Uma crítica marxista da literatura grega

Por Peter W. Rose, traduzido por Felipe Campos de Azevedo

Nesta introdução ao livro “Sons of the Gods, Children of Earth” [Filhos dos Deuses, Infantes da Terra] (1992), o autor Peter Rose apresenta o projeto de sua crítica literária marxista dos textos da antiguidade grega.


Marxismo e os clássicos

Neste livro, propus aplicar o que caracterizo como uma abordagem marxista de vários textos da Grécia Antiga. Para mim, tal abordagem implica uma preocupação simultânea com a política da forma artística e com um tema ideológico central. Esse tema, que em grande parte determinou a minha escolha de textos, é a excelência herdada (inherited excellence) – ou seja, as formas em que ideias sobre descendência de deuses ou heróis e sobre origens aristocráticas desempenham um papel central e sofrem transformações significativas em textos que, ao mesmo tempo em que refletem, também constituem o patrimônio cultural grego.

Não há inocência na minha escolha do tema da excelência como herança. Debates contemporâneos sobre “natureza versus educação”, diferenças étnicas, essencialismo de gênero, sócio biologia e vários outros equivalentes modernos do darwinismo social têm enormes consequências em lutas políticas concretas contemporâneas. Ao mesmo tempo, eu desconfio da sugestão de uma continuidade simples entre ideologia grega da antiguidade e as lutas e questões contemporâneas que operam com toda uma outra ordem de complexidade. [1] Eu não ofereço nem uma arqueologia foucaultiana completa dos conceitos em jogo, nem um simples conjunto de origens antigas, mas acredito que a relevância contemporânea deste tema surge claramente.

Não proponho nem leituras exaustivas dos textos, nem uma exposição completa das ramificações do meu tema, mas escolhi textos em que as ideias sobre a excelência herdada atraem para si muitas questões tradicionalmente centrais, como a natureza do herói grego e das relações entre deuses e mortais, ou de indivíduos com comunidades. Em alguns pontos chave a exploração da excelência herdada aponta, por sua vez, para questões mais contemporâneas, como a política sexual ou a oposição entre natureza e cultura. No nível formal, meus textos incluem os principais gêneros como épica, lírica coral, tragédia e diálogo filosófico. Eu tento integrar a minha leitura do surgimento histórico destas formas com os tratamentos da mudança do meu tema central.

Há muitos outros textos no período entre a Ilíada de Homero e a República de Platão que se poderia examinar para apoiar, ampliar ou qualificar quaisquer conclusões extraídas dos textos que escolhi. Eu particularmente lamento, por exemplo, não discutir o Ajax de Sófocles, ou algumas peças Eurípides, como a Electra ou Héracles, nas quais as ideias sobre a figura de excelência herdada figuram proeminente. Tentei, no entanto, sugerir uma abordagem em vez de esgotar o assunto. A principal desvantagem de um foco mais estreito da abordagem filológica tradicional – que pode ser chamado de algo como “Physis: suas raízes e galhos” – é que ela impede o germinar de ricas relações deste tema central com toda uma gama de outros temas ideológicos nas obras em que elas ocorrem. [2]

Embora eu evite uma exaustiva pesquisa filológica, escolhi alguns dos principais momentos em qualquer trajetória que alguém poderia traçar deste tema, de Homero até Platão. Eu ofereço apenas uma descrição severamente abreviada do período entre a Odisseia e Píndaro por causa da escassez de textos completos pertinentes ao meu tema. No entanto, comento algumas dimensões relevantes do Hesíodo, cujos textos, na minha leitura da Odisseia, funcionam quase como um apoio secundário. Assim, em meu tratamento de Píndaro discuto a lírica arcaica, os Pré-socráticos e Teognis. Eu toco em Hesíodo e Sólon na minha análise da forma da trilogia, a propósito da Oresteia. Discussões bastante extensas sobre os sofistas são centrais em meus capítulos sobre Filoctetes de Sófocles e a República de Platão. Além disso, por razões que se tornam claras mais adiante na introdução, incluo uma análise histórica mais detalhada do que é geralmente usual hoje em estudos de textos literários. Embora variações sobre o tema da excelência herdada não terminem com Platão, a República constitui um ponto final adequado para a exploração de um conjunto de alternativas ideológicas e práticas que chegam a um tipo de crise no final do quinto século – uma crise a que Platão respondeu com uma solução tão radical que o debate subsequente deve, em algum sentido, começar com ele.

