Hegemonia, crises e conjuntura: ensaio sobre a situação brasileira

Por João Miranda

Jair Messias Bolsonaro, até há pouco tempo, não passava de um político do chamado “baixo clero”, expressão usada para designar parlamentares de baixa expressão na Câmara de Deputados que, comumente, colocam em primeiro lugar os seus interesses particulares e provincianos. Conhecido por suas declarações de elogio à Ditadura Empresarial-Militar (1964-1985) e por suas falas preconceituosas, nos últimos anos o “personagem folclórico” do Congresso foi, paulatinamente, galgando espaço nas redes sociais e na mídia, sendo visto por muitos dos seus seguidores como “salvador da pátria” e “mito”.


Dente outras ações condenáveis, ele votou a favor da contrarreforma trabalhista de Michel Temer, que significa um retrocesso sem precedentes, trazendo sérios prejuízos ao conjunto da classe trabalhadora, com violações inclusive à Constituição. Votou a favor também da “PEC do Teto de Gastos”, a qual congela os investimentos sociais do Estado por duas décadas, precarizando ainda mais o sistema público. Na prática, isso significa que a população mais pobre, que hoje morre nas filas de hospitais, se aglomera em transportes públicos lotados, têm acesso a escolas em decomposição e professores mal pagos, está vulnerável à violência, terá menos escolas, menos professores, menos remédios, menos médicos, menos transporte público, menos segurança, menos saneamento básico.

Além disso, Bolsonaro acumula na sua história uma série de declarações racistas, machistas, misóginas, homofóbicas. Foi condenado a pagar R$ 10 mil a Maria do Rosário por dizer que ela não merece ser estuprada por ser “muito feita”. Foi condenado por dizer que “quilombolas não servem nem para procriar”. Em plena votação no Congresso, as câmeras da suposta “casa do povo” mostraram o candidato votar sim por Brilhante Ustra, um homicida. Recentemente, voltou a recordar o torturador, definindo-o como um “herói”. Já em maio de 1999, não só defendeu o fechamento do Congresso realizado na ditadura, como também afirmou que deveriam “ter fuzilado corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique”. “O erro da ditadura foi torturar e não matar”, afirmou escancarando a sua veia autoritária. Além de reverenciar torturadores, ele é aquele que disse que preferiria um filho morto a um filho homossexual; é aquele que chamou de “esterco de vagabundagem” os direitos humanos; é, enfim, o mesmo que diz que só quem “fraqueja” gera uma filha.

Não obstante as suas próprias monstruosidades semânticas, Bolsonaro chamou para vice o general da reserva Hamilton Mourão (PRTB) que também já lembrou como “herói” o torturador. O general disse também em 2017 que famílias pobres “onde não há pai e avô, mas, sim, mãe e avó” são “fábricas de desajustados” que fornecem mão de obra ao narcotráfico. “A partir do momento em que a família é dissociada, surgem os problemas sociais. Atacam eminentemente nas áreas carentes, onde não há pai e avô, mas, sim, mãe e avó, por isso é fábrica de elementos desajustados que tendem a ingressar nessas narcoquadrilhas”, disse ele, em São Paulo, durante palestra a empresários.

Além disso, Mourão sempre que pode critica direitos arduamente conquistados pelas trabalhadoras e trabalhadores. Já criticou duas vezes o 13º salário. Na última vez, afirmou que “no fim todos se prejudicam” com o direito. Para ele, esse direito dos trabalhadores é “um custo”.

Bolsonaro também coleciona ainda declarações profundamente lamentáveis na seara econômica. Seu conhecimento sobre economia é tão raso que chega a ser chocante para alguém com tantos anos de vida pública. Ele próprio admite que não entende nada disso e que chamou para ser o seu “Ipiranga” Paulo Guedes, economista conhecido por suas declarações em defesa da ofensiva ultraliberal que torna a vida da população ainda mais dura.

Além desse legítimo Chicago Boy, Bolsonaro correu atrás da consultoria dos irmãos Abraham Weintraub, diretor da corretora do Banco Votorantim, e Arthur Weintraub, advogado e doutor em direito previdenciário. Com a dupla dinâmica, Bolsonaro redigiu uma nova versão da Carta aos Brasileiros, na qual defendeu a independência do Banco Central, separando-o da Fazenda. “Com sua independência, tendo mandatos atrelados a metas/métricas claras e bem definidas pelo Legislativo, profissionais terão autonomia para garantir à sociedade que nunca mais presidentes populistas ou demagogos colocarão a estabilidade do país em risco para perseguir um resultado político de curto prazo”, escreveu na carta. Tal proposta é, à esquerda e à direita, criticada por economistas de mais estofo.

Diante disso, como pode um sujeito como Bolsonaro, que elogia torturador, prega a violência, ignora preceitos básicos sobre tudo, desfira preconceitos o tempo todo, chegar à Presidência da República?

Procuraremos levantar algumas questões e hipóteses relacionadas à essa problemática, com o intuito de entender a crise de vários patamares e sentidos que vivemos no Brasil contemporâneo. O contexto político atual, para além dos debates mais imediatos, vem demandando análises sobre seu significado histórico para o país. Será uma tarefa de décadas entender em suas múltiplas e diversas dimensões e manifestações o que vem acontecendo ao país.

Os problemas que vivenciamos hoje no país são questões nacionais que estão longe de serem meramente nacionais. Devemos nos defrontar com o capitalismo como um todo, pois a crise atual, por mais que incorpore novas características, trata-se de um longo processo histórico cuja compreensão não pode cair na fragmentação, na individualização e na particularização de tudo. Numa época em que o capitalismo, como nunca, tornou-se completamente totalizante, universalizante e monopolista, ninguém poderia dizer a que veio reflexões que não buscam compreender o sistema em sua totalidade. Tais análises, que denomino aqui genericamente de “pós-modernas”, chegam com aparência de novidade e ousadia, mas, ainda que não se tratem de uma apologia clara do capitalismo, promovem uma série de reflexões que não o incomodam.

Ao invés disso, devemos ir além, no esforço de refletir de forma holística. A partir de uma análise totalizante, observa-se que a crise que atravessa o país tem origens numa crise maior, estrutural, do próprio capital. Diferentemente de outras épocas, as crises atuais, respeitando as proporções, têm origens não no enfrentamento de processos revolucionários, mas sim nos processos de expansão do sistema e na ofensiva do capital-imperialismo pela hegemonia ultraliberal.

A crise estrutural do capital e o ultraliberalismo

A raison d’être do sistema do capital está na acumulação que tem como eixo a “extração máxima do trabalho excedente dos produtores” (MÉSZÁROS, 2009, p. 99). Em outras palavras, isso significa dizer que a capacidade do ser humano de transformar é convertida em meio de enriquecimento, mas não de quem de fato produz, e sim de quem detém o poder dos meios de produção.

As formas precedentes de produzir eram orientadas para o uso e tinham os limites determinados pelas condições estruturais da produção. Uma comunidade plantava o que precisava comer, criava as ferramentas necessárias para a sua sobrevivência, e nada além.

A configuração da produção no sistema do capital não tem mais como critério os “valores de uso” não quantificáveis, mas sim os “valores de troca” quantificável, fetichizados e em constante expansão. Consequentemente, todos os recursos ambientais, culturais, sociais, humanos devem ser incorporados a uma lógica mercantil e concorrencial, a partir da qual as coisas valem pelo retorno que podem gerar e pelo potencial de exploração.

Trata-se de uma ditadura dos donos dos meios de produção que lucram com o excedente, isto é, acumulam com todo o trabalho não-pago realizado por quem produz: a classe trabalhadora. O trabalho se torna uma mercadoria e quem o realiza também.

Tendo em vista que a determinação desse sistema é baseada na exploração e movida pela acumulação, são constantes e periódicos momentos em que a produção não tem para aonde escoar, ocorrendo o que se consumou chamar de crise cíclica. Tais crises são inerentes a esse sistema, compõe a sua estrutura e possuem caráter conjuntural. Por mais graves que são as suas consequências para a classe trabalhadora, como desemprego em massa, inflação, aumento da violência, não afeta a manutenção do sistema.

No entanto, quando a crise afeta no seu todo a própria estrutura, isto é, afeta “o sistema do capital não apenas em um de seus aspectos – financeiro/monetário, por exemplo – mas em todas as suas dimensões fundamentais” e coloca “em questão a sua viabilidade como sistema produtivo social”, tem-se uma crise de implicações de ordem “sistêmica”, ou, nas palavras do filósofo húngaro István Mészáros, “estrutural” (MÉSZÁROS, 2009, p. 100).

A diferença entre as crises cíclicas e a estrutural não está na gravidade. Uma crise cíclica, como a Grande Depressão de 1929-1933, pode ser dramática e, ainda assim, as suas soluções podem ser encontradas dentro dos parâmetros do sistema. A crise estrutural não possuí esse caráter “explosivo”, é prolongada, mas também severa. É uma das características dessa crise a sua escala de tempo ser extensa e contínua, em contraposição a uma crise cíclica que se situa em determinado período. A que vivemos, de acordo com Mészáros, arrasta-se desde a década de 1970, afetando todo o planeta. Envolve, assim, o conjunto de toda a humanidade. Não se restringe a um determinado grupo de países. É global e, também, universal, no sentido de envolver (ou, melhor dizendo, “engolir”) todos os aspectos da vida social. Engloba a totalidade do sistema do capital, enquanto que uma crise cíclica abarca determinados aspectos do complexo social (Idem, p. 797).

Essa crise torna as presentes transformações sociais expressão atual de uma crise generalizada no controle do metabolismo social que “vai se tornar a certa altura muito mais profunda, no sentido de invadir não apenas o mundo das finanças globais mais ou menos parasitárias, mas também todos os domínios da nossa vida social, econômica e cultural” (MÉSZÁROS, 2009, p. 17).

A crise exigiu a mudança da hegemonia burguesa por meio de novos termos para que a manutenção da sociedade de classes não fosse ameaçada. Para continuarem dominantes, precisariam estabelecer novos patamares de exploração, através por exemplo da retirada de direitos históricos e arduamente conquistados pelo conjunto da classe trabalhadora, configurando um novo padrão de acumulação capitalista.

