadro; na impessoalidade gráfica, nenhuma respiração, nenhum passeio. De sua obrigatória limitação extrai moralismo hipócrita e claudicante alegoria da razão. Nada mais tacanho que a tabuada milimétrica que trama sua gerência – a não ser a linha torturada em concurso de sensibilidade pela mão solta do artista que prende a mão de quem faz. Aliás, saída do 6B é logo dissecada em cotas para a fabricação – e fica como as outras. A mão solta guarda o cetro, mas o cetro só avaliza os gestos do ritual. Qualquer veleidade de arroubos poéticos coalha nas margens da gestão correta. Se Gaudí ainda salta as muralhas da repressão interiorizada, é porque mora no canteiro, desenha pouco e discute o talho de cada pedra. Resultado, porém: leva Guell à falência. A cantada doença de São Guido de Le Corbusier, Aalto e outros tantos, arremeda o que não tem e some nas folhas de execução: sua reverência não é à arte, mas ao capital a que empresta o serviço de seu pastoso engodo.” [FERRO, 2006, p. 157]

O arquiteto, portanto, não está excluído da influência determinante do capital. Pelo contrário, ele nasce a partir dela. A separação entre trabalho intelectual e trabalho manual no canteiro de obras corresponde a uma das etapas fundamentais no desenvolvimento das forças produtivas na sociedade capitalista. A superação do “trabalho autônomo” no canteiro e sua posterior fragmentação alienante, desemboca na característica fundante do “construir” moderno, a heteronomia do canteiro de obras; heteronomia esta observada primordialmente a partir da contradição elementar entre o canteiro e o desenho.

“A heteronomia do canteiro é sintomaticamente eclipsada pela forma auto-suficiente que o desenho da obra persegue. Auto-suficiência que, em resumo, não é mais que o inchamento simplório das regras gestálticas da ‘boa’ forma: simplicidade, clareza, proximidade e semelhança.” [FERRO, 2006, p. 176].

O desenho de produção, então, aparece como forma auto-suficiente através do mesmo mecanismo do capital que oculta da mercadoria (neste caso o objeto arquitetônico) as relações de produção de que é fruto, fazendo com que sua movimentação se aparente autônoma. Ou seja, a auto-suficiência do desenho é a cristalização do papel social que é imposto ao arquiteto pelo capital enquanto centralizador do trabalho alienado fragmentado (através da produção manufatureira no canteiro).

“O que há de misterioso na forma mercadoria consiste simplesmente no seguinte […] ela transmite […] a imagem da relação social dos produtores no trabalho global como uma relação social existente fora deles, entre os objetos.” [MARX apud FERRO, 2006, p. 299].

Essa determinação se expressa na disciplina através do ocultamento dos fatores concretos da realidade do canteiro de obras, ou seja, as relações de produção necessárias para a fundamentação da obra arquitetônica, que se dá através de uma aparato discursivo abstrato, não menos ideológico, portanto que obscurece a realidade concreta da discussão teórica na disciplina, de modo a conformar um “sistema fechado”, que não se ampara e não pretende evidenciar as contradições aberrantes que constituem o processo construtivo.

“Os arquitetos parecem ter estabelecido e dogmatizado um conjunto de significações, mal explicitado como tal e que aparece através de diversos vocábulos: ‘função”, ‘forma’, ‘estrutura’, ou antes funcionalismo, formalismo, estruturalismo. Elaboram-no não a partir das significações percebidas e vividas por aqueles que habitam, mas a partir do fato de habitar, por eles interpretado. Esse conjunto é verbal e discursivo, tendendo para a metalinguagem. É grafismo e visualização. Pelo fato de que esses arquitetos constituem um corpo social, que eles se ligam a instituições, seu sistema tende a se fechar sobre si mesmo, a se impor, a eludir qualquer crítica.” [LEFEBVRE, 2001, p. 111].

2.3. cidade, história e classe

“A cidade ‘ideal’ […] é uma ficção mais política do que arquitetônica: nenhuma cidade jamais nasceu da invenção de um gênio, a cidade é o produto de toda uma história que se cristaliza e manifesta.” [ARGAN, 1993, p. 244].

Nas palavras de Milton Santos, temos que “o espaço é uma categoria histórica” e “a história da cidade é a história da sua produção continuada”. Ou seja, a cidade deve ser entendida como a cristalização dos processos de transformação social temporalmente sobrepostos em toda sua unidade dinâmica e contraditória, mas não entendendo-a como um dado passivo, ou seja, um mero reflexo determinado pelos processos sociais, mas sim como um dado ativo, dialético, na relação de um com o outro e, portanto, passível de apropriação e disputa.