O problema da metodologia nos estudos dos clássicos atualmente

A questão de como abordar os clássicos é particularmente nebulosa nas discussões públicas e é potencialmente uma questão pessoal preocupante para quem ganha seu salário hoje ensinando os clássicos. Os clássicos no Ocidente hoje parecem enfrentar duas opções óbvias e não necessariamente incompatíveis. Por um lado, seu estudo pode ser reduzido a um hobby puramente de antiquário, seja por negligência benigna ou por uma rejeição autoconsciente por motivos ideológicos. Uma variedade de grupos progressistas opôs-se, com razão, a serem doutrinados com um cânone de textos que, sejam quais forem suas virtudes, são notavelmente elitistas e misóginos, bem como, mais sutilmente, racistas. Por outro lado, os clássicos têm recentemente sido submetidos a mais uma tentativa de apropriação por uma nova onda de ideólogos reacionários – a chamada Nova Direita (New Right). Embora aqui não seja o lugar para um histórico completo das apropriações dos clássicos, à luz desta crise contemporânea, vale a pena recordar brevemente alguns marcadores históricos na carreira dos clássicos como um significante ideológico. [3]

Para um monarquista comprometido como Thomas Hobbes, no século XVII, a influência política dos clássicos foi esmagadoramente progressiva e, como tal, totalmente perniciosa:

“Ao ler esses autores gregos e latinos, homens na sua infância adquiriram o hábito (sob uma falsa impressão da Liberdade) de favorecer os tumultos e de controlar licenciosamente as ações de seus Soberanos; e em seguida de controlar aqueles controladores, com a efusão de muito sangue; como eu penso que posso dizer com sinceridade, nunca houve uma ideia tão comprada, como essas partes compraram o aprendizado das línguas grega e latina.” (1950 [1651]: pt. 2, cap. 21, 183)

No entanto, para um cristão revolucionário como Blake, a tarefa de construir uma nova Jerusalém “entre estes obscuros Moinhos Satânicos” evoca uma amarga condenação:

“Os Escritos Roubados e Pervertidos de Homero e Ovídio: de Platão e Cícero, que todos os homens devem condenar… Shakespeare e Milton foram ambos reprimidos pela doença geral e pela infecção da ingenuidade dos gregos e latinos, escravos das palavras… Nós não queremos modelos gregos ou romanos, se nós formos fiéis apenas às nossas próprias imaginações” (“Milton, um poema em 2 Livros” Prefácio. Blake 1982 [1804]: 95)

Ao longo do século XIX, os clássicos desempenharam um papel significativo não só na formação de burocratas e imperialistas, mas no reforço de papéis de gênero (Ong 1962; Fowler 1983). No período vitoriano, no entanto, como Eagleton (1983) nos lembrou, os clássicos geralmente representavam uma ameaça da hegemonia cultural elitista, que já não era adequada às necessidade de controlar as chamadas classes em ascensão: “As necessidades sociais urgentes, como Arnold reconhece, é “helenizar” ou cultivar a classe média filisteia” (24). Eagleton também cita um estudo de literatura inglesa escrito em 1891: “As pessoas… precisam de cultura política, instrução, isto é, no que diz respeito à sua relação com o Estado, com seus deveres como cidadãos; eles também precisam ficar impressionados sentimentalmente… Tudo isso [Eagleton resume aqui]…poderia ser alcançado sem o custo e trabalho de ensinar-lhes os clássicos “(25-26). A solução, como Eagleton mostra, foi a invenção da literatura inglesa como componente central do currículo em artes liberais da classe média, deixando clássicos no original como a prerrogativa das escolas de elite.

Hoje a agenda da Nova Direita é baseada em usar os clássicos da Grécia e de Roma, juntamente com outros clássicos de uma tradição especificamente ocidental, para refilistinizar, por assim dizer, forças progressistas em nossa sociedade. Eu tenho especificamente em mente o apoio entusiasta dos clássicos por tais figuras como Allan Bloom (1987), que vê no cânon dos “grandes livros” um veículo de prestígio para repudiar as demandas de mulheres, pessoas de cor, gays e trabalhadores para uma educação que apoie suas aspirações de uma humanidade completa. [4] Qualquer tipo de “relativismo” é anátema para Bloom, que nos assegura que “a denominação de ‘clássico’ perde toda a legitimidade quando não se pode acreditar que o clássico diga a verdade “(374). Para Bloom, parece, só pode haver uma verdade, que, ele afirma repetidamente, é fundada na natureza. “O movimento das mulheres”, ele nos assegura, “não é fundado na natureza “(100), e ele invoca o momento mais misógino em Aristófanes para apoiar esta conclusão (99). Da mesma forma, William Bennett, enquanto secretário de educação de Ronald Reagan, incansavelmente rodou em todo o país, mantendo sua versão dos clássicos para indiciar estudos feministas, estudos sobre negros, filmes e estudos de cultura popular, desconstrução – em suma, qualquer forma de esforço intelectual que oferece uma perspectiva crítica significativa sobre o discurso hegemônico (Franco 1985).

