Pan-africanismo, historicidade e disputa de narrativas

Por Vinicius Souza, publicado na revista Clio Operária

Uma tendência normal é enxergar as pessoas negras como se todas fossem à mesma coisa, como se a experiência individual de vida não contasse para a formação da concepção de mundo, de si mesmo e, portanto, da racialização. Fato é que o racismo é uma forma de sociabilidade da sociedade capitalista, sua existência tende a homogeneizar as pessoas negras devido a inúmeros códigos históricos que são ativados quando do acontecimento de um ato que materializa o racismo. A questão é que o racismo descaracteriza as pessoas negras e elimina sua formação enquanto indivíduo, sobressaindo a sua formação racial coletiva. 


Todas as pessoas negras do mundo não possuem o mesmo interesse e as mesmas perspectivas para a análise da realidade, elas não enxergam o mundo da mesma forma. Sim, as pessoas negras se encontram dispersas em diferentes campos ideológicos, atuação na vida, política, trabalho e enxergam de maneira diferente a forma como racismo deve ser combatido. Essas diferenças de formas de pensamento são comuns, algo encontrado em todas as pessoas do mundo. O próprio movimento negro, historicamente, se faz uma expressão dessa diversidade de pensamentos e, desta forma, um espaço de disputa também.

Existem muitas figuras históricas de peso, no que diz respeito à mobilização, no movimento negro desde sempre. É muito importante fazer uma análise histórica coerente e honesta para analisar a forma como o movimento negro e suas lideranças se estruturam e agiram. Uma tendência forte de disputa no movimento negro é o debate entre as pessoas que polarizam entre os que seguem as ideias de Martin Luther King e os que seguem as ideias de Malcolm X. Dentro desse debate existem muitos equívocos, principalmente de muitos que se reivindicam seguidores de Malcolm, em um claro movimento de associar toda a vida do Malcolm a uma espécie de nacionalismo compulsivo que outrora abraçou quando participou da organização negra muçulmana Nação do Islã, que possuía uma teologia totalmente distorcida e que possuía altos esquemas de enriquecimento à custa dos fiéis.

A obra de Manning Marable Malcolm X: uma vida de reinvenções[1], no título já diz muito sobre a construção de Malcolm enquanto um revolucionário. Verdade seja dita, Malcolm não foi um revolucionário desde o começo em sua atuação política, ele se tornou um revolucionário com o tempo, o que, como observa Marable, marcou um distanciamento sistemático com as ideias centrais da Nação do Islã e, no fim, culminou nos acontecimentos que marcaram sua expulsão do grupo religioso. Sim, é possível afirmar que a Nação do Islã era uma organização antibranco e que Malcolm assumiu essa postura durante um tempo e também foi uma vítima da desonestidade de Nação e Elijah Muhamed. Porém, a Nação sempre foi pequena para o que Malcolm estava se tornando, com a série de processos que o transformavam politicamente Malcolm se aproximara da luta do terceiro mundo, dos países africanos independentes, sobretudo da Gana socialista de N’krumah e do socialismo chinês. Um discurso que expressa bastante a transformação política de Malcolm, é “o voto ou a bala” de 3 de abril de 1964 na Igreja Metodista Cory em Cleveland, como observa Marable:

As vezes durante a fala Malcolm pareceu afastar-se de uma análise baseada em raça para adotar uma perspectiva de classe. “Não sou antibranco, insistia Malcolm, “sou antiexploração e antiopressão.” (MARABLE, 2013, p. 341)

Malcolm, diferente do Dr. King que mobilizava a indignação da população negra, tinha uma capacidade sem igual de mobilizar a vontade mais profunda, violenta e avassaladora de transformação total da realidade, das formas de sociabilidade vigentes que realizavam a manutenção, não somente do racismo, mas da exploração. Sua aproximação com as lutas de libertação ao redor do mundo fez Malcolm entender a forma como o capitalismo tinha no racismo uma das suas partes fundamentais. Marable continua:

Em 8 de abril, em Palm Gardens, Nova York, Malcolm fez uma palestra que rompeu abruptamente o molde da NOI. A palestra pública tinha sido patrocinada pelo Fórum Trabalhista Militante, o grupo beneficente do Partido Socialista dos Trabalhadores. Em tese, ele falava para um grupo eclético de ativistas não alinhados, marxistas independentes e nacionalistas negros, mas na realidade era uma plateia marxista com muitos seguidores leais de Malcolm também presentes. (MARABLE, 2013, p. 343)

A história nos mostra que Malcolm não foi à vida toda, aquele que foi na Nação do Islã e apesar de que é normal ver muitos garveystas enquadrando Malcolm nessa perspectiva política, é fato que Malcolm seguiu os ideais de Garvey a risca enquanto membro da Nação do Islã, mas que rompeu sistematicamente, desde que era membro, com as ideias que aprendeu lá. Muito se diz que Malcolm era garveysta por reconhecer o papel histórico importante de Garvey para a mobilização dos negros no contexto em que viveu e pelo fato de seus pais terem sido militantes da organização fundada por Garvey. Porém, na transformação política de Malcolm, no ápice de seu teor revolucionário, Malcolm passa a defender a revolução chinesa, assim como a cubana, o que contrariava a essência da proposta de Garvey que estava ligada ao fortalecimento econômico das pessoas negras através do capital empresarial, em discurso no verão de 1964:

