A crise e a contrarrevolução

Por Karl Marx, via Marxists.org traduzido por Ícaro Batista

Oferecemos uma peça do trabalho jornalistico de Marx durante a Revolução Alemã. Escrito entre 11 e 14 de setembro de 1848 e publicados na Nova Gazeta Renana, (n 100 a 104, o primeiro sobre o título acima e os demais sob o título de “A Crise”).


I

Colônia, 11 de setembro. Qualquer um que ler os relatórios de Berlim pode julgar por si mesmo se previmos o curso da crise do governo corretamente. Os ministros renunciaram e parece que a camarilha não aprovou o plano do governo de dissolver a Assembleia de conciliação e usar a lei marcial e as armas para permanecer no cargo. Os latifundiários titulares da zona rural de Brandemburgo estão sedentos por um conflito com o povo e uma repetição das cenas parisienses de junho nas ruas de Berlim, mas eles nunca vão lutar pelo governo Hansemann, eles vão lutar por um governo do Príncipe da Prússia. A escolha recairá sobre Radowitz, Vincke e outros semelhantes homens de confiança ​​que são estranhos à Assembleia de Berlim e não estão de forma alguma comprometidos com ela. O governo do Príncipe da Prússia, que nos será concedido, constituirá a nata dos cavaleiros prussianos e vestfalianos, associado, pelo bem da forma, a alguns burgueses da extrema direita, como Beckerath e seus semelhantes, a quem serão designadas as condutas do prosaico lado comercial do negócio de Estado. Enquanto isso, centenas de rumores estão sendo espalhados, Waldeck ou Rodbertus talvez sejam convocados, e a opinião pública é enganada, enquanto, ao mesmo tempo, os preparativos militares estão sendo feitos para virem à tona abertamente no momento apropriado.

Estamos enfrentando uma luta decisiva. As crises simultâneas em Frankfurt e Berlim e as decisões mais recentes das duas Assembleias obrigam a contrarrevolução a lançar sua última batalha. Se as pessoas em Berlim ousarem desprezar o princípio constitucional do governo da maioria, se confrontarem os 219 membros da maioria com o dobro de armas, se ousarem desafiar a maioria não apenas em Berlim, mas também em Frankfurt, apresentando-lhes uma governo que é completamente inaceitável para qualquer uma das duas Assembleias – se assim provocam uma guerra civil entre a Prússia e a Alemanha, então os democratas sabem o que têm que fazer.

II

Colônia, 12 de setembro. Embora, já ao meio-dia, possamos receber notícias da formação definitiva de um novo governo como o descrito por nós ontem e confirmado por outros setores, a crise do governo em Berlim continua. Existem apenas duas soluções para esta crise:

Ou um governo Waldeck, reconhecimento da autoridade da Assembleia Nacional Alemã e reconhecimento da soberania popular;

Ou um governo de Radowitz-Vincke, a dissolução da Assembléia de Berlim, a abolição das conquistas revolucionárias, um constitucionalismo falso ou até mesmo a Dieta Provincial Unida.

Não nos deixemos fechar os olhos ao fato de que o conflito que irrompeu em Berlim não é um conflito entre os acordos e os ministros, mas entre a Assembleia, que pela primeira vez atua como assembléia constituinte, e a Coroa.

A questão é se esta última terá ou não a coragem de dissolver a Assembleia.

Mas a Coroa tem o direito de dissolver a Assembleia?

É verdade que, nos Estados constitucionais, a Coroa, em caso de controvérsias, tem o direito de dissolver as câmaras legislativas convocadas com base na Constituição e apelar ao povo por meio de novas eleições.

A Assembleia de Berlim é uma câmara constitucional e legislativa?

Não é. Ele foi convocado para “chegar a um acordo com a Coroa sobre a Constituição Prussiana”, e não foi convocado com base em uma Constituição, mas com base em uma revolução. Recebeu seu mandato de maneira alguma da Coroa ou dos Ministros responsáveis ​​perante a Coroa, mas daqueles que a elegeram e da própria Assembleia. A Assembleia era soberana como expressão legítima da revolução, e o mandato que Herr Camphausen, em conjunto com a Dieta Provincial Unida, preparou para ela, na forma da lei eleitoral de 8 de abril, não passava de um desejo piedoso, e coube à Assembleia para decidir sobre isso.