O evento possui grande relevância em si mesmo, promovendo transformações no sistema capitalista, no papel do Estado e inclusive na esquerda. Uma intensa campanha – promovida pelo grande capital – apresentavam um novo espectro de políticas e reformas econômicas, advogando em favor de políticas de liberalização econômica extensas, como as privatizações, austeridade fiscal, desregulamentação, livre-comércio, corte de despesas governamentais a fim de reforçar o papel do setor privado. Fica popularmente conhecido como “neoliberalismo” esse arcabouçou programático e teórico político-econômico que se formou a partir do ressurgimento e ressignificação das ideias derivadas do capitalismo laissez-faire, expressão símbolo do liberalismo, segundo o qual o mercado deve funcionar livremente sob a égide da mão-invisível. O prefixo “neo”, contudo, esconde que o processo se deu no sentido de radicalização dos preceitos do liberalismo, como veremos a seguir. Neste sentido, é mais adequado denominar de “ultraliberalismo”, ao invés de “neoliberalismo”.

O historiador inglês Perry Anderson aponta que as origens do pensamento “neoliberal” data do pós-guerra. Os primeiros fundamentos que definem o ultraliberalismo nasceram na região da Europa e da América do Norte, nas quais imperava o capitalismo. Surgiram como reação teórica e política contra a política intervencionista estatal e de bem-estar, tendo como texto de origem a obra “O Caminho da Servidão”, de Friedrich Hayek, escrito já em 1944. No livro, Hayek ataca, segundo Anderson, “qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política”. Três anos mais tarde, em 1947, Hayek convocou aqueles que partilhavam dos seus ideais para uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suíça. Nela estiveram nomes como Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi, Salvador de Madariaga, entre outros. Juntos formaram a Sociedade de Mont Pèlerin, a qual, de forma dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos, estabeleceu como propósitos combater o New Deal norte-americano e o Estado de bem-estar europeu, além de qualquer solidarismo reinante e keynesianista. As mensagens neoliberais contra a regulação do mercado, no entanto, permaneceram na teoria por mais ou menos 20 anos, transcendendo isso somente após a crise do pós-guerra, em 1973, mencionada anteriormente. Esse momento de inflexão, que Mészáros data como a origem da crise estrutural, é considerada a primeira grande recessão econômica desde a Segunda Guerra Mundial, quando o mundo capitalista caiu numa profunda e longa recessão, combinado com altas taxas de inflação e baixas taxas de crescimento (ANDERSON, 1995, pp. 09-10).

Após a crise estrutural, o capitalismo global mergulha em uma época histórica de reestruturações nas diversas instâncias da vida social. Para garantir os interesses do capital, os governos e organismos internacionais iniciaram o processo de alteração da dinâmica da acumulação capitalista, iniciando a consolidação da financeirização do capital – o que alterou o regime capitalista, de fordista para o regime financeiro.

O regime fordista que dependia, essencialmente, do ciclo de produção, consumo, distribuição e troca de mercadorias, é transcendido para uma nova fase, com o intuito de superar os limites da acumulação capitalista. Nessa nova fase, o que interessa e realmente importa é a relação em que o dinheiro emprestado volta com dinheiro e lucro, através da cobrança de juros.

Consequentemente, o investimento passa a ser massivamente destinado ao setor especulativo (juros, Bolsas de Valores, ações, fundos de pensão, títulos públicos, seguros etc), enquanto que a indústria e o setor produtivo perdem espaço gradativamente. Nesse processo, os bancos têm papel primordial – o que resultou, na atualidade, em um modo específico de funcionamento e de dominação política e social, em que a financeirização ou, melhor dizendo, a generalização do movimento especulativo do capital, está no centro do capitalismo contemporâneo mundializado.

Por tudo isso, o economista francês François Chesnais aponta o surgimento de uma nova configuração político-econômica do capitalismo mundial e nos mecanismos que comandam seu desempenho e sua regulação, em que as transações financeiras estão no centro das negociações. Não é mais Henry Ford ou Carnegie quem personifica o novo capitalismo de fins do século XX e início do XXI, e sim o administrador anônimo (e que faz questão de permanecer anônimo) de um fundo com ativos financeiros multibilionário (CHESNAIS, 1996, pp. 13-15).

No entanto, a historiadora Virgínia Fontes demonstra que a financeirização “não deve ser considerada como uma potência do dinheiro isolada dos processos de extração de valor”. Embora de fato a distância entre os proprietários seja alargada, “a ‘pura’ propriedade e a extração de valor estão intimamente ligadas” (FONTES, 2017, p. 415-416).

As crises, a partir disso, foram marcadamente crises financeiras (1987, 1996, 2001 e 2008) numa lógica do “capitalismo das bolhas”. A crise estrutural tem como ponto de colapso, portanto, nos próprios limites estruturais do capital (MÉSZÁROS, 2009). É oportuno observar que o economista belga Ernest Mandel não entende a inflexão no sistema capitalista gestada a partir da década de 1970 como uma crise estrutural do próprio sistema, como afirma Mészáros. Para Mandel, o que se vê é um processo de “ondas longas” com tendência à estagnação, num processo imbricado com fases de recessão e fases de retomada (MANDEL, 1985).

Contudo, o que se viu de fato foi uma crise estrutural que se expressa, dentre outras maneiras, na implementação da agenda ultraliberal para que a burguesia mantenha as suas taxas de lucro. A acumulação, contudo, não se interrompeu, mas também não voltou aos patamares históricos anteriores. Nessa crise estrutural, cada vez mais as crises cíclicas são mais intensas e longas e suas retomadas mais frágeis.

Pinochet (1973) no Chile, Thatcher (1979) na Inglaterra e de Reagan (1980) nos Estados Unidos foram os primeiros governos que promoveram um profundo e sistemático processo de retirada de direitos históricos e arduamente conquistados pelo conjunto da classe trabalhadora, gestando através disso a intensificação da flexibilização e precarização das condições de trabalho, estabelecendo relações pautadas pela subcontratação, emprego temporário e parcial, atividades autônomas etc. Dessa forma, atendiam a agenda ultraliberal (HARVEY, 2014).

O avanço e o alargamento do capital não deixam de ocorrer, mas se sustentam, portanto, no agravamento das contradições entre a relação de domínio do capital sobre o trabalho. Segundo Marx e Engels (2005), a sociedade capitalista é construída com os pilares das maiores contradições: a extração da mais-valia, como dito anteriormente. O desequilíbrio de forças entre capital e trabalho, então, aprofunda-se em um momento histórico em que ocorre o prosseguimento e desenvolvimento da lógica da financeirização e intensificação da expansão global do capital.

Porém, o ultraliberalismo não se trata somente da radicalização da doutrina econômica ou ideológica do liberalismo. Como aponta Fontes (2010, p. 217), não basta a exploração de mais-valia para o processo de acumulação do capital, mas também do disciplinamento da população à sua subalternização, coisificando-a de forma massiva em força de trabalho. Os filósofos franceses Pierre Dardot e Christian Laval defendem que o que se vê não é somente uma nova forma de espoliação do capital, mas sim a constituição de uma racionalidade global que não deixa incólume nenhuma esfera da existência humana, vinculando diretamente, no âmbito individual, os meios através dos quais os sujeitos são governados à maneira como os próprios sujeitos se governam. O indivíduo vê a si mesmo como uma empresa. As formas de subjetivação, o universo dos costumes, têm como ethos o modelo da empresa, tornando cada um de nós uma pequena empresa. Você S.A talvez seja o melhor emblema desse “novo indivíduo”, que entende que é proprietário dos seus predicados supostos – e que pensa, se justifica e cria laços como uma empresa. No seio do Você S.A surgem preocupações com as “empresas de si” circundantes, concorrentes, diante das quais deve-se buscar alcançar numa busca desenfreada e sem fim o aperfeiçoamento das técnicas de produção e de controle de si mesmo (DARDOT; LAVAL, 2016).

Portanto, diante do agravamento da crise estrutural do capital, o grande capital necessita intensificar as relações de exploração e opressão no processo de produção de mais-valia para manter as suas margens de lucro. Comumente, os defensores do ultraliberalismo e, inclusive a própria esquerda, defendem que nesse paradigma o Estado possuí um papel mínimo. No entanto, quando se afirma isso, há de se questionar aqui o que se entende por “Estado”.

O Estado, na acepção do intelectual sardo Antônio Gramsci, trata-se não só dos seus organismos administrativos. É interpretado como espaço de condensação das relações sociais, constituído pela sociedade política e a sociedade civil. A separação entre essas “sociedades” tem unicamente caráter didático. A sociedade civil é, portanto, parte integrante do Estado e definida como o conjunto de indivíduos organizados nos chamados aparelhos privados de hegemonia ou de contra-hegemonia, aparelhos que são o cerne da ação/pressão política consciente, dirigidas a certos objetivos. O Estado é composto ainda pela sociedade política, identificado pelo conjunto de aparelhos e agências do poder público, entendido como o “Estado em sentido restrito”.

Além do caráter repressor do Estado, adotado para coibir a organização da classe trabalhadora, através da retirada de direitos, repressão a manifestações, dentre outros meios, Gramsci entende que também existe a ação que se dá pela constituição do consenso, via cultura. A cultura é entendida em sentido amplo, integrando as concepções e visões de mundo, valores, crenças, auto-percepções de seu lugar na sociedade – desenvolvidas a partir da organização e atuação dos seus aparelhos privados de hegemonia (APH) ou de contra-hegemonia. Os APHs são organizações que possuem o objetivo de difundir a ideologia dominante. Nesse sentido, não há ideologia dominante sem a atuação dessas organizações, as quais detêm autonomia, para o qual o ingresso é voluntário – pressupondo identidade de classe –, e têm como objetivo manifestar e constituir base material própria, desde que seja na perspectiva de legitimar os interesses da classe dominante. Não se trata da reprodução do discurso dominante, mas sim a imbricação entre a ideologia dos “de cima” com as dos “de baixo”, constituindo ideias e projetos que, no fim das contas, são parte integrante das relações Estado em sentido amplo (sociedade política e sociedade civil).