À luz dessas opções inaceitáveis, meu projeto consiste abrir para escrutínio as dimensões dos textos clássicos que foram avidamente apropriadas por um cânone alegadamente unívoco de “obras-primas” ocidentais – obras oferecidas como encarnações bastante transparentes de verdades eternas da “condição humana” ou da “essência humana”. Para sugerir provisoriamente outra perspectiva sobre o valor dos clássicos, cito aqui alguns trechos da análise de Antonio Gramsci do antigo sistema de educação na Itália no início deste século. Ele vê com um olhar frio e irônico o papel das classes sociais no acesso ao estudo dos clássicos, e ainda a arbitrariedade essencial de sua constituição, literalmente como o veículo de uma educação privilegiada:

“A divisão fundamental em clássico e profissional (profissional) nas escolas era uma fórmula racional: a escola vocacional para as classes instrumentais, a escola clássica para as classes dominantes e os intelectuais… A escola técnica … colocou um ponto de interrogação sobre o próprio princípio de um programa concreto de cultura geral, um programa humanista da cultura geral baseada na tradição greco-romana. Este programa, uma vez questionado, pode ser considerado condenado, uma vez que a capacidade de formação era baseada no geral e tradicionalmente inquestionável prestígio de uma forma particular de cultura “. (1971: 26-27)

Ao mesmo tempo, Gramsci elogia nesta educação clássica o convite interno para fazer conexões, uma oportunidade muito raramente realizada no ensino de clássicos hoje:

“Na antiga escola, o estudo gramatical do latim e do grego, juntamente com o estudo de suas respectivas literaturas e histórias políticas, era um princípio educacional – pois o ideal humanista, simbolizado por Atenas e Roma, era difundido por toda a sociedade… A educação dele [da criança masculina] é determinada pelo conjunto deste complexo orgânico, pelo fato de que ele seguiu esse itinerário… passou por esses vários estágios, etc. Ele mergulhou na história e adquiriu uma compreensão historicizante do mundo e da vida, que se torna uma segunda natureza, quase espontânea… Experiência lógica, artística, psicológica foi adquirida de forma quase inconsciente, sem uma autoconsciência contínua. Acima de tudo, uma profunda experiência “sintética” e filosófica foi adquirida, de um desenvolvimento histórico real. Isso não significa, e seria estúpido pensar assim, que o latim e o grego, como tais, têm qualidades intrinsicamente taumatúrgicas no campo educativo ” (1971: 37-39).

Os clássicos, como campo de pesquisa, não têm uma posição única de reivindicação como veículo para ensinar os alunos a integrar os “membros dispersos” de uma cultura, mas no seu melhor nível é um excelente veículo para a exploração crítica de como aspectos diferentes de uma cultura se relacionam entre si. Eu acredito que uma abordagem, que eu chamo de marxista, oferece vantagens extraordinárias para tal apropriação crítica dos clássicos. As ambiguidades, no entanto, que o termo “marxista” adquiriu – para não mencionar a muito anunciada morte do marxismo na Europa Oriental – pode, compreensivelmente, sugerir para alguns que ele pode ser descartado como sem sentido. Minha própria percepção é que a virulência com que o termo é arremessado como uma marca de opróbrio e a ferocidade com que é reivindicado por alguns e negado por outros indicam que o próprio termo é ainda ele um espaço de luta. Particularmente em um momento em que as declarações do fim do marxismo são mais estridentes, eu detestaria pular neste trio-elétrico em particular. Como alguém que cresceu nos anos 50, quando as demonstrações da irrelevância do marxismo constituíram um verdadeiro ramo da indústria acadêmica, sou cético sobre as alegações de irrelevância da metodologia marxista, como eu sou sobre declarações sobre o fim da história.