De significado ainda maior era a indicação dada pelo discurso de uma profunda mudança no programa econômico de Malcolm. Durante anos, ele apregoara as virtudes, endossadas por Garvey, do capitalismo empresarial, mas ali, quando lhe perguntaram que tipo de sistema político e econômico queria, ele observou que “todos os países que hoje emergem do capitalismo se voltam para o socialismo. Não acredito que seja por acaso”. Pela primeira vez estabeleceu publicamente a ligação entre opressão racial e capitalismo… notou ele, os que tinham um forte compromisso pessoal com a igualdade racial eram, geralmente, “socialistas, ou sua filosofia política era o socialismo”. (MARABLE, 2013, p. 375-6)

Sem dúvida alguma Malcolm X era um anticapitalista que estava cada vez mais se aproximando do socialismo e teve esse processo interrompido pelo seu assassinato por parte das forças dos Estados Unidos e de seus opositores da Nação do Islã. Sua figura, por si só, configura um espaço de disputa no movimento negro. A imagem de Malcolm é bastante distorcida, sobretudo por camadas que se reivindicam pan-africanista e afrocentristas que se apoiam somente em uma das fases da vida de Malcolm como um determinante para toda a sua história, descartando também a incrível obra de Manning Marable, um historiador negro extremamente reconhecido internacionalmente, uma obra científica de caráter historiográfico como legítima.

Esses grupos possuem a tendência de associar Malcolm a ideais reacionários e a uma política de extremismo pouco organizado que busca transformar a luta antirracista a imagem e semelhança do poder branco, muito semelhante com o que é feito no garveysmo que busca o poder negro no capitalismo. São esses mesmos grupos que tentam resumir, d maneira muito desonesta, o pan-africanismo as ideias de Marcus Garvey como se não fosse este um campo ideológico extremamente diversificado e em entre suas ramificações não houvesse relação alguma com a luta pela revolução socialista do mundo.

É importante que algumas coisas fiquem claras sobre essa disputa de narrativas, alguns tentam distorcer a história do próprio Garvey alegando que ele não possuía relação nenhuma com a defesa do capitalismo como forma de fortalecimento das pessoas negras, o que vai totalmente contra os fatos. Nas palavras do próprio Garvey:

O capitalismo é necessário para o progresso do mundo, e aqueles que se desencadeiam, se opõem ou lutam contra ele são inimigos do avanço humano… (GARVEY, 2017, p. 119)

Além da defesa aberta do capitalismo como forma de saída para as pessoas negras da opressão racial, Garvey também pregou algumas ideias reacionárias como pureza racial: “Acreditamos na pureza racial da raça Negra e na pureza da raça branca.” (GARVEY, 2017, p. 105). Assim como ter se sentado com a Ku Klux Klan com dizeres de que sua organização e a Klan eram similares:

Eu compreendi, então, que a Ku Klux Klan é puramente uma organização racial se levanta do pelos interesses de pessoas brancas, exclusivamente. Você não pode culpar qualquer grupo de homens, sejam eles chineses, japoneses, anglo-saxônicos ou homens franceses, por se levantarem por seus interesses ou por organizarem os seus interesses. (GARVEY, 2017, p. 133)

Ao que parece, Garvey não tira a culpa dos atos da Klan, mas indica reconhecer legitimidade em suas ações, se baseando em uma premissa rasa, de uma análise superficial da sociedade, de uma ética racial. Garvey continua:

A atitude da Associação Universal Para o Progresso do Negro é de certo modo similar ao da Ku Klux Klan. Enquanto a Ku Klux Klan deseja fazer da América um país do homem branco, a Associação Universal Para o Progresso do Negro quer fazer da América um país absolutamente do homem negro. (GARVEY, 2017, p. 133)

As ideias de Garvey geram, de fato, muito conflito nos movimento negro e um debate profundo a respeito das ideologias que seriam favoráveis ou não a libertação das pessoas negras no mundo. Inegavelmente, existe muita análise rasa e sobre a história de Marcus Garvey, tanto entre os garveystas e quem não o segue. Uma problemática importante é que Garvey, realmente, possuía ideias conservadoras e bastante contraditórias em muitos sentidos, sobretudo sua defesa aberta ao modelo econômico capitalista como ferramenta de fortalecimento das pessoas negras gera margam para uma evidente práxis de direita entre garveystas, em muitos sentidos.