Na linha contrária ao teor da declaração de Michelangelo, a história, e a cidade enquanto instituição fundamentalmente histórica, não é feita pelos heróis. A história da cidade é a história geral da cultura humana adquirida e acumulada através dos tempos e construída pelas massas sociais. Nas palavras de Salvador Allende, “a história é nossa e a fazem os povos”.

É nesse sentido que se colocam os problemas candentes de nossas cidades. Em consonância com Argan, os problemas urbanos evidenciam os problemas sociais, econômicos e políticos de nosso tempo e de nossa história. O fazer arquitetônico, portanto, não pode ser visto de maneira apartada do desenvolvimento social e urbano, é não só consonante mas entrelaçado a este.

“[…] é preciso dizer que ela [a arquitetura] forma um só todo com a cidade, de modo que tudo o que não funciona na cidade reflete, em última análise, os defeitos da cultura arquitetônica ou revela sua incapacidade de preencher suas funções institucionais.” [ARGAN, 1993, p. 243].

Uma das principais contribuições de Giulio Carlo Argan em suas reflexões sobre nosso campo disciplinar é o esforço em conceber e analisar, de acordo com a tradição marxista, a cidade enquanto um todo unitário e em contínuo movimento. A cidade enquanto instituição, não enquanto essência, mas enquanto processo.

Nesse processo se identificam tendências, contradições e forças antagônicas. As diferentes classes sociais alteram o tecido urbano segundo as condições próprias de seu tempo. É nesse sentido em que Argan situa a crise das cidades no final do século XX, uma crise que atenta contra a cidade enquanto instituição.

“[…] essas mudanças não obedecem a leis evolutivas, são o efeito de um antagonismo entre vontade inovadora e tendências conservadoras. Uma das contradições do nosso tempo está no fato de que as forças políticas progressistas tendem a conservar e as forças políticas conservadoras a destruir o tecido histórico das cidades.” [ARGAN, 1993, p. 244].

O último quarto do século XX é elementar para entendermos o século seguinte, pois é ali que residem as principais transformações sociais e econômicas que configurarão este novo período. Estamos falando do processo de reorganização do capital internacional em seu processo continuado e aprofundado de financeirização, o qual, no que tange às cidades, significa uma série de operações urbanas em consonância e, principalmente, estruturadas pelo capital financeiro especulativo. Os mega-eventos, Guggenheim de Bilbao e Museu do Amanhã são alguns exemplos elementares desse novo período.

“Esse é um fenômeno recorrente nos projetos contemporâneos, nos quais os edifícios se apresentam como totalidades em si, desgarrando-se da cidade, de qualquer contexto ou território. Eles cumprem funções para além do lugar e do local, são edifícios e infraestruturas transnacionais de circulação do capital. Essa arquitetura torna-se, por isso, auto-referente, tal como as finanças. Daí a irrelevância do contexto — não há mais que se preocupar em formar a cidade, um mundo coeso, eventualmente homogêneo. Assim, pode-se chegar a um verdadeiro ‘espaço delirante’, sem restrições de estrutura, de materiais, recursos e mesmo de qualquer uso.” [ARANTES, 2008, p. 15].

Se entendemos, então, a cidade como uma série de cicatrizes, marcas e operações históricas, compreendemos também que há uma clara disputa em torno desses marcos e categorias de referência. Os monumentos representam símbolos de um período determinado, da mesma forma que simbolizam um partido determinado em meio a trama histórica.

“Os monumentos urbanos tinham uma razão não apenas comemorativa, mas também didática: comunicavam a história das cidades, mas comunicavam-na em uma perspectiva ideológica, ou seja, tendo em vista um desenvolvimento coerente com as premissas dadas.” [ARGAN, 1993, p. 244].

A destruição sumária de tais monumentos é um atentado não só contra a arquitetura em si, mas contra a cidade enquanto instituição. Argan não vacila em apontar a especulação imobiliária como inimiga da arquitetura, da cidade e da cultura, demarcando uma clara disputa ideológica em torno do significado da urbanidade. Por um lado o ataque frontal ao seu caráter histórico e cultural em nome da máxima acumulação de capital, e de outro a luta pela conservação e ressignificação cultural e política urbana. Tratam-se não só de grupos opostos em abstrato, são classes distintas e antagônicas em conflito.