A princípio, a Assembleia aceitou mais ou menos a teoria do acordo. Percebeu que, ao fazê-lo, fora enganado pelos ministros e pela camarilha. Por fim, realizou um ato soberano, avançando por um momento como assembleia constituinte e não mais como assembleia de conciliadores. 

Sendo a Assembleia soberana da Prússia, tinha o prefeito direito de fazê-lo.

Uma Assembleia soberana, contudo, não pode ser dissolvida por ninguém e não pode receber ordens de ninguém.

Mesmo como uma mera assembleia de conciliação, mesmo de acordo com a própria teoria de Herr Camphausen, ela tem status igual ao da Coroa. Ambos os partidos concluem um tratado político, ambos os partidos têm uma parcela igual de soberania – isto é, a teoria de 8 de abril, a teoria de Camphausen-Hansemann, a teoria oficial reconhecida pela própria Coroa.

Se a Assembleia e a Coroa tiverem direitos iguais, então a Coroa não tem o direito de dissolver a Assembleia.

Caso contrário, para ser consistente, a Assembleia também teria o direito de destituir o rei.

A dissolução da Assembleia seria, portanto, um golpe de Estado. E como o povo responde a um golpe de Estado foi demonstrado em 29 de julho de 1830 e 24 de fevereiro de 1848. [1]

Pode-se dizer que a Coroa poderia recorrer novamente aos mesmos eleitores. Mas quem não sabe que hoje os eleitores elegeriam uma assembleia totalmente diferente, uma assembleia que trataria a Coroa com muito menos cerimônia?

Todos sabem que, após a dissolução desta Assembleia, só será possível apelar aos eleitores de um tipo totalmente diferente daqueles de 8 de abril, que as únicas eleições possíveis serão as eleições realizadas sob a tirania da espada.

Não tenhamos ilusões –

Se a Assembleia vence e logra estabelecer um ministério de esquerda, então o poder da Coroa existente ao lado da Assembleia é quebrado, então o Rei é meramente um servo pago do povo e voltamos novamente para a manhã de 19 de março – desde que o o governo de Waldeck não nos traia, assim como muitos ministérios antes dele.

Se a Coroa ganhar e conseguir estabelecer um Governo do Príncipe da Prússia, a Assembleia será dissolvida, o direito de associação abolido, a imprensa amordaçada, uma lei eleitoral baseada em qualificações de propriedade introduzidas e, como já mencionamos, mesmo a Dieta Provincial Unida pode ser reinvocada – e tudo isso será feito sob o disfarce de uma ditadura militar, armas e baionetas.

Qual dos dois lados vai ganhar depende da atitude do povo, especialmente do partido democrático. Cabe aos democratas escolher.

Temos novamente a situação de 25 de julho. Eles ousarão emitir os decretos que estão sendo criados em Potsdam? Será que o povo será provocado a dar o salto de 26 de julho a 24 de fevereiro em um único dia?

A vontade de fazê-lo está certamente lá; mas e a coragem!

III

Colônia, 13 de setembro. A crise em Berlim avançou um passo adiante. O conflito com a Coroa, que ontem ainda podia ser descrito como inevitável, realmente aconteceu.

Nossos leitores encontrarão abaixo a resposta do rei à renúncia dos ministros. [2] Por esta carta, a própria Coroa vem à tona, em conjunto com os ministros, e opõe-se à Assembleia.

Vai ainda mais longe – forma um gabinete fora da Assembleia, nomeia Beckerath, que representa a extrema direita em Frankfurt e que, como todos sabem, jamais poderá contar com o apoio da maioria em Berlim.

A mensagem do rei é assinada por Herr Auerswald. Que Herr Auerswald, se puder, justifique o fato de que ele assim usa a Coroa para encobrir sua retirada ignominiosa, que, ao mesmo tempo, ele tenta se esconder atrás do princípio constitucional no que diz respeito à Câmara e atropela o princípio constitucional, comprometendo a Coroa e invocando a república.

Princípio constitucional! Gritam os ministros. Princípio constitucional! Grita a direita. Princípio constitucional! Ecoa fracamente o Kölnische Zeitung.

“Princípio constitucional!” Será que esses senhores são realmente tão tolos a ponto de acreditar que é possível libertar o povo alemão das tempestades de 1848 e da iminente ameaça de colapso de todas as instituições tradicionais, por meio da teoria de Montesquieu-Delolme da divisão de poderes, carcomida pelos vermes; por meio de frases desgastadas e ficções há muito explodidas?!

