Bacurau e a crise brasileira: um convite ao ódio!

Por Vinícius Okada M. M. D’Amico

Dos fundos dos vales, emergem os “novos” salvadores da pátria, bradando, triunfantes, que o “novo” marcha a passos largos, enquanto os velhos heróis seguem sepultados. O porém é que para se alterar substancialmente a realidade é preciso conhecer o terreno em que se joga. E, assim, seguem os bons moços medíocres e oportunistas do liberalismo a se afogarem imersos na torrencial crise brasileira.


Bacurau é um filme único porque escancara diante de nós o fundamental na crise brasileira: não há atalhos na luta de classes. Não há terceira via. Não há superação pacífica das condições atuais. Afinal, a história almoça os despreparados e janta os oportunistas. Estes, porém, seguem tentando reinventar o canto da sereia para cooptar os menos atentos e afundar a todos na velha miséria exploratória de sempre, fantasiada pelo liberalismo no mais requintado figurino francês (melhor seria dizer estadunidense).

Brotam do pântano liberal lamúrias trajadas de críticas elegantes contra o mais novo sucesso do cinema nacional, sobretudo contra sua violência escancarada. A resposta está no próprio filme. Na ausência, para ser mais claro. São explorados contra exploradores. O imperialismo e seu sócio minoritário local contra os danados da terra. E o mediador do embate é único: a violência de classe.

O liberalismo bom-mocista à la Tabata Amaral não aparece no futuro distópico de Bacurau. Simplesmente porque já tem seu intérprete. Está sintetizado na monstruosidade estrangeira e em seu patético intermediador local. Afinal, parafraseando Brecht, não há nada mais parecido a um fascista, do que um liberal assustado.

Estes tipos medíocres, serviçais da velha ordem, reagem nas redes sociais bradando contra o retrato pedagógico do filme. A crise atual aponta o porquê da reação. Eis o papel histórico dos que tentam se isentar e passar por neutros em meio à barbárie social: serem atropelados pela história. Além disso, Bacurau marca o caráter organizativo do déficit dos explorados em sua resistência. E mais, a obra é um convite ao ódio. Para os insossos “críticos” defensores do status quo, trata-se de uma incitação à barbárie irracional. Escondem o fato de que a barbárie irracional e a violência (de classe) são a lei em nossa sociedade. E assim tentam apagar do povo brasileiro seu próprio sofrimento diário.

“Este preconceito de que o ódio não é próprio de revolucionários esclarecidos tem vindo a minar o nosso campo e ninguém lhe dá luta. Temos que dizer que o ódio não tem que ser necessariamente irracional, e que o nosso ódio, porque esclarecido e consciente, ódio de classe, é mil vezes mais eficaz do que o ódio irracional de um indivíduo que se rebela isoladamente. Mas é ódio a única conclusão racional que se extrai de um conhecimento da sociedade actual. Se o sistema é irreformável, como já demonstrou mais de cem vezes de forma sangrenta, se os donos do sistema estão dispostos a tudo para prosseguir, porque é essa a sua natureza e não sabem nem podem agir de outra maneira, a única conclusão racional é trabalhar para derrubá-los pela força. E isso ninguém o fará se não for impelido pela arma do ódio de classe.” [1]

O encarceramento em massa, o extermínio dos negros nas favelas, a segregação urbana, a especulação imobiliária, o latifúndio, o massacre das lideranças populares, o desmonte da saúde e da educação, a fome. Tudo isso querem