Dessa forma, para Argan, uma das tarefas imediatas dos arquitetos é a restauração de nossos centros urbanos. Não no sentido meramente técnico e patrimonial, mas no âmbito político e histórico. “[…] é bom nunca esquecer que as cidades são ‘bens culturais’ em seu conjunto e que, portanto, é inútil sanear bairros antigos se não se cuida, ao mesmo tempo, de lhes restituir uma função que não seja artificiosa.” [ARGAN, 1993]. Trata-se de conceber a cidade como um verdadeiro sistema de informação, em que se demarca, tradicionalmente, um núcleo cultural histórico e as periferias. Mas tal sistema de informação não deve ser concebido de maneira unilateral, como emanação única da cultura do núcleo histórico para as periferias, mas de fato como um sistema unitário em movimento duplo constante. Não é possível conceber as cidades sem a clareza da relação dialética entre centro e periferia.

“Um grande problema cultural da arquitetura moderna, portanto, é a reanimação dos centros históricos, que não se podem condenar a uma existência puramente de museu. É claro, todavia, que tal reanimação só é concebível no âmbito de uma revisão e reforma de todo o complexo urbano: se os centros históricos podem morrer esmagados sob o peso das periferias, não é possível imaginar a recuperação do centro histórico sem o beneficiamento das periferias. O próprio conceito de centro histórico é confuso, viciado desde a origem. Parte da pressuposição de que as diversas partes da cidade tem valores históricos diferentes; é ainda a velha distinção idealista de crônica e histórica, segundo a qual são história as ações do príncipe e crônica a dos pobretões. A cidade é uma entidade histórica absolutamente unitária, e uma das grandes tarefas culturais dos arquitetos é resgatar as periferias de uma condição de inferioridade ou até mesmo de semicidadania. E isso só se pode conseguir estabelecendo em toda a cidade uma circulação cultural uniforme que a torne, realmente, um sistema de informação.” [ARGAN, 1993, p. 249].

A cidade enquanto sistema de informação, para Argan, não se trata de mera abstração, mas de um movimento concreto de disputa de consciência em torno do caráter fundamentalmente histórico e político da cidade enquanto sistema unitário. Não se trata, portanto, do fluxo de informações meramente técnico ou publicitário, mas sim de um processo concreto de politização do espaço urbano através de seus sujeitos históricos.

“A cidade, como sistema da informação, não pode limitar-se a transmitir notícia características e publicitárias. É uma entidade política que deve transmitir o sentido do seu caráter político, e não vemos como possa fazê-lo se não justificar o seu caráter político com seu caráter histórico.” [ARGAN, 1993, p. 250].

Retomando, então, o conceito de direito à cidade, a partir de Lefebvre, o habitar a cidade não é concebido somente enquanto direito formal sobre determinados espaços urbanos, sobre os centros históricos, mas realmente no sentido de uma apropriação política da cidade. E tal disputa política está inserida no contexto geral da sociedade e portanto da luta de classes. Assim como aponta Argan em sua análise, tal disputa pelo caráter histórico da cidade é a materialização espacial do conflito de classes que estrutura a sociedade capitalista.

“O direito à cidade não pode ser concebido como um simples direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada. […] Só a classe operária pode se tornar o agente, o portador ou o suporte social dessa realização. Aqui ainda, como há um século, ela nega e contesta, unicamente com sua presença, a estratégia de classe dirigida contra ela. Como há um século, ainda que em novas condições, ela reúne os interesses (aqueles que superam o imediato e o superficial) de toda a sociedade, e inicialmente de todos aqueles que habitam.” [LEFEBVRE, 2001, p. 118].

Nesse sentido, a apropriação política da cidade não se afirma em abstrato, mas com um claro recorte: é a tarefa fundamental da classe trabalhadora em sua luta revolucionária por uma nova sociedade. E, mais importante, inclui-se aqui o arquiteto enquanto elemento fundamental de tal disputa.

“A estratégia urbana baseada na ciência da cidade tem necessidade de um suporte social e de forças políticas para se tornar atuante. Ela não age por si mesma. Não pode deixar de se apoiar na presença e na ação da classe operária, a única capaz de pôr fim a uma segregação dirigida essencialmente contra ela. Apenas esta classe, enquanto classe, pode contribuir decisivamente para a reconstrução da centralidade destruída pela estratégia de segregação e reencontrada na forma ameaçadora dos ‘centro de decisão’. Isto não quer dizer que a classe operária fará sozinha a sociedade urbana, mas que sem ela nada é possível. A integração sem ela não tem sentido, e a desintegração continuará, sob a máscara e a nostalgia da integração.” [LEFEBVRE, 2001, p. 113].