Notas:

[1] Há um mundo de diferença entre as especulações evolutivas de Xenófanes ou Demócrito e as consequências revolucionárias do trabalho de uma vida feito por Darwin. Para um estudo excepcionalmente legível e inteligente, cf. Clark 1984. Para alguns textos mais contemporâneos sobre as lutas ideológicas em que Darwin e ideias sobre características herdadas são um fator-chave, cf. Lewontin et at. 1984 e Gould 1981. Para uma exploração especificamente marxista de algumas dessas questões, ver Williams, “Ideas of Nature” e “Social Darwinism ” (1980: 67-1 02). O debate tanto dentro do feminismo quanto contra o feminismo centrado nos conceitos da natureza é tão extenso e intenso que talvez fosse insano sinalizar apenas alguns representantes; mas existe uma perspectiva histórica útil em Merchant 1980. Ver também Fuss 1989 e W. Scott 1988. Marable (1983: 252-53) comenta os esforços neorracistas de buscar uma base natural para a exploração de uma raça por outra no trabalho de Carleton Coon, William Shockley e Arthur Jensen. Gould habilmente comentou o impulso reacionário da sócio biologia (em Montagu 1980: 283-90; ver também a contribuição de Steven Rose, 158-170).

[2] Isto não significa que não aprendi muito com trabalhos filológicos mais tradicionais ou trabalhos sociológicos, como Beardslee 1918, Thimme 1935, Haedicke 1936, Heinimann 1965, Lacey 1968, Donlan 1980 ou mesmo Arnheim 1977.

[3] O intrigante exame de Jennifer Roberts das visões inglesas da democracia ateniense de 1630 ao final de 1940 apareceu recentemente (1989). Para as primeiras apropriações americanas, ver “Introdução” de Meyer Reinhold (1975: 1-27). O bom estudo de Turner, particularmente seu capítulo “O debate sobre a constituição ateniense” (1981: 187-263) abrange uma faixa mais ampla do que a palavra “vitoriana” em seu título sugere. Seu trabalho é bem utilizado no capítulo inicial de E. M. Wood, “O mito da multidão ociosa” (1989: 5-41).

[4] Para uma avaliação de Bloom por um classicista, cf. Nussbaum, I987. Eu também desejo expressar minha apreciação aos comentários sobre Bloom por James Dee e Susan Ford Wiltshire em uma reunião da Associação Clássica do Centro-Oeste e do Sul (1 de abril de 988) e minha apreciação por uma oportunidade de ler algumas observações não publicadas de Norman O. Brown.


Bibliografia citada no trecho:

Blake, William. The Complete Poetry and Prose. Revised edition by David V. Erdman, with commentary by Harold Bloom. Berkeley: University of California Press, 1982.

Bloom, Allan. The Closing of the American Mind. New York: Simon & Schuster, 1987.
Clark, Ronald W. The Survival of Charles Darwin: A Biography of a Man and an Idea. New York: Avon Books, 1984.

Gramsci, Antonio. Selections from the Prison Notebooks. Edited and translated by Quinton Hoare and Geoffrey Nowell Smith. New York: International Publishers, 1971.

Donlan, Walter. The Aristocratic Ideal in Ancient Greece. Lawrence, Kans. : Coronado Press, 1980.

Eagleton, Terry. Literary Theory: An Introduction. Minneapolis: University of Minnesota Press. 1983

Franco, Jean. “La politica cultural de Reagan.” Nexos (Mexico) 8 (October) 1985, 5-15.

Fowler, R. L.. ” ‘On Not Knowing Greek’ : The Classics and the Woman of Letters.” Classical Journal 78 (April-May), 1983, 337-49.

Gould, Stephen. The Mismeasure of Man. New York: Norton, 1981.

Haedicke, Walter. Die Gedanken der Griechen iiber Familienherkunft und Vererbung.
Ph.D. diss. , Martin Luther-Universitat, Halle-Wittenberg, 1936.

Heinimann, Felix. Nomos und Physis. Basel : Friedrich Reinhardt, 1965 [ 1945].

Hobbes, Thomas. Levithan. New York: E. P. Dutton, 1950 [1651].

Nussbaum, Martha. “Undemocratic Vistas.” Review of The Closing of the American Mind by Allan Bloom. New York Review of Books 34 (November 5): 1987, 20-26.

Ong, Walter J. “Latin and the Social Fabric.” In The Barbarian Within. New York: Macmillan, 1962.

Roberts, Jennifer Tolbert. “Athenians on the Sceptered Isle.” Classical Journal 84 (February/March) : 1989, 193-205.

Turner, Frank M. The Greek Heritage in Victorian England. New Haven: Yale University Press, 1981.

Wood, Ellen Meiksins. Peasant-Citizen and Slave: The Foundations of Athenian Democracy.
London: Verso, 1989.

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