Neste sentido, o Estado poderia ser interpretado como a condensação das relações sociais presentes na sociedade civil, que é o conjunto dos indivíduos organizados nos chamados aparelhos privados de hegemonia ou de contra-hegemonia e cerne da ação/pressão política consciente, dirigidas a certos objetivos; e presentes na sociedade política, identificado pelo conjunto de aparelhos e agências do poder público, entendido como o “Estado em sentido restrito”. Em linhas gerais, então, trata-se de um conceito de Estado que engloba tanto a sociedade civil quanto a sociedade política denominado de Estado ampliado ou integral.

Os defensores e ideólogos do ultraliberalismo, ainda que se arvorem como defensores do “Estado mínimo”, não observam que a teia de atuações dos aparelhos privados evidencia que as suas estratégias têm como sustentáculo a inter-relação com o Estado, que é acionado de diferentes maneiras, seja para exercer a coerção, seja para “educar”, propiciando a intensificação e o aprofundamento da exploração e expropriação do conjunto da classe trabalhadora e rifando recursos naturais e direitos sociais histórica e arduamente conquistados.

Essas transformações que perpassaram o capitalismo no final do século XX e se perpetuam pelo XXI englobam o conjunto de países do globo, apresentando fenômenos em comum, assim como características peculiares em cada um. Concordando com o filósofo húngaro György Lukács, é característico de qualquer sistema passar por mudanças. Obviamente que com o capitalismo não é diferente, pois está sempre sofrendo metamorfoses. Transforma-se e desagrega-se frequentemente num processo sócio-histórico longo, complexo e denso de contradições, através do qual ocorre progressiva reificação das categorias econômicas e modificações dialéticas. Dominados pela procura do lucro, os atores que protagonizam essas transformações se orientam por um pensamento fetichista que transforma as relações sociais, transforma os elementos materiais da riqueza em coisas (mercadorias) e transforma a própria relação de produção em uma coisa (dinheiro). Esse processo resultou, na atualidade, num modo específico de funcionamento e de dominação política e social, em que a financeirização ou, melhor dizendo, a generalização do movimento especulativo do capital, está no centro do capitalismo contemporâneo mundializado. Para entender esse processo, é fundamental ter como horizonte metodológico que não podemos reduzir o sistema em um modelo ou fórmulas matemáticas, supostamente aplicáveis em quaisquer condições de tempo e espaço. Um modo de produção trata-se de um complexo, uma teia articulada, composta por outros complexos (LUKÁCS, 2013, p. 201-251).

Nova direita, derrotas da classe trabalhadora na luta de classes e a dialética da democracia blindada no Brasil

A eclosão da crise estrutural do capital está conectada, no Brasil, ao processo de redemocratização, que se deu ao longo da década de 1980. Considerada a “década perdida” para o desenvolvimento na América Latina, muitos países latino-americanos foram, como parte da renegociação de sua dívida externa, orientados a implementar uma série de políticas e reformas ultraliberais – receituário que ficou conhecido como “Consenso de Washington” –, que promoveu a abertura, desregulação, privatização de suas economias nacionais. Isso ampliou o decréscimo dos resultados sociais e econômicos e apresentou-se no fim dos anos 1990 como incapaz de superar os problemas estruturais desses países, apesar de em alguns deles o processo inflacionário ter sido controlado.

O Brasil vivenciava no período uma efervescência de mobilizações da classe trabalhadora para o enfrentamento com o regime militar. Ocorreram uma série de greves históricas no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. As “Diretas Já” seriam o grande emblema das irreverências mil, como lembra a letra da canção O bêbado e a equilibrista.  Apesar disso, o processo de redemocratização foi lento, gradual e seguro para as estruturas dominantes do país.

A burguesia brasileira, alicerçada e orientada por suas ligações transnacionais com o grande capital internacional, reage violentamente em múltiplos níveis às formas de organização da classe trabalhadora, de forma a atualizar e a redefinir suas bases de dominação e atuação, adequando-se às novas maneiras de se relacionar com o Estado em processo de redemocratização.

Como veremos em seguida, as lutas populares pela mobilização e organização da classe trabalhadora em defesa da superação dos antagonismos sociais e do controle clássico da burguesia sob o Estado brasileiro, enfrentaram nesse período – e ainda enfrentam – uma forte oposição externa, constituída por uma série de aparelhos privados de hegemonia, além da própria transformação na classe trabalhadora, gradativamente mais precarizada; e uma forte oposição interna, oriunda da atuação de organizações da classe trabalhadora que nasceram patronais ou passaram por um processo de transformismo, deixando de ser contra-hegemônicos para se tornarem uma esquerda para o capital.

A dinâmica da luta de classes no período pode, de acordo com o historiador Eurelino Coelho, ser descrita em duas fases: a primeira, que vai de 1979 até 1989, é de avanço das lutas das classes subalternas; a segunda, que vai de 1990 até 1998, é de refluxo. No processo de redemocratização, quando há grande ascenso no Brasil de mobilizações da classe trabalhadora, conquistando importantes vitórias, a burguesia já havia reagido fortemente em vários países. Diante disso, a burguesia se via na necessidade de reconstituir a sua hegemonia sob novos patamares, adequando-se a um contexto de derrocada da ditadura empresarial-militar. Em nosso país, portanto, existe um retardo em relação à periodização geral (COELHO NETO, 2012, p. 281-282).

As estratégias de dominação da classe dominante são, historicamente, das mais variadas. Para o historiador Flávio Casimiro, a complexificação específica perpetrada a partir da redemocratização é a estratégia de “organização que se materializa por meio dos aparelhos da burguesia, porém integra crescentemente o próprio Estado. Isto vem ganhando projeção tanto de forma deliberada quanto inconsciente”, através da instrumentalização, objetivação e reprodução de seus projetos e valores em diversos meios, de forma que os seus interesses tomem amplitude e intensidade. Paulatinamente, vão radicalizando-se. Através da multiplicação de uma miríade de aparelhos de difusão, gradativamente a ideologia dominante ganha notoriedade e força, adquire ressonância em diferentes espaços da vida social e as formas de atuação da burguesia estabelecem conexões nacionais e transnacionais. Tais organizações compõe o que se consumou denominar hoje de “nova direita” (CASIMIRO, 2018).

Casimiro aponta que a atuação desses APHs se organiza no sentido pragmático, estrutural e doutrinário. Apesar do estudo sistematizar a série de aparelhos a partir das suas formas de atuação, o autor aponta que essa separação é unicamente de caráter analítico e didático, haja vista que cada um dos aparelhos desenvolve, em certa medida, um pouco de cada uma dessas estratégias ao mesmo tempo. No entanto, cada aparelho prioriza determinadas estratégias e táticas de ação e é reconhecido e classificado por Casimiro por esse caminho adotado (CASIMIRO, 2018).

No sentido “pragmático” Casimiro refere-se aos aparelhos da burguesia que agem elaborando diretrizes, intervindo no processo de constituição de políticas públicas, dentre outras maneiras. A principal arena para estas organizações foi a Assembleia Nacional Constituinte, para a qual financiaram campanhas, lançaram candidatos próprios e mobilizaram quadros de empresários urbanos e rurais. Os APHs de ação estrutural analisados são: Câmara de Estudos e Debates Econômicos e Sociais (CEDES), Grupo de Mobilização Permanente (GMP), Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), Associação Brasileira de Defesa da Democracia (ABDD), União Democrática Ruralista (UDR), União Brasileira de Empresários (UB), Movimento Cívico de Recuperação Nacional (MCRN), Movimento Democrático Urbano (MDU), Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE), Frente Nacional pela Livre Iniciativa (FNLI). Neste interim, Casimiro reflete ainda sobre o processo de complexificação da sociedade civil brasileira na virada dos anos 1980 para os anos de 1990, destacando a atuação do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social.

Os aparelhos de “ação estrutural” são aqueles que, alicerçados em um projeto de poder – não raro apresentado como se fosse este o interesse de toda a sociedade –, agem no interior do aparelho estatal, dentre os quais Casimiro analisa o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Instituto Atlântico, Grupo de Líderes Empresariais (LIDE) e o Movimento Brasil Competitivo (MBC). Tais aparelhos procuram influenciar a configuração da ossatura estatal, buscando a naturalização de valores da ideologia de mercado e a aplicação, no seio do Estado e na sociedade civil, de concepções – que variariam ao longo das décadas –, tais como “empoderamento”, “responsabilidade social”, “empresa cidadã”, “sustentabilidade”, com o intuito de reformular os seus mecanismos para torna-lo “eficiente”.

Finalmente, no sentido “doutrinário”, refere-se aos aparelhos de difusão doutrinária liberal conservadora que agem através da propagação das diferentes matrizes do pensamento liberal, promovendo também o recrutamento de intelectuais orgânicos. Ensejam realizar sua doutrinação pautados pelos ditames do capital e da economia de mercado. Os APHs de ação doutrinária analisados por Casimiro são o Instituto Liberal (IL), Instituto de Estudos Empresariais (IEE), Instituto Millenium (IMIL), Instituto Von Mises Brasil (IMB), Estudantes Pela Liberdade (EPL) e o Movimento Brasil Livre (MBL).

O trabalho de Casimiro permite evidenciar que a nova direita não é uma absoluta novidade, a sua edificação não foi repentina, muito menos surge nas Jornadas de Junho de 2013, como defende alguns setores da esquerda. Após mais de cinco anos do maior ciclo de manifestações de rua no Brasil dos últimos 30 anos, os sentidos desse acontecimento ainda permanecem em disputa – em especial, entre as forças do campo progressista. Dentre as diferentes teses sobre esse processo, há uma chave interpretativa, comumente presente nas formulações de intelectuais do Partido dos Trabalhadores, que imputa a Junho unicamente um caráter de direita, reacionário, segundo o qual essas manifestações foram responsáveis pela derrocada do governo Dilma e, acima de tudo, pelo “despertar” da nova direita. O trabalho de Casimiro tem o trunfo de nos apresentar a historicidade do processo que gestou a nova direita, evidenciando que se trata de algo que vem ocorrendo nas últimas décadas, desenvolvendo-se, adquirindo musculatura e ampliando-se no cenário político brasileiro ao longo dos anos, tendo como preâmbulo na redemocratização da década de 1980.