“Princípio constitucional!” Mas os próprios senhores que querem salvar o princípio constitucional a todo custo devem perceber, em primeiro lugar, que em um estágio provisório ele só pode ser salvo por uma ação enérgica.

“Princípio constitucional!” Mas o voto da Assembleia de Berlim, os confrontos entre Potsdam e Frankfurt, os distúrbios, as tentativas reacionárias, as provocações da brutal tropa – tudo isso não tem mostrado há muito tempo que, apesar de toda a conversa vazia, ainda estamos em um terreno revolucionário, e a pretensão de que já alcançamos a base de uma monarquia constitucional estabelecida e completa só leva a colisões, que já levaram o “princípio constitucional” à beira do abismo?

Cada configuração política provisória após uma revolução exige ditadura, e uma ditadura enérgica. Desde o início, culpamos Camphausen por não ter agido de maneira ditatorial, por não ter imediatamente destruído e removido os restos das antigas instituições. Enquanto assim Herr Camphausen se entregava a fantasias constitucionais, o partido derrotado fortalecia suas posições dentro da burocracia e no exército, e ocasionalmente até arriscava uma luta aberta. A Assembleia foi convocada com o propósito de aprovar os termos da constituição. Existia como um partido igual, ao lado da Coroa. Dois poderes iguais em um arranjo provisório! Foi essa divisão de poderes com a ajuda da qual Herr Camphausen buscou “salvar a liberdade” – era essa mesma divisão de poderes, em um arranjo provisório, que estava fadada a levar a conflitos. A Coroa serviu de cobertura para a camarilha contrarrevolucionária aristocrática, militar e burocrática. A burguesia estava por trás da maioria da Assembleia. O gabinete tentou mediar. Demasiadamente fraco para defender a burguesia e os camponeses e derrubar o poder da nobreza, da burocracia e dos chefes do exército de uma só vez; demasiadamente ineficiente para evitar sempre prejudicar os interesses da burguesia pelas suas medidas financeiras, o gabinete apenas conseguiu comprometer-se aos olhos de todos os partidos e provocar o próprio choque que buscava evitar.

O único fator importante em qualquer estado de coisas inconstituído é a saúde pública, o bem-estar público, e não este ou aquele princípio. Há apenas uma maneira pela qual o governo poderia evitar um conflito entre a Assembleia e a Coroa, reconhecendo o bem-estar público como o único princípio, mesmo correndo o risco de o próprio governo entrar em conflito com a Coroa. Mas preferiu “não se comprometer” em Potsdam. Nunca hesitou em empregar medidas de bem-estar público (medidas de saúde pública), medidas ditatoriais, contra as forças democráticas. O que mais foi a aplicação das leis antigas aos crimes políticos, mesmo depois que Herr Märker reconheceu que esses artigos do Código Civil deveriam ser revogados? O que mais foram as prisões por atacado em todas as partes do reino?

Mas o gabinete evitou cuidadosamente intervir contra a contrarrevolução em nome do bem-estar público.

Foi essa indiferença do governo diante da contrarrevolução, que se tornou mais ameaçadora a cada dia, que obrigou a própria Assembleia a prescrever medidas de bem-estar público. Se a Coroa, representada pelos ministros, era muito fraca, então a própria Assembleia teve que intervir. Fê-lo passando a resolução de 9 de agosto. [3] Fez isso de uma forma ainda branda, apenas advertindo os ministros. Os ministros simplesmente não deram atenção a isso.

De fato, como eles poderiam ter concordado com isso? A resolução de 9 de agosto desrespeitou o princípio constitucional, foi uma invasão do poder legislativo sobre o poder executivo, enfraqueceu a divisão de poderes e seu controle mútuo, que são essenciais no interesse da liberdade, transformando a Assembleia de conciliação em uma convenção nacional.

Seguiu-se um incêndio de ameaças, um vociferante apelo aos receios dos pequeno-burgueses e à perspectiva de um reinado de terror com guilhotinas, impostos progressivos, confiscos e a bandeira vermelha.

Comparar a Assembleia de Berlim com a Convenção. Que ironia!