3. o arquiteto e a práxis

“Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel acredito que “viver significa tomar partido”. Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.” [GRAMSCI, 2005].

A partir da compreensão do arquiteto, da cidade com relação aos processos históricos, percebe-se que não existe possibilidade de prática isenta, neutra, ou da constituição da disciplina enquanto completamente autônoma (entenda-se independente) dos processos sociais e econômicos correntes.

A práxis do arquiteto ao longo da história é determinada por profundas transformações sociais, e não é possível compreendermos nosso campo disciplinar sem o correto entendimentos dos elementos críticos da economia-política.

A arquitetura desde o final do século XX aprofunda suas contradições. Para além da reconhecida crítica de Sérgio Ferro à arquitetura moderna e a ilusão desenvolvimentista, evidenciamos o aprofundamento do processos de financeirização da economia, que encontra nas operações urbanas e na construção civil um fértil terreno para a reprodução desenfreada do capital especulativo.

“A financeirização empurra a arquitetura para uma arriscada fusão com a forma publicitária e com a indústria do entretenimento. A relação clássica de forma e função expressa na tectônica do objeto arquitetônico parece estar sendo “liquefeita” para que a arquitetura possa circular mundialmente como imagem de si mesma.

De outro lado, a economia rentista está levando a arquitetura a esferas de valorização cada vez mais distantes das reais necessidades humanas. São mínimas ou mesmo inexistentes as iniciativas desses arquitetos-estrela para procurar soluções que pudessem ao menos amenizar a condição de pobreza da imensa maioria do globo. A outra face da arquitetura de marca, rendida ao espetáculo, é um planeta em urbanização acelerada e povoado por favelas, sem solução técnica à vista e sem horizonte de transformação política.” [ARANTES, 2008, p. 21].

A ideologia do high-tech nos processos construtivos encontra larga aceitação no campo dos especuladores, como bem vista nas grandes operações promovidas pelos star architects, como Gehry, Foster, Calatrava. Assumindo o discurso de revitalização dos grandes centros urbanos, a contrapartida concreta observada é mais da mesma destruição do caráter histórico e cultural da cidade enquanto instituição descrito por Argan. Nesse sentido, não há exemplo mais claro que os mega-eventos e suas gigantescas operações praticadas pelos consórcios internacionais, rifando nossas cidades, como no caso do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro. Assim, temos:

“A grande tarefa cultural dos arquitetos, hoje, é a recuperação da cidade, e não importa que a cura da cidade doente seja, como programa, menos brilhante do que a invenção de novas cidades. Apenas através de uma rigorosa metodologia de terapia urbanística ainda se pode salvar a cidade como instituição histórica, sem comprometer sua atualidade de sistema de informação. A cidade, de resto, é o melhor aparato de mediação entre cultura de classe e cultura de massa, aquele que, mais do que qualquer outra coisa, poderá garantir o caráter intrinsecamente democrático da que será a nova estrutura – de massa – da sociedade e da cultura. Para que isso aconteça, é preciso que os arquitetos, na qualidade de técnicos especialistas da cidade, retomem o controle da sua gestão, das suas mudanças, dos seus desenvolvimentos. Não se pede, é claro, a exclusão dos políticos, ao contrário, o que se deseja é que sejam politizadas a metodologia e a técnica de projeto dos arquitetos, a fim de que a correção dos erros técnicos da arquitetura do passado recente seja, ao mesmo tempo, a correção dos erros políticos que causaram a decadência da cidade.” [ARGAN, 1993, p. 250].

Dessa forma, não cabe ao arquiteto, em última instância um trabalhador, ficar passivo e alheio a tais processos. Mais do que a reconstrução de nossas cidades no sentido técnico e patrimonial, o que se coloca é a tarefa histórica fundamental de nossa classe, a disputa ideológica das massas pelo poder em nossa sociedade.

“[…] o problema põe-se unicamente assim: ideologia burguesa ou ideologia socialista. Não há meio termo (porque a humanidade não elaborou uma ‘terceira’ ideologia; ademais, em geral, na sociedade cortada pelas contradições de classe, não pode nunca existir uma ideologia à margem das classes ou acima das classes). Por isso, tudo o que seja rebaixar a ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se dela, significa fortalecer a ideologia burguesa.” [LENIN, 2015, p. 90].