O capital buscava – processo que ainda persiste – se expandir para fazer frente à crise e, também, para aplacar o avanço das lutas sociais. Tais organizações atuam no Estado ampliado, controlando gradativamente a sociedade civil e política, de modo a promover a reconfiguração da ossatura estatal, espalhando os seus tentáculos patrimonialistas sobre direitos da classe trabalhadora. Assim, os preceitos ultraliberais ganham cada vez mais espaço. Trata-se de um processo de atuação da nova direita que ocorre nas últimas décadas e que, como afirmou Mandel (1985, p. 344), promove a reprivatização não-oficial do Estado.

No âmbito do sistema político-institucional, a expectativa na década de 1980 era de que no futuro, segundo o filósofo Marcos Nobre, toda a diversidade de organizações políticas e formas de atuação se confluísse em sólidas e efetivas coalizões de governo, fortalecendo a democracia que, naquele momento, nascia. Os anos foram passando e o subterfúgio que surgiu em resposta a essa progressiva fragmentação do sistema partidário foi o chamado “presidencialismo de coalizão” (NOBRE, 2016, p. 137). A expressão foi cunhada pelo cientista político Sérgio Abranches num artigo pulicado em 1988, antes mesmo da promulgação da Constituição. O cientista foi muito perspicaz em, naquele momento, perceber que estava se formando grandes e consistentes coalizões governativas político-partidárias e, principalmente, partidário-parlamentares, e que isso pelos próximos anos caracterizaria o sistema político-institucional brasileiro (ABRANCHES, 1988).

Esse modus operandi baseado em alianças e conchavos entre as elites há muito tempo permeia nosso sistema político. O que aconteceu pós-1988 foi uma reconfiguração do mesmo para se adaptar aos moldes da democracia, com as velhas raposas da Ditadura – com destaque para o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), legenda que depois se tornou o PMDB e, recentemente, voltou a ser MDB – e também com os novos atores que durante o regime não tinham voz. Como afirmou Florestan, o Brasil, de tempos em tempos, transforma-se para, paradoxalmente, continuar o mesmo (FERNANDES, 2005).

Abranches defende a tese de que por meio desse agrupamento de partidos, a democracia brasileira estaria passando por um processo de consolidação. Esperava-se no final dos anos de 1980 que as coalizões gestassem no seio do sistema democrático uma tensão saudável e produtiva entre Executivo e Legislativo, o que pensavam que propiciaria uma experiência coletiva formadora de fusões, aquisições e negociações político-partidárias. Acreditava-se que tal processo resultaria na comunhão de forças a partir de um norte definido coletivamente.

Alguns estudos mais recentes (SAES, 2001; Limongi, 2006; Martuscelli, 2010; DEMIER, 2017) demonstram que, na realidade, o que aconteceu foi uma limitação de nossa jovem democracia através de sua progressiva imobilização. As coalizões impossibilitaram a separação de poderes, permitiram que o sistema democrático herdasse da Ditadura o autoritarismo e cimentou o divórcio entre o sistema político e a população.

Quanto a separação dos poderes, ela não se configura na Nova República, dado que o sistema de coalizações faz com que, segundo Martuscelli, o Executivo interfira no Legislativo, do mesmo modo que este exerce um direito de vigilância sobre aquele. Executivo e Legislativo, assim, constituem somente ramos, braços ou segmentos do poder estatal, e não poderes distintos e separados (MARTUSCELLI, 2010, p. 64). A articulação de ambos na prática significa que os partidos com reais chances de competir eleitoralmente quase sempre são engolidos por grandes coalizões no Congresso e Senado e se tornam nada mais do que facções de um mesmo partido, nas quais a moeda corrente é o apoio parlamentar posto à venda a qualquer governo que esteja no Executivo, o qual é definido na eleição presidencial para ser o negociador-mor da coalizão.

Paulatinamente, as coalizões foram se fundindo e, a partir de 1994, culminaram em duas grandes frentes que, para serem melhor compreendidas, acho que as duas podem ser divididas como cabeça e corpo. De um lado, o corpo do sistema político: um grande agregado sem perfil definido formado por um conjunto de partidos fisiológicos que, conforme Avelar, “la ubicación em el espectro ideológico importa menos que las alianzas de conveniência basadas em la oferta de cargos em aparato estatal, la cesión de tempo de televisión en las campañas electorales y el soborno puro y simple” (AVELAR, 2016); todos dispostos a aderir a qualquer governo, desde que recebam em troca essas e outras regalias. Do outro lado, a cabeça formada por dois partidos, PT e PSDB, especializados em coordenar, a partir de um projeto de governo, esse grande bloco de apoio parlamentar. A busca por votos e cargos foi terceirizada por esses dois partidos para os demais e ambos se concentraram unicamente na tarefa de coordenação da megacoalizão. O coordenador, como dito anteriormente, é definido a cada quatro anos por meio de eleições presidenciais.

Tamanho apoio teoricamente permitiria que o partido líder implementasse o seu programa de governo. Porém, segundo Nobre, o que acontece não é exatamente isso, pois são inúmeros os entraves e obstáculos impostos por uma base “inchada”. Para o partido líder que venceu as eleições, então, resta apenas tentar por meio de diversas negociações conseguir implementar algo do seu projeto. Para o partido líder que perdeu as eleições presidenciais, resta apenas que o governo vá mal, de modo que o poder federal lhe caia no colo (NOBRE, 2016, p. 140).

Em parte, esse imobilismo aconteceu porque, apesar de existir rodízio do ocupante da cadeira de negociador-mor da coalizão, a cúpula que forma o grande corpo mantém pronunciada estabilidade e continuidade. Assim, enquanto que a cabeça é definida a cada quatro anos por eleições presidenciais, no corpo as mudanças não são tão frequentes. Progressivamente, o PMDB se tornou o partido mais expressivo da coalizão. Ao longo dos anos cada vez mais o poder Legislativo refletia a figura dos pemedebistas. Por essa razão, Nobre taxa como “pemedebismo” o presidencialismo de coalizão, pois, segundo ele, esse grande bloco replica o modo de operar característico desse partido, que se trata de uma tendência de conservação do status quo. Soterrado por esse sistema, convivemos com uma “cultura de baixo teor democrático” que blinda o país contra transformações sociais em larga escala (NOBRE, 2013).

Apesar da tensão entre Executivo e Legislativo, trata-se de um sistema que opera por meio de grandes blocos de maneira a permitir o fim de entrechoques e conflitos abertos. Não significa que não houve conflitos. Significa que os conflitos foram evitados o máximo possível. Ao invés de abrir o caminho para que os entrechoques aconteçam e estabelecer um debate democrático que permita chegar coletivamente a um acordo, tudo foi jogado para debaixo do tapete. Consequentemente, no lugar de um processo democrático, tomam o espaço inúmeras articulações políticas para atenderem ao jogo de interesses. Em “Reflexões Im-pertinentes”, Fontes aponta que escândalos sucessivos envolvendo personagens e partidos políticos em procedimentos escusos procuram diluir as fronteiras entre as organizações políticas, sendo todas taxadas como idênticas. “A desqualificação da política não é, pois, um resultado acidental ou uma ausência de cultura política, mas uma cultura política efetiva posta em prática” (FONTES, 2005, p. 292). A pauta da corrupção toma aqui grande espaço no projeto das classes dominantes de condenar o “sistema político” e não o capitalismo, afastando a classe trabalhadora, deixando-o livre para os gestores do capital (DEMIER, 2017, p. 71). No fim das contas, praticamente permite às instituições somente movimentos hesitantes e ampliou o divórcio entre o sistema político e a população, gradativamente blindando a democracia brasileira (DEMIER, 2017).

O processo de transição pelo alto da ditadura para a democracia garantia à burguesia brasileira o controle dos aparelhos de poder que, conjuntamente com a atuação dos aparelhos privados de hegemonia da nova direita, possibilitava a implantação da agenda ultraliberal, exigência das classes dominantes para manterem o regime de acumulação explorando a cada dia mais os de baixo. Não se trata, portanto, de um projeto da burguesia nativa, mas sim da perpetuação da submissão da burguesia brasileira ao imperialismo.

Florestan Fernandes aponta que, historicamente, a burguesia no Brasil, ainda que em algum momento possa se auto definir como palladina da modernidade, adota um processo lento e gradual de constituição e modernização do capitalismo brasileiro, sempre de forma subordinada ao imperialismo. O país, assim, é historicamente conduzido a transformação capitalista sob a configuração definida como “capitalismo dependente”, marcada pela coexistência e interconexão do arcaico e do moderno, ao invés da esperada revolução nacional e democrática (FERNANDES, 2005).

Para não haver nenhuma barreira ao projeto de injeção no país da agenda ultraliberal, era necessário promover a quebra completa da organização da classe trabalhadora que, na década de 1980, estava sintetizado na construção da contra-hegemonia liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Concordando com Coelho Neto, tudo mudaria a partir de 1989. Collor chegou ao segundo turno porque se tornou, com apoio de importantes meios de comunicação, como a Rede Globo, o anti-Lula. Derrotar Lula, que era a expressão-mor do movimento contra-hegemônico no país, tornou-se a grande tarefa da burguesia. No governo Collor a agenda ultraliberal tornou-se a ideologia oficial da classe dominante, perpetrando a série de retrocessos, como abertura comercial ao capital internacional, desregulamentação financeira. A ausência de vínculos orgânicos sólidos do governo Collor com os setores estratégicos da classe dominante abrira caminho para que não se estabilizasse. Foi nos governos de FHC que foram combinadas as forças para consolidação da hegemonia ultraliberal, promovendo uma hegemonia burguesia no país, ainda que restrita (COELHO NETO, 2012, p. 284-285).

O capital buscava se expandir para fazer frente à crise estrutural e, também, para aplacar o avanço das lutas sociais. Dentre outras maneiras, esse processo se dá através da reconfiguração da própria classe trabalhadora, reduzindo drasticamente os empregos com direitos e intensificando a exploração dessa classe (ANTUNES; SILVA, 2004). A abertura comercial também promove a derrocada de uma série de empresas brasileiras, intensificando o desemprego. Não é por acaso que no início dos anos 1990 ocorre redução do número de greves, numa constante de refluxo das mobilizações.

