Em defesa da traição

Por Slavoj Žižek, via Spectator.us traduzido por Rodrigo Gonsalves

Se nos importamos com o futuro das pessoas que formam as nações, o nosso bordão deveria ser: Estados Unidos por último, China por último e Russia por último. Comentários do pensador esloveno acerca da décima quarta conferência do G20 em Osaka, que ocorreu entre 28 e 29 de Junho de 2019. Texto original chamado ‘In defense of treason’ publicado em 9 de Julho de 2019.


A recente reunião do G20 em Osaka e seus eventos circundantes fornecem uma triste visão da Nova Ordem Mundial emergente: Trump trocando mensagens de amor com Kim Jong-un e convidando-o para a Casa Branca, Putin batendo palmas com o Príncipe Mohammed bin Salman e com Merkel e Tusk, como as duas vozes da velha razão européia, marginalizadas e principalmente ignoradas.

Esta NOM é muito tolerante: todos se respeitam, ninguém impõe aos outros noções imperialistas eurocêntricas como os direitos das mulheres. Este novo espírito é melhor encapsulado pela entrevista que Putin deu ao Financial Times na véspera da cúpula de Osaka, na qual ele, como esperado, criticou a “ideia liberal”, alegando que “superou seu propósito”. Surfando na onda da noção de que o “público voltou-se contra a imigração, as fronteiras abertas e o multiculturalismo”, a evisceração de Putin ao liberalismo harmoniza com os líderes anti-establishment, de Donald Trump ao húngaro Viktor Orbán, com Matteo Salvini na Itália e com a insurreição do Brexit no Reino Unido.

“Os liberais não podem simplesmente ditar qualquer coisa para todo mundo como eles vêm tentando fazer nas últimas décadas”, disse ele. Putin declarou a decisão da chanceler Angela Merkel, de receber mais de um milhão de refugiados na Alemanha, principalmente da Síria devastada pela guerra, como um “erro cardinal”. Mas ele elogiou Donald Trump por tentar impedir o fluxo de migrantes e drogas do México. “Essa idéia liberal pressupõe que nada precisa ser feito. Que os migrantes podem matar, saquear e estuprar com impunidade, porque seus direitos como imigrantes precisam ser protegidos.” Ele acrescentou: “Todo crime deve ter seu castigo. A ideia liberal tornou-se obsoleta. Entrou em conflito com os interesses da esmagadora maioria da população.”

Não há surpresa aqui, e o mesmo vale para Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, reagindo à Putin: “O que considero realmente obsoleto é autoritarismo, cultos de personalidade e o domínio dos oligarcas” – uma afirmação desdentada de princípios vazios que evita às raízes da crise. Os otimistas liberais desesperadamente se apegam à sinais encorajadores aqui e ali: a forte virada esquerdista da geração mais jovem americana; o fato de que Trump obteve três milhões de votos a menos que Clinton e que sua vitória foi mais resultado da manipulação dos distritos eleitorais; o ressurgimento da esquerda liberal européia em países como a Eslováquia. No entanto, esses eventos isolados não são fortes o suficiente para afetar a tendência global.

A única característica interessante da entrevista de Putin, é o ponto em que você pode sentir como ele realmente fala de seu coração, que ocorre quando ele solenemente declara sua total falta de tolerância para espiões que traíram seu país: ‘A traição é o crime mais grave possível e os traidores devem ser punido. Não estou dizendo que o incidente de Salisbury é o caminho para isso… mas os traidores devem ser punidos.” Fica claro, a partir desta explosão, que Putin não tem simpatia pessoal por Snowden ou Assange: ele apenas os ajuda para irritar seus inimigos, e você só pode imaginar o destino de um eventual Snowden ou Assange russo. É inevitável pensar naqueles esquerdistas ocidentais que continuam a afirmar que, apesar de sua postura socialmente conservadora, Putin ainda assim representa um obstáculo à dominação global americana e por isso, deve ser visto com simpatia.

Todo esquerdista autêntico deve se opor ferozmente à alegação de que a traição (a traição do próprio Estado-nação) é o crime mais grave possível: não, existem circunstâncias nas quais tal traição é o maior ato de fidelidade ética. Hoje, tal traição é personificada por nomes como Assange, Manning e Snowden. A razão disto é a situação global de hoje com suas três principais ameaças apocalípticas (ecologia, controle digital e imigrações).

No momento em que aceitarmos plenamente o fato de que vivemos em uma Nave espacial Terra, a tarefa que urgentemente se impõe é a de civilizar as próprias civilizações, de impor solidariedade universal e cooperação entre todas as comunidades humanas, uma tarefa que se torna ainda mais difícil diante do sectarismo religioso, da violência ‘heróica’ étnica bem como da disponibilidade para se sacrificar (e sacrificar o mundo) em nome de uma causa específica.

A razão nos obriga aqui, portanto, a cometer traição: trair a nossa causa, recusar-se a participar dos jogos de guerra em andamento. Se realmente nos importamos com o destino das pessoas que compõem nossas nações, nosso lema deveria ser: América por último, China por último, Rússia por último. Fora o ataque de Putin ao liberalismo um caso de ódio patológico? Infelizmente não, expressou-se ali uma nova normalidade. Se por isso queremos dizer um desvio doentio que ameaça nossas vidas, a política do “X primeiro” é a única verdadeira patologia de hoje.

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2 comentários em “Em defesa da traição”

  1. Penso em estar utilizando o conteúdo deste texto como possível inspiração temática na realização de uma partida de xadrez humano com o nome de SÓCIOPSICOMÉDIA a ser realizada num espaço público paulistano sob minha responsabilidade com a colaboração voluntária de pessoas dispostas a estarem assumindo o papel das peças neste tabuleiro de xadrez gigante necessário.

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    • 15 de outubro de 2021 é uma sugestão de data a se realizar o encontro entre 100 pessoas com o intuito de realizar uma partida de xadrez humano no centro da cidade de São Paulo colaborativamente, voluntariamente, cooperadamente, coletivamente, socialmente…

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