Portanto, a questão apresenta-se da seguinte maneira: o arquiteto e sua práxis, inseridos no contexto geral de nossa sociedade estruturada pelos interesses inconciliáveis das classes antagônicas, ou estão orientados pelas forças conservadoras, ou pelas forças populares, não há meio termo.

Seguindo para além de Argan, não basta os arquitetos e políticos retomarem o controle da gestão das cidades. Mas trata-se, fundamentalmente, de subverter a ordem pré-estabelecida a partir da organização política de um campo contra-hegemônico. A arquitetura popular não se faz somente em favor do povo, mas, primordialmente, para e pelo próprio povo. Afirma-se aqui a importância da socialização da técnica, esta concebida a partir de seu caráter fundamentalmente político, enquanto instrumento de compreensão e transformação da realidade concreta. Dessa maneira, concluímos a partir dos termos de Ernesto Che Guevara:

“Creio que um arquiteto – como praticamente todo profissional – é um homem no qual se conjugam a cultural geral da humanidade atingida até esse momento e a técnica geral da humanidade ou especial de cada povo. O arquiteto, como todo profissional, é um homem e está dentro da sociedade. Pode reunir-se em organismos internacionais apolíticos e é correto que assim seja, para manter a convivência e a coexistência pacífica, mas como homem, dizer que é apolítico, isso eu não entendo.

Ser apolítico é dar as costas a todos os movimentos do mundo, é dar as costas a quem vai ser Presidente ou mandatário da nação, qualquer que seja ela, é dar as costas para a construção da sociedade, ou à luta para que a sociedade nova que desponta não surja, e em qualquer dos dois casos se é político. Um homem na sociedade moderna é político por natureza. Pois bem, o arquiteto, homem político, conjunção da cultura de toda a Humanidade pôde adquirir até esse momento, e da técnica que vem, está diante da realidade. […] A técnica é uma arma e deve ser usada como uma arma e cada qual a usa como uma arma.

[…] A técnica pode ser usada para domesticar os povos e pode ser usada a serviço dos povos para libertá-los. Para usar a arma da técnica a serviço da sociedade, é preciso ter a sociedade nas mãos; e para ter a sociedade nas mãos, é preciso destruir os fatores de opressão, é preciso transformar as condições sociais vigentes em alguns países e entregar aos técnicos de todo tipo, ao povo, a arma da técnica. E essa função é de todos aqueles que cremos nas necessidade de mudanças em algumas regiões da Terra.” – [GUEVARA apud SEGRE, 1987, p. 43, grifo meu].


referências bibliográficas

ARANTES, Pedro. O grau zero da arquitetura na era financeira. São Paulo. Novos Estudos. 2008.

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo. Martins Fontes. 1993.

BOAS, Bruno V.; CONCEIÇÃO, Ana. Déficit de moradias no país já chega a 7,7 milhões. 2018 – https://www.valor.com.br/brasil/5498629/deficit-de-moradias-no-pais-ja-chega-77-milhoes – acesso em: 18/11/2018.

FERRO, Sérgio. O canteiro e o desenho. In:______. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Cap. no 4, p. 105 – 200.

GRAMSCI, Antonio. Os indiferentes. 2005 – https://www.marxists.org/portugues/gramsci/1917/02/11.htm – acesso em: 20/11/2018.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. In:______. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001. p. 105 – 118.

LENIN, V. I. Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo. Editora Expressão Popular. 2015.

MARINI, Ruy M.; Vida e obra. 2. ed. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2011.

PRADO JR., Caio. A revolução brasileira. São Paulo. Editora Brasiliense. 1977.

SANTOS, Milton. A forma e o tempo: a história da cidade e do urbano. In:______. Técnica, espaço, tempo. Globalização e meio técnico-científico informacional. 1994.

SEGRE, Roberto. Arquitetura e urbanismo da revolução cubana. São Paulo. Nobel. 1987.

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1 comentário em “Arquiteto, Cidade e História: contradições e problemas candentes de nosso campo disciplinar”

  1. Sem dúvida um texto sério e reflexivo. Peca por considerar “Arquitetura e Urbanismo”como um campo disciplinar. O objeto que trata a Arquitetura é completamente distinto do objeto Urbanismo.

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