Ocorria ainda desde a década de 1970, segundo Fontes, a conversão mercantil-filantrópica da militância pelas entidades autonomeadas Organizações Não Governamentais (ONG). Esse processo contribuiu para fragmentar o campo popular, desconfigurando o esforço de mobilização e organização. Ao invés de promoverem a elevação da consciência de classe das trabalhadoras e dos trabalhadores, o que se viu foi a conversão das “organizações populares em instâncias de ‘inclusão cidadã’ sob intensa atuação governamental e crescente direção empresacial” (FONTES, 2010, p. 257).

Ao longo da década de 1990 o PT transitou, aponta Coelho Neto, de um partido de base social, cuja trajetória contribuiu para a construção da experiência coletiva do conjunto da classe trabalhadora, para um partido similar a todos outros. Essa inflexão se dá pela mudança da condição social dos protagonistas do partido, que ascendem socialmente ao longo da década de 1990 e aderem a agenda ultraliberal, tornando-se assim uma esquerda para o capital (COELHO NETO, 2012).

Nos governos petistas isso não foi diferente. Lula, quando se elegeu, abandou o programa neodesenvolvimentista e promove uma série de medidas que beneficiaram a população, como as cotas nas universidades e a distribuição de renda, mas que foram acompanhadas pelo projeto de perpetuação da agenda ultraliberal. O padrão de intervenção estatal visto nesse período não está aquém do programa ultraliberal visto nos governos de FHC, por exemplo. Mais do que isso, os governos petistas conferiram ao ultraliberalismo uma estabilidade política tão sólida que possibilitou que esse projeto atingisse a completa hegemonia de qualidade superior, por meio da combinação de políticas que beneficiam o grande capital com políticas sociais (MACIEL, 2010).

Crise de hegemonia, golpe de 2016 e onda conservadora

Como apontamos anteriormente, a burguesia nativa não é revolucionária. Para se manter enquanto classe dominante, a burguesia, ao invés de promover a revolução democrática, impõe ao país um processo lento e gradual de atualização do capitalismo, de forma que o status quo não seja ameaçado. O tecido social, assim, não é rompido, numa lógica do conservar-mudando. A classe dominante adapta-se a ele, modificando-o à sua maneira, gradualmente. Com efeito, foi gestado no Brasil um processo que é, por excelência, uma revolução passiva. O conceito é de Gramsci, cunhado durante o período entreguerras na Itália, no seu estudo clássico a respeito do Risorgimento italiano. A tese do filósofo sardo é de que as revoluções passivas europeias têm as suas raízes no rastro revolucionário de 1789 a 1848.

No Brasil, as raízes podem ser mais precoces, datando da instalação da família real no país, em 1808. A corte portuguesa realizou tal empresa para fugir do avanço de Napoleão pelo oeste europeu. Ao se instalar aqui, imputaria a lógica de conservar-mudando de modo que conseguisse se estabelecer na colônia. Isso possibilitou à burguesia nativa, com décadas de antecedência em relação a europeia, as ferramentas políticas para se manterem hegemônicas, passando por cima feito um rolo-compressor nas insurreições vistas aqui posteriormente.

A “revolução passiva à brasileira” na Nova República, urdida após a Constituinte (1987-1988), como definiram Ruy Braga e Alvaro Bianchi, caracteriza-se como um processo de permanente e lenta atualização do capitalismo através de reformas promovidas diretamente pelo Estado, num processo que se dava de cima para baixo, sem a participação ativa da classe trabalhadora (BRAGA; BIANCHI, 2015).

Lula conseguiu perpetuar isso ao longo dos seus governos através do chamado “lulismo”, que deu o tônus da mudança social a partir dos anos 2000. Trata-se de uma política conciliatória que promove uma parca distribuição de renda para a classe trabalhadora, enquanto que ao mesmo tempo não desagrada ao grande capital.  Não seria necessária uma lupa para constatar que a ascensão social das classes desfavorecidas foi uma grande conquista. Eu fui um entre os milhões que, por meio dos programas do governo Lula, teve a vida mudada para melhor, ainda que de forma restrita. Esses ganhos sociais, entretanto, não passam de uma “revolução passiva” e não são garantias permanentes. Como afirma Pereira da Silva, tais políticas sociais não apontam para a universalização, pois não constituíram a institucionalização mais definitiva de novos direitos e não configuram como estado de bem-estar social. Ainda que tenham sido políticas mais abrangentes do que as implementadas nos anos 90 e os indicadores sociais tenham apresentado consideráveis avanços, elas foram focalizadas, temporárias e de governo (PEREIRA DA SILVA, 2015, p. 75).

São políticas de governo, e não de Estado, que estão longe de ameaçar a estrutura. Como afirma Fontes, trata-se de uma política de probetologia, que se perpetua por toda a Nova República, mas que é ampliada nos governos petistas, melhorando a vida da população desassistida, enquanto permite que o grande capital enriqueça com isso. A miséria se torna, assim, uma mercadoria. Para Mandel, as expectativas ilusórias sobre a possível “socialização através da redistribuição” no fim das contas seriam apenas os primeiros passos de um “reformismo cujo fim lógico é um programa completo para a estabilização efetiva da economia capitalista e de seus níveis de lucro” (MANDEL, 1985, p. 339).

Essa revolução passiva à brasileira expressa, como afirmou o cientista político André Singer, uma transformação vagarosa, sem ruptura com o passado e gestada pela coalização heterogênea entre setores modernos e tradicionais da sociedade. Assim, as mudanças sociais poderiam ocorrer, desde que não ameaçassem a Ordem dominante. Dessa forma, Lula mantém no seu primeiro mandato a política econômica do governo de FHC que acaricia os investidores e, ao mesmo tempo, se aproveitava do boom das commodities para promover fortes políticas distributivas, dando aos pobres sem tirar dos ricos. Como disse Singer, ele promoveu a “redução da pobreza e da desigualdade, mas sob a égide de um “reformismo fraco” (SINGER, 2012).

O lulismo é, então, a tentativa de realizar dentro da ordem mudanças que beneficiam a população. Para coordenar a megacoalizão do sistema político-institucional, Lula fez como FHC: optou por obter a adesão fisiológicas das correntes e personalidades e, aliado a esse grande bloco de apoio parlamentar, implementou o seu reformismo fraco. Quanto mais esse processo se fixa, mais a identidade do PT foi corroída e mais da esquerda se afasta. O lulismo, assim, “abandonaba cualquier pretensión de realizar las reformas estructurales en nombre de las que el PT había sido construído. El sintagma “reforma agraria” desaparece […]. La reforma política que podría desestabilizar el blindaje oligárquico del pemedebismo fue abandonada” (AVELAR, 2016).

Quando Lula chega ao poder e faz essas alianças espúrias para conseguir implementar seu programa, vimos parte da esquerda se afastar dele (o que mais tarde resultaria na formação de outros partidos à esquerda do PT, como o PSOL). Se afastam porque a esquerda, para fazer as mudanças que quer fazer, tem que ameaçar a ordem, o status quo, a estrutura, etc. Lula não faz isso. Enquanto essa esquerda se afasta desse partido, setores da população em grande vulnerabilidade social vão ao longo do seu primeiro mandato aderindo em massa.

Assim, os governos petistas, com destaque para os de Lula, contribuíram para a formação de uma sociedade de massas de consumo dirigido, possibilitando uma conciliação de classes com ganhos limitados às classes trabalhadoras, processo que não foi acompanhado pela mobilização e organização desse conjunto da população, o que poderia permitir que a sua parca ascensão social fosse acompanhada da elevação da consciência de classe. Quando é bem-sucedido um projeto realizado pelo poder público, a razão de seu sucesso é sempre esvaziada, atrelando isso a uma figura especifica, personalizando a ação. Exemplo disso é o bolsa família, programa que teve efeitos muito positivos no país promovidas pelos governos petistas. Contudo, a propaganda por trás dessa política pública não aponta o programa como uma conquista dos movimentos sociais e da ação das instituições, e sim unicamente do trabalho de Lula. Essa cultura política de descrédito põe em xeque a democracia, tendo como efeito perverso o questionamento do sistema democrático.

A constituição de consumidores numa conjuntura em que as instituições de organização, como sindicatos e partidos, são transformadas de anti-sistema para uma esquerda do capital – além de serem aparelhadas pelo governo, intensificando no caso dos sindicatos o “sindicalismo de estado” –, amplia o abismo entre a população e os seus meios de mobilização e representação. Consequentemente, as classes trabalhadoras podem até se mobilizar, realizando protestos espontâneos, como vimos em muitas das manifestações dos últimos anos – exemplo emblemático disso é a greve dos caminhoneiros realizada em 2018 contra o aumento constante do preço do diesel –, mas não se organizar a partir da figura de um movimento com um projeto claro, antifascista, popular e democrático. Ao longo desse processo, a classe operária se refugia, gradativamente, no domínio econômico-reivindicativo.

Concomitante a isso, a classe trabalhadora foi “preparada” ao longo de anos, reacionariamente, por aparelhos privados de hegemonia, como o MBL – entre outros tantos de ação doutrinária –, o qual trabalha para defender os preceitos ultraliberais – e que, conjuntamente com outros movimentos políticos, foi capaz de minar os mecanismos e forças de luta antifascista.

Concordando com o historiador Felipe Demier, as manifestações de 2013 urgiram contra essa democracia blindada e seus efeitos deletérios, em defesa da ampliação e desenvolvimento dos serviços públicos básicos, dos quais a maioria esmagadora da população depende. Os milhões de cartazes evidenciavam a pauta – difusa ideologicamente e frágil no âmbito organizativo – por “mais saúde”, “mais educação” e pela “redução da tarifa” (ou “passe livre”). Eu fui um que, dentre tantos, levantei mais de uma vez cartazes não pelos vinte centavos, mas por um país da Justiça social. Estava sendo questionado também, dentre outras coisas, os altos investimentos em estádios que receberiam jogos da Copa do Mundo da FIFA, realizada no ano seguinte (DEMIER, 2017).