Boa parte dos conflitos em torno deste tema se dá pela concepção completamente absurda de que o pan-africanismo se resume a Marcus Garvey e que não existiram linhas realmente revolucionárias. Isso é um apagamento histórico gigantesco e muita falta de conhecimento. O pan-africanismo abrigou a abriga muitos líderes revolucionários que buscaram no materialismo histórico e na crítica profunda do capitalismo a explicação e saída para a existência da opressão racial, tal como Kwame N’krumah, marxista ganense que esteve à frente da independência de Gana em 1957 com um programa socialista de ação direta para o fim do colonialismo e instauração de um Estado independente e socialista em Gana, sendo que ele também possuía um programa continental de uma África socialista e unida.

N’krumah enxergava, através da análise histórica, a origem do racismo na expansão do capitalismo, primeiro em sua fase mais primitiva no século XV e depois em seus desdobramentos históricos, dessa forma seria então o socialismo, antítese do capitalismo, uma das ciências revolucionárias para a libertação das pessoas negras no mundo.

“A revolução socialista opõe-se aos conceitos elitistas e pretende a abolição do sistema de classes, assim como a abolição do racismo. Os revolucionários socialistas lutam pela instauração de um Estado que garanta a realização das aspirações das massas e lhes assegure uma participação em todos os escalões do governo.” (N’KRUMAH, 2017, p. 72)

N’krumah entendia o a luta antirracista como parte da luta mundial contra as opressões no mundo e enxergava o papel fundamental das pessoas negras em torno do projeto revolucionário como fundamental para a revolução mundial. N’krumah entendeu o espectro revolucionário que rondava as pessoas negras em torno do mundo e, diferente das posturas de vários militantes negros que tentam associar Black Power a dinheiro para pessoas negras, assim como fez o racista Richard Nixon[3], apontou para o potencial revolucionário do Black Power para a luta mundial contra as opressões geradas pelo capitalismo:

“O que é Black Power? Eu vejo nos Estados Unidos como parte da vanguarda da revolução mundial contra o capitalismo, imperialismo e neocolonialismo que escravizou, explorou e oprimiu os povos os povos em todo o mundo, e contra o qual as massas do mundo agora estão se revoltado.” (N’KRUMAH, 2017, p. 84)

Dentre os grandes feitos e contribuições de N’kumah, ele aponta diretamente para os perigos da formação de Estados capitalistas entre pessoas negras:

Sob dominação colonial, a luta dos operários era essencialmente contra a exploração estrangeira. Neste aspecto, era mais uma luta anticolonial do que uma luta de classes. E tinha até um certo cunho racista. O aspecto sócio-racial da luta dos trabalhadores africanos persiste ainda na época neocolonialista, tentando fazer esquecer aos trabalhadores a existência da burguesia nativa exploradora. O ataque dos operários é dirigido contra os europeus, libaneses, indianos e outros, esquecendo-se do explorador nativo reacionário.” (N’KRUMAH, 2017, p. 59)

Não existe libertação do racismo no capitalismo, isso não é possível, sendo o racismo uma forma de sociabilidade gerada pela necessidade expansionista do próprio capitalismo em si. É necessário realizar uma análise histórica coerente que direcione ao caminho mais revolucionário possível. A história da luta das pessoas negras contra o racismo é múltipla e diversa, porém, o que não falta são modelos revolucionários com contribuições gigantescas.

Coragem é necessária:

Nós encaramos a morte como encaramos a vida, de cabeça erguida, com os olhos abertos, orgulhos e com bravura. A semente morrendo faz com que a vida possa surgir. Então, nós podemos encontrar a morte, mas sabendo que não podemos ser derrotados. Para os povos oprimidos do mundo, uma dia triunfaremos. (N’KRUMAH, 2017, p. 87)

É necessário combater o revisionismo reacionário e reivindicar, através da análise histórica coerente, as figuras negras revolucionárias que dedicaram suas vidas para um novo modelo de mundo. Estudar é necessário e, mais ainda, se organizar para propagar o conhecimento legítimo histórico que pode gerar sínteses combativas que definam os novos caminhos rumo a uma organização negra anticapitalista, antirracista e revolucionária.


Referências

NKRUMAH, Kwame. Luta de Classes na África. 2º Ed. São Paulo: Edições Nova Cultura, 2017.

MARABLE, Manning. Malcolm X: uma vida de reinvenções. 1º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

MOSIAH, Garvey Marcus. Procure por mim na tempestade: de pé raça poderosa. São Paulo: CFMG, 2017.


Vinicius Souza, graduando em História, pesquisador docente em ensino de História, coordenador da revista Clio Operária e Professor do Cursinho Popular Martin Luther King da Rede Emancipa.

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

2 comentários em “Pan-africanismo, historicidade e disputa de narrativas”

  1. Por que o mov negro brasileiro está sempre querendo copiar os norte-americanos?
    Cara, da a impressão que o sonhos deles é ir viver em Chicago.
    Só falam de autores americanos, personalidades americanas, tentam importar conceitos americanos, se o americano fala em turbante e apropriação cultural, tá lá o colonizado repetindo igual papagaio.
    Jesus… É patético.

    Responder

Deixe um comentário