Mas esses cavalheiros não estavam totalmente errados. Se o governo continuar nesse caminho, teremos em breve uma Convenção – não apenas para a Prússia, mas para a Alemanha como um todo – uma Convenção que terá que usar todos os meios para enfrentar a guerra civil em nossos 20 Vendées [departamento francês] e a guerra inevitável com a Rússia. Atualmente, porém, temos apenas uma paródia de Assembleia Constituinte.

Mas como os ministros que invocam o princípio constitucional sustentaram esse princípio?

Em 9 de agosto, eles calmamente permitiram que a Assembleia se dispersasse, acreditando que os ministros iriam cumprir a resolução. Eles não tinham intenção de dar a conhecer à Assembleia a sua recusa em fazê-lo, e menos ainda de renunciar aos seus cargos.

Eles meditaram sobre o assunto durante um mês inteiro e, finalmente, quando ameaçados com questões parlamentares, informaram sucintamente à Assembleia que era evidente que eles não fariam a resolução entrar em vigor.

Quando a Assembleia instrui os ministros, no entanto, para colocarem a resolução em prática, eles se refugiam atrás da Coroa e causam uma ruptura entre a Coroa e a Assembleia, empurrando as questões para uma república.

E esses senhores ainda falam sobre o princípio constitucional!

Resumindo:

O inevitável conflito entre dois poderes que têm direitos iguais em uma situação provisória irrompeu. O gabinete foi incapaz de governar com energia suficiente; não conseguiu tomar as medidas necessárias de bem-estar público. A Assembleia simplesmente cumpriu seu dever ao exigir que o gabinete cumprisse seu dever. O gabinete declara que isso é uma invasão dos direitos da Coroa e desacredita a Coroa no exato momento de sua renúncia. A Coroa e a Assembleia se confrontam. O “acordo” levou ao desacordo, ao conflito. É possível que as armas decidam o assunto.

O lado que tem maior coragem e consistência vai ganhar.

IV

Colônia, 15 de setembro. A crise do governo mais uma vez entrou em uma nova fase, devido não à chegada e esforços vãos do impossível Herr Beckerath, mas à revolta do exército em Potsdam e Nauen. O conflito entre democracia e aristocracia estourou mesmo dentro dos regimentos de guarda. Os soldados consideram que a resolução aprovada pela Assembleia no dia 7 os libera da tirania de seus oficiais; eles enviam cartas de saudação e agradecem à Assembleia.

Isso arrancou a espada das mãos dos contrarrevolucionários. Eles não ousarão agora dissolver a Assembleia, e como isso não pode ser tentado, eles terão que ceder, executar a resolução da Assembleia e formar um gabinete de Waldeck.

É bem possível que os soldados em revolta em Potsdam nos salvem uma revolução.


Notas

[1] Os decretos emitidos pelo rei da França em 26 de julho de 1830 aboliram a liberdade de imprensa, dissolveram o parlamento e mudaram a lei eleitoral, reduzindo assim o eleitorado em três quartos. Estas medidas precipitaram a revolução francesa de julho de 1830. Em 24 de fevereiro de 1848, o rei Luís Filipe da França foi derrubado.

[2] Em sua mensagem de 10 de setembro de 1848, Frederico Guilherme IV concordou com a visão dos ministros de que a resolução aprovada pela Assembleia Nacional da Prússia em 7 de setembro de 1848 era uma violação dos “princípios da monarquia constitucional” e aprovava a decisão dos ministros de renunciar em protesto contra esta ação da Assembleia.

[3] Em 9 de agosto de 1848, a Assembleia Nacional da Prússia aceitou uma proposta apresentada pelo deputado Stein, solicitando ao Ministro da Guerra que emitisse uma ordem militar de que os policiais deveriam demonstrar seu apoio a um sistema constitucional e que aqueles que detinham diferentes pontos de vista políticos fossem obrigados por honra a deixar o exército. Schreckenstein, o Ministro da Guerra, não emitiu tal ordem: Stein, portanto, apresentou uma moção semelhante mais uma vez, e isso foi aprovado pela Assembleia Nacional em 7 de setembro. Em seguida, o gabinete de Auerswald-Hansemann renunciou. Sob o gabinete Pfuel que se seguiu, o decreto, embora de forma consideravelmente enfraquecida, foi finalmente emitido em 26 de setembro de 1848, mas permaneceu no papel.

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