As redes sociais, rompendo o bloqueio midiático, evidenciaram que as ruas de diversas cidades ao longo de todo país se tornaram palco de inúmeras grandes manifestações. A profusão de bandeiras e vozes das forças populares não eram contra diretamente o regime de democracia blindada, mas expressava a exigência de direitos negados por esse sistema. Organizávamos e participávamos de grandes atos exigindo melhorias nos serviços públicos e, quando retornávamos para casa, víamos a grande mídia nos demonizar, taxando-nos como “vândalos”. Através de uma série de malabarismos retóricos, acusava-nos de, ao ocupar as ruas, impedir o direito de ir e vir. Percebendo que o esforço de nos tripudiar não estava alcançando os resultados esperados – tais como promover a desmobilização e colocar a população contra as manifestações –, a grande mídia promoveu uma inflexão abrupta em seu discurso: rapidamente, ao chegarmos em casa, o que víamos nos telejornais e na mídia burguesa impressa era o apoio às manifestações, mas apoio esse que trazia consigo pauta própria. Depois de caminharmos pelas ruas exigindo, por exemplo, educação, saúde de qualidade, chegávamos em casa e víamos a grande mídia noticiar que lutávamos pela aprovação da Proposta de Emenda Constituicional (PEC)-37, pela “prisão dos ‘mensaleiros’”, “contra a corrupção”, “redução de ministérios”.

Demier aponta essa inflexão no repertório da grande mídia, evidenciando também a estratégia burguesa de controlar as mobilizações, se deu ainda por meio da propagação da ideologia antipartido. Todos os partidos eram demonizados, sejam eles da ordem ou não. “O meu partido é o Brasil” era a frase constantemente evocada e não aceitavam a presença de quaisquer bandeiras nas manifestações (DEMIER, 2017). Nos casos mais extremos, os militantes eram não só expulsos, como também tinham as suas bandeiras queimadas.

Segundo Demier, em função dessa mudança abrupta na cobertura midiática, que criava um abismo entre realidade e discurso, setores mais conservadores da população levantaram do sofá e vieram às ruas para reclamar tal plataforma programática defendida pela grande mídia. “Com isso, a incessante cobertura midática a respeito de atos passou a ser, ao menos em parte, verdadeira, e os setores de esquerda que haviam iniciado as mobilizações viram-se rapidamente diluídos em meio a uma enorme massa policlassista e politicamente heterogênea” (DEMIER, 2017, p. 70-71). Segmentos da Nova Direita, em atuação desde as suas origens no processo de redemocratização, ampliaram o seu alcance neste momento. Grande parte desses setores seriam futuros votantes em Marina Silva e Aécio Neves nas eleições presidenciais de 2014. Lideranças do PSDB procuraram aproveitar essas circunstâncias para enfraquecer o governo de Dilma Rousseff, mas não exigiram naquele momento a queda do governo, como alguns dirigentes do PT afirmam.

A blindagem foi perpetuada. O clamor das ruas não furou o bloqueio que cerca os três poderes do regime (Executivo, Legislativo e Judiciário). Pelo contrário, o regime, então dirigido pelo governo de Dilma Rousseff, não só não atendeu as reivindicações de reformas no sistema político-institucional, mantendo-se cego e surdo a série de manifestações que exigiam a elevação da qualidade dos serviços públicos, como também criaram uma série de dispositivos institucionais de repressão, como a “Lei Antiterrorismo”, aprovada em 2016. A repressão policial, que se manteve ao longo de todo o período de protestos, foi intensificada no período posterior a junho, com o intuito claro de por fim as mobilizações.

Já afirmamos aqui que, comumente, setores da esquerda brasileira, em especial do PT, apontam as Jornadas de Junho de 2013 como o momento em que a onda conservadora que assola o país se origina. De fato, houve neste momento o avanço da Nova Direita, mas as suas origens datam do processo de redemocratização. Além disso, esse avanço da onda conservadora não se deu por conta das manifestações, mas como o governo Dilma reagiu às Jornadas.

Entrou em crise também a partir de meados de 2013 a hegemonia restrita das classes dominantes no Brasil. Posteriormente, o governo não conseguiu construir o consenso necessário e estabelecer um conjunto de aliança estáveis para perpetuar o processo de atualização gradual do capitalismo brasileiro, isto é, a revolução passiva.

A reeleição de Dilma e sua atitude subsequente a posse intensifica ainda mais a crise política e o clima de descontentamento e desconfiança. Em 2014, a oposição tinha tudo para vencer as eleições presidenciais. Apesar do desgaste de doze anos de governos federais petistas, da economia em baixa, da inflação sobretudo de alimentos, do clima de polarização pós-protestos de 2013, Dilma é reeleita, enfurecendo a oposição. Durante a campanha, a esquerda ex-governista abraçou o discurso da polarização e, à revelia de toda a campanha que Dilma fez nas eleições, afirmando que não permitiria a contensão do crescimento, a recessão, o desemprego, o arrocho salarial, o aumento da desigualdade e toda a submissão que o Brasil tinha no passado ao FMI, ela faz totalmente o contrário, realizando o que é popularmente conhecido como um “cavalo de pau”, ou, nas palavras dos doutos, um estelionato eleitoral.

Era evidente que a desconfiança nas instituições políticas não só persistiria no país, como também foi intensificada. Não é à toa a corrupção ter sido um dos principais temas debatidos entre os candidatos nas eleições de 2014 e como um dos fatores para a população escolher determinado candidato, ou nenhum. “O ambiente político que precedeu e caracterizou as eleições de 2014, marcado por um sentimento difuso negativo em relação à política em geral, deu espaço para a diminuição da confiança nas instituições políticas, fortalecendo a ideia de vivermos sob uma democracia inercial” (Baquero; Castro; Ranincheski, 2016, p. 29).

A operação Lava-Jato, deflagrada em março de 2014, é conjuntamente uma das raízes para a crise da hegemonia restrita das classes dominantes. A operação é conduzida pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. Investiga grandes esquemas de lavagem e desvio de dinheiro público envolvendo o alto escalão da Petrobras, grandes empreiteiras do país e inúmeros grupos políticos. Já é considerada a maior operação contra a corrupção de todos os tempos, no Brasil. Quanto mais a operação avançou, mais foi produzindo efeitos desorganizadores sobre o governo Dilma e gerando descontrole no sistema de megacoalizões. Os diálogos gravados de Romero Jucá (PMDB) explicitam bem que as investigações não se limitaram ao partido do governo e o governo Dilma. Com o avanço da operação ficava claro para os parlamentares que Dilma não oferecia proteção contra as investidas da Justiça. A prisão de Delcídio do Amaral em novembro de 2015 foi, com certeza, a gota-d’água para o peemedebismo isolar o governo Dilma. Precisavam estancar a sangria.

Contudo, a série de reportagens reveladas pelo site “The Intercept Brasil”, evidenciam o profundo tendencionismo da cúpula da Lava Jato, principalmente de Deltan Dallagnol e do ex-juiz federal e hoje ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. As reportagens revelam a atuação notoriamente parcial da operação com práticas políticas questionáveis, como o vazamento seletivo de informações da operação para a grande mídia, abuso de prisões preventivas e de delações. Ninguém precisa entender muito de direito para perceber que isso cria um clima ‘schmittiano’ de suspensão da lei, intensificado por uma relação promíscua entre o Judiciário e a grande mídia.

Até as pedras do calçamento viram a mídia receber da operação uma série de informações, delações, áudios vazados e, com todo esse aparato, cobrirem exaustivamente essa investigação, explorando tudo em seus mínimos detalhes e, quase sempre, fazendo ilações, apostando em denúncias, até condenando moralmente os envolvidos nos esquemas de corrupção antes do julgamento.

As redes corporativas de notícias recebem dessa instituição uma série de informações e, coincidentemente, sempre estão a postos com câmeras na mão no exato momento e lugar em que ocorrem prisões preventivas. A participação da mídia fica ainda mais evidente na maneira como ela cobre o escândalo da Petrobrás e no modo como cobriu as manifestações pró-impeachment e o próprio processo de impeachment.

O agendamento e enquadramento realizado pela grande mídia brasileira nos últimos tempos marca o seu repertório com o posicionamento claramente contra a esquerda, em especial, contra o PT e suas figuras principais. O próprio nome que cunharam para o esquema de corrupção na Petrobrás, chamando-o de “Petrolão”, é claramente um esforço de iguala-lo a outro envolvendo esse partido, o Mensalão, que veio à tona entre 2005 e 2006.

Inflada com as manchetes da grande mídia sobre os casos de corrupção – ação doutrinária perpetrada pela mídia que permeia toda a Nova República – frações da classe média e da alta classe média ocuparam as ruas em massa, principalmente em 2015, para se manifestar contra o “erro” das urnas de 2014. Os protestos massivos e os “panelaços”, convocados principalmente pelo MBL, Vem Pra Rua e Revoltados Online, paulatinamente, convergiram para a demanda de impeachment da presidente Dilma e explicitavam o ranço antipetista e antigovernista que permeia essa classe.

Concordando com o cientista político Armando Boito Jr., é interessante observar que, em grande medida, a atuação da alta classe média brasileira no país, nesse processo de inflexão da nossa história, é também efeito das políticas que possibilitaram a ascensão social e intelectual das classes mais desfavorecidas. Todas as medidas de investimento nas camadas mais populares – como as cotas raciais e sociais nas universidades e no serviço público, os programas de transferência de renda, a extensão dos direitos trabalhistas às trabalhadoras domésticas, a elevação constante do salário mínimo – são vistas pela alta classe média como uma conta com a qual ela deverá arcar por meio do aumento de impostos. Incomoda também porque fere os seus valores da ideologia meritocrática, além de pôr em risco a reserva de mercado que os seus filhos têm nas universidades e no setor público. Ainda que tenha sido predominantemente essa classe que tenha ocupado as ruas no período, a insatisfação com o governo, assim como com todo o sistema político-institucional, percorria de alto a baixo a sociedade brasileira. Em grande medida, essa insatisfação se deve aos inúmeros casos de corrupção intensamente noticiados pela grande mídia, o aumento vertiginoso do desemprego, da desigualdade, da violência (BOITO JR, 2016).

Quanto mais a operação Lava Jato avançou, mais foi produzindo efeitos desorganizadores sobre o governo Dilma e gerando descontrole no sistema de “conciliação pelo alto” via megacoalizões. Em 2015, ao perceberem o enfraquecimento do governo e o avanço das investigações da Lava Jato, os líderes do PMDB – em especial, Temer e Cunha – dão início a uma série de ações que levaria a completa quebra da megacoalizão entre o PT e o peemedebismo. Para Limongi, “eleito em confronto aberto com o governo [para a presidência da Câmara dos Deputados], Cunha passou a acalentar sonhos mais altos. Foi aí, se não antes, que seus desejos e os de uma parte considerável do establishment se alinharam” (LIMONGI, 2015, p. 103). As manifestações da alta classe média seguiam apontando o novo presidente da Câmara como o “salvador da pátria”. O MBL busca uma aproximação com o pemedebista, com o intuito de convencê-lo a instaurar o processo de impeachment, e tenta usar o povo na rua como forma de pressão. Cunha se mantém presente nos debates, na mídia e até faz um pronunciamento em rede nacional, posando de estadista e acelerando as votações na câmara, mas não manifesta apoio ao impeachment tão cedo.

Sempre um estrategista, Cunha lançaria mão da oportunidade no seu devido tempo. Ele, incluindo muitos dos outros atores, estavam à espera dos desdobramentos da Lava Jato, na expectativa de que a investigação traria provas que comprometeriam Dilma. Enquanto isso, Cunha promoveu ações para que a subserviência aos interesses do Executivo fosse deixada de lado em nome do protagonismo da Câmara, que passaria a adotar pauta própria. O pemedebista era visto por uma parcela significativa da população e do sistema político como o líder capaz de derrubar o PT (LIMONGI, 2015, p. 106). Em abril de 2015, entretanto, o movimento contra o governo parecia ter chegado ao fim e a proposta de impeachment parecia que morreria na praia. Mas, nesse exato momento, a tese do impedimento do mandato da presidenta ganhou um novo aliado. O ministro do TCU, Augusto Nardes, passou a afirmar que havia no governo Dilma descaso com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Porém, no momento em que a possibilidade foi levantada, Cunha a considera um motivo genérico para sustentar um impeachment, já que as chamadas “pedaladas fiscais”, segundo ele, “vem sendo praticado nos últimos quinze anos sem nenhuma punição” e não teriam ocorrido no atual mandato (LIMONGI, 2015, p. 105).

Todavia, a Lava Jato lhe tirou dessa posição confortável. Ele afirma em abril que as pedaladas fiscais são um motivo genérico para sustentar um impeachment e, com o avanço da operação, rompe publicamente em julho com o governo e, em agosto, ameaça-o com uma “pauta-bomba” e com o impeachment. As investigações caminhavam e ele precisava ganhar tempo. Ameaçar ao mandato da presidência era sua arma de defesa (LIMONGI, 2015, pp. 105-109). Então, surfando no prestígio conquistado, Cunha põe em marcha a partir de agosto a operação para apreciar a contabilidade do governo Dilma e abre o processo de impeachment em dezembro.

Não importa o que dizem os jornalistas pagos com os recursos da classe dominante, não importa todos os malabarismos retóricos de supostos “especialistas”, a história caracterizará a queda de Dilma exatamente como foi: um golpe.

A grande mídia intentou caracterizar o golpe de 2016 com uma opaca roupagem de legalidade. Ao nos debruçarmos com atenção, perceberemos que, apesar do esforço dispendido, não foi o suficiente para encobrir os velhos interesses da classe dominante e esconder o fato de que, através do golpe, a legalidade democrática, a estabilidade institucional e, mais especificamente, a fagulha de soberania popular que a democracia representativa garante, isto é, o resultado das urnas, foram desrespeitados por esse processo e alçou ao comando-mor do país atores preocupados unicamente com os seus interesses particulares e do grande capital, em detrimento das necessidades do povo. Apesar das profundas limitações do governo Dilma, a presidenta foi apeada do poder maneira ilegítima.

No fim desse processo, temos o país mergulhado numa das maiores crises político-econômicas dos últimos tempos e o pemedebista Michel Temer no poder. Algo que, por mérito próprio, ele nunca conseguiria alcançar. Em seu governo, vivenciamos a radicalização do processo de implementação da agenda ultraliberal, processo que, como já apontamos, tem como preâmbulo a década de 1980, dando o primeiro grande passo no governo Collor. Por trás do famigerado Ordem e Progresso, forjava-se um governo cimentado em políticas de austeridade e retrocesso, reacionário, que coloca o desenvolvimento do capitalismo e à propriedade privada acima de tudo, em detrimento da qualidade de vida da população, principalmente dos mais pobres.

O documento “Uma Ponte para o Futuro”, lançado pelo PMDB em outubro de 2015, já apontava as ações que os pemedebistas seguiriam. A apresentação do plano inicia estabelecendo o objetivo de “preservar a economia brasileira e tornar viável o seu desenvolvimento, devolvendo ao Estado a capacidade de executar políticas sociais que combatam a pobreza e criem oportunidades para todos” (PMDB, 2015, p. 1). Para atingir esses supostos objetivos, afirmam que os problemas do país deveriam ser concebidos como estruturais que se formaram ao longo da história do país – e que, afirmam, só iremos superá-los através de grandes reformas estruturais (PMDB, 2015).

Tais reformas não se tratam da reforma agrária, tributária, política que possibilitaria darmos alguns passos na direção da superação dos antagonismos sociais e desestabilizaria o fisiologismo de nosso sistema, dando um primeiro passo para furar o bloqueio de nossa democracia blindada; não se tratam também da promoção da quebra do monopólio dos oligopólios das comunicações.

Os pemedebistas no documento propunham como medida inicial e urgente o ajuste fiscal e a flexibilização do orçamento. Concordam que a ‘solução’ para o problema fiscal “será muito dura para o conjunto da população”, mas ressaltam ser fundamental a redução de salários e de gastos públicos para melhorar as contas públicas e restaurar a competitividade da economia. Os pemedebistas propunham também a reforma na previdência, de forma que seria prorrogada a aposentadoria de milhões para que possam trabalhar mais e, assim, o período de contribuição ser estendido (PMDB, 2015).

Apesar da elevação dos juros fazer parte do tripé ultraliberal (juros altos, superávit primário elevado e câmbio flutuante), nesse documento os pemedebistas descartam essa medida como um meio para “desenvolver” a economia. Alegam que o nosso país já sofreu muito com essa proposição e que ela não atende mais as necessidades atuais.

Quando Temer assume, vimos as proposições para o regime fiscal tomarem forma com a proposta de PEC nº55/2016 no Senado Federal (nº241 na Câmara dos Deputados). Aprovada a toque de caixa, essa emenda (nº95) estabelece um “Novo Regime Fiscal” que regulará a forma como o Estado brasileiro aplica seus recursos limitando o reajuste dos investimentos à inflação do ano anterior.  Assim, a proposta instituí que os gastos federais (excluídos os juros da dívida pública) sejam congelados por duas décadas, sendo atualizados somente pelo índice da inflação. Antes dessa nova regulamentação, os investimentos se baseavam em duas variáveis centrais: as demandas por bens e serviços públicos (despesa) e a capacidade de arrecadação (receita). Ao estabelecer um indexador econômico fixo, retiram a decisão de gasto da esfera política baseada nesses dois critérios e congelam o orçamento.

Chamada pelos governistas de PEC do teto de gastos e por opositores de PEC da morte e PEC do fim do mundo, a proposta trata-se de um duro golpe para a Proteção Social no Brasil. Ela apoia-se em argumentos falaciosos segundo os quais nações desenvolvidas usam regras semelhantes para criarem um “ambiente ideal para os negócios financeiros”. Entretanto, em estudo publicado pelo Fundo Monetário Internacional, verifica-se que a iniciativa não passa de uma invenção sem experiência internacional ou respaldo teórico. Diferentemente dos outros países que estabeleceram um teto para os gastos, no Brasil a medida é de longo prazo, altera a constituição e não inclui nesse limite os juros da dívida pública. Nos demais, isso é feito mediante leis ordinárias ou de acordos políticos e sob curto prazo. Em muitos, as despesas com esses juros também não são incluídas (BOVA, 2015).

Temer com esse projeto estará intensificando o austericídio aplicado por Dilma em seu abreviado segundo mandato, mas com outros moldes e com um planejamento de longo prazo. A justificativa que apontam se assenta na falaciosa tese de que existe uma excessiva gastança por parte do governo federal. Para rebater o discurso da oposição, que acusa o governo Temer de retirar recursos da saúde e educação com a PEC, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, fizeram questão de ressaltar que o governo petista deixou uma “herança maldita” na economia que precisa ser controlada (BONFANTI; DI CUNTO, 2016, p. A6).

Intelectual orgânico da burguesia, Meireles faz um diagnóstico convencional sobre a crise econômica. Para ele, os governos do PT teriam causado excessiva elevação das despesas públicas nos últimos anos e buscaram encobertá-la por meio da chamada “contabilidade criativa” e das “pedaladas fiscais”. E esse tipo de política teria mergulhado o país na estagflação e destruído a confiança do mercado. Ele afirma que “o consenso [sic] é de que isso [o crescimento dos gastos] é insustentável. A atividade econômica está caindo, o desemprego está aumentando e essa é a herança que estamos recebendo” (BONFANTI; DI CUNTO, 2016, p. A6).

Não percebe que “tampouco nesta área [gastos sociais] houve expansão desenfreada, sobretudo frente às demandas sociais brasileiras”, como aponta o relatório Austeridade e retrocesso: finanças públicas e política fiscal no Brasil, elaborado por diversos economistas de todo o país. Afirmam que os investimentos se deram abaixo da linha de arrecadação e contribuíram para o crescimento do país (FÓRUM 21, 2016, p. 13).

Grande parte do excedente entre o que foi investido e o que foi arrecadado destinou-se para outras finalidades, por meio do mecanismo denominado Desvinculação de Receitas da União (DRU), o qual permite que uma parcela dos recursos cativos à seguridade social seja remanejada para atender a outras despesas não-sociais. Essa destinação é direcionada, principalmente, para o pagamento de juros e amortização da dívida pública.

Os governos Lula, Dilma e Temer promoveram a prorrogação e ampliação da DRU. Porém, com a emenda nº 95, o plano Temer/Meireles vai mais longe, tornando a DRU dispensável. A emenda desvincula todos os recursos que ultrapassarem o teto e que originalmente seriam destinados à educação e seguridade social, ou, então, canalizados via DRU. Agora todos esses recursos cativos já serão redirecionados via emenda constitucional.

A implantação de um novo regime fiscal foi o primeiro passo do governo Temer para atender aos interesses do grande capital em relação à dívida pública brasileira, destinando recursos valiosos para o sistema financeiro. Dessa maneira, o peemedebismo garantiu os ativos da burguesia, por meio do pagamento de uma dívida ilegítima, sem contrapartida, uma fraude. Na base da pirâmide, a população sofrerá com a intensificação da precarização dos serviços públicos, principalmente as parcelas mais pobres. Concordando com Fontes, “na atualidade, o capital vem empenhando o tempo futuro da força de trabalho, capturando agora o mais-valor ainda a ser produzido no futuro, em especial através das dívidas públicas. As expropriações se mesclam com a extração de valor” (FONTES, 2017, p. 412).

O maior efeito é sobre a Previdência Social. Atualmente, a sua despesa é determinada por variáveis demográficas ou pela correção do salário mínimo que é referência para o piso dos benefícios do RGPS. Para que a evolução dos gastos nesta política possa caber no orçamento congelado pelo “novo regime fiscal”, já está sendo elaborada uma reforma na Previdência que aumenta a idade mínima (para compensar o efeito demográfico) e que poderá desvincular os benefícios previdenciários do salário mínimo. Ou seja, a reforma da Previdência será uma consequência “inevitável” para viabilizar a PEC 55 e também a reforma trabalhista.

Com essas mudanças Temer colocou os interesses específicos da grande burguesia como se fossem um projeto da população. O seu governo atuou como remediador da crise do sistema capitalista, socializando com o conjunto da classe trabalhadora as perdas sofridas pelo grande capital.

Não é de se espantar, por isso, o apoio que a burguesia deu ao golpe de 2016. É, no mínimo, curioso a burguesia brasileira, que foi beneficiada ao longo dos governos petistas, unificarem-se contra Dilma em 2016. Singer explica que a burguesia brasileira aderiu a uma campanha anti-desenvolvimentista. O desenvolvimentismo seria o carro-chefe do programa político-econômico dos governos petistas e Dilma, no seu segundo mandato, havia incomodado as elites financeiras, rentistas, ligadas ao grande capital internacional e defensoras da agenda ultraliberal. Tradicionalmente, afirma Singer, a burguesia brasileira recua quando o Estado passa a progressivamente assumir o controle do mercado e, em consequência, ameace os interesses do grande capital internacional. A convicção de estarem diante de um projeto que ampliaria o raio de ação do Estado, regularia e controlaria a atividade privada, estatizaria setores estratégicos e que levaria à uma ofensiva do campo neoliberal que os empresários brasileiros temiam não suportar, foi o suficiente para unificar o setor privado contra Dilma. Diante disso, decidiram realizar uma “greve de investimentos”, ignorando todos os incentivos promovidos por Dilma para tirar o país da recessão, especialmente por meio de desonerações. Assim, Fiesp, Sinaval, Abdib, Abimaq, Abiquim e outras importantes associações corporativas e grupos da grande burguesia interna passaram de beneficiados das políticas do governo para algoz do mesmo (SINGER, 2015).

No entanto, o projeto desenvolvimentista foi abandonado pelos dirigentes do PT antes mesmo da eleição de Lula. A tese da rivalidade entre burguesias rentista e produtiva é também ultrapassada, considerando que as burguesias hoje estão tão imbricadas que fica até difícil qualifica-las. Parto da chave-interpretativa de Fontes que afirma que “os grandes proprietários de capital atuam, através de holdings proprietárias, em praticamente todos os setores, nem sempre de forma direta, mas sempre impulsionando e pressionando pela extração máxima de valor no mais curto intervalo de tempo”. A escala de centralização de capitais é tamanha que que constitui no capitalismo monopolista o que a historiadora propõe chamar de uma fusão pornográfica entre os diversos setores do capital (o industrial, o bancário e o comercial). Após a crise estrutural do capital cresce a especulação financeira, o investimento em capital fictício, os procedimentos fraudulentos e os bancos têm uma ação central nessa configuração do capitalismo, mas seguem em um contraditório processo de correlação de forças que combina a “pura propriedade”, extração de valor e expropriações (FONTES, 2017, p. 415-416).

As classes dominantes, diante de um sistema político-institucional em crise, em que se vê o então governo Dilma em dificuldades para estabelecer uma estável correlação de força, além de dificuldades de aplacar a série de manifestações que ocupam as ruas desde 2013, apostaram na queda da presidência e no fortalecimento de um governo que implementaria – e de fato implementou – de forma acelerada a agenda ultraliberal. A rapinagem de direitos históricos da classe trabalhadora, intensificando as expropriações, e o entreguismo brasileiro, fazem parte do mesmo horizonte imperialista e são algumas das ferramentas para aumentar as taxas de lucro da classe dominante. O governo Bolsonaro é uma continuidade mais violenta de Temer.

A população resiste a esses retrocessos, como vimos na série de manifestações na última década. O capital, diante disso, precisa reorganizar o bloco no poder de maneira brutal, de forma que seja aplacado o avanço da organização dos “de baixo”, radicalizando os mecanismos de controle sócio metabólico. “Acumulam-se mais capitais pressionando por valorização (extração de mais-valor), o que tendencialmente aumenta a concorrência intercapitalista e interimperialista”, mas as taxas de lucro não parecem retornar aos índices vistos anteriores (FONTES, 2017, p. 416). Desde a crise estrutural, as crises são mais longas, como fortes tempestades, atingindo todo o globo, e a recuperação mais débeis e curtas.

A contingência apresentava a necessidade de reordenação, de modo a abrir espaço para a radicalização da variante do processo de revolução passiva, intensificando as relações de exploração nas relações sociais capitalistas. Tal via exigia a mudança da hegemonia burguesa por meio de novos termos. Assim, por intermédio de uma série de iniciativas “moleculares”, foi gestada no Brasil uma intensa campanha de fundamentação e insuflação do antipetismo.

Trata-se de uma conjuntura muito específica da luta de classes, que abre as portas para a ascensão ao poder de um “paladino salvador da pátria”, por conta das frações hegemônicas do bloco no poder viverem em crise de hegemonia (crise esta que tem como fator o avanço da crise estrutural do capital e que no Brasil tem como preâmbulo 2013) e as classes operárias em crise de ideologia e de suas organizações.

A população brasileira foi durante décadas “educada” pelo discurso anti-partidos e pela ideologia anticorrupção, ação doutrinária que se amplia e se fortifica com a profunda (e legítima) insatisfação com o sistema político-institucional. As lentes de insatisfação com a política cainham sobre os olhos da classe trabalhadora, intensificando ainda mais as exigências de reconstrução política, de eliminação da corrupção, além de um descontentamento muito difundido com relação aos mecanismos políticos. Tal empreendimento de blindagem da democracia brasileira, aliada a uma constante reconfiguração da ossatura estatal de modo que a instituição como um todo se mantivesse sob a égide do domínio burguês, foi perpetrado também com o auxílio de uma série de aparelhos privados de hegemonia irrigados com enormes recursos (nacionais e estrangeiros). A democracia brasileira, blindada da participação ativa e direta do povo, era apresentada no período dos governos petistas como se fosse comunista. “Nossa bandeira jamais será vermelha” percorre de alto à baixo a sociedade brasileira, expressando a histeria anticomunista que perpassa o país.

A crise econômica, que num primeiro momento foi identificada como apenas uma “marolinha”, tomou grandes dimensões, deixando hoje mais de 15 milhões de brasileiros desempregados e outros tantos milhões em situação informal precarizada. Todos os empregos precarizados criados ao longo dos governos petistas tiveram as suas condições ainda mais pioradas para quem sobreviveu empregado.

Essa reorganização do grupo dirigente pode significar rupturas institucionais, como golpes; e/ou também através da eleição, para o cargo mais alto do Estado, de um personagem que defenderá os pressupostos econômicos ultraliberais até o fim. Vivemos em uma época em que a revolta contra os dirigentes é coisificado em um clamor em defesa da mão forte de uma liderança que, supostamente, terá as condições necessárias para botar, via força bruta, “ordem na casa”.

Não é por acaso que tenha caído como uma luva nos anseios da população o discurso de que a espoliação e a violência presentes na vida cotidiana em nosso país serão resolvidas com a força individual. Bolsonaro e companhia querem, dessa forma, terceirizar o papel do Estado de oferecer segurança para a própria população, que, fortemente armada, segundo ele, poderá individualmente se defender com o direito de atirar, com o direito de falar sem ser julgado pela chamada “ditadura do politicamente incorreto”. Não é por acaso que esse projeto de beneficiamento da indústria bélica tem como principal símbolo o sinal da arma feito com as mãos. A liberdade, assim, é transfigurada na liberação da violência por aqueles que não aguentam mais ser cotidianamente violentados. Com isso, sentem-se no direito de expressar a sua violência mais baixa como expressão de uma liberdade conquistada.

Bolsonaro posa de outsider, mas não passa de um subversivo sem subversão, um antissistema conservador. Nadou de braçada no antipetismo, vendendo-se como aquele capaz de “mudar tudo isso aí”, transformando a revolta contra o sistema num clamor popular em defesa da mão forte de uma liderança que, por estar acima da lei, supostamente terá as condições necessárias para botar ordem. Esse discurso é tão violento, é tão bélico, que o seu defensor, para conquistar o clamor das massas, precisa adotar características cômicas de modo que, como um palhaço, ele possa esconder com piadas o seu lado mais terrível. Consequentemente, nunca se sabe o que é real ou apenas uma bravata. Ninguém sabe, a não ser ele mesmo. O tempo todo é um diz e desdiz.

E isso é a prova mais clara do autoritarismo que cresce a cada dia; é a característica central de todo projeto obscuro, implementado noite e dia neste governo; é a prova cabal de que estamos diante de que o futuro pode nos reservar um governo fascista. Espero estar enganado.


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* João Miranda é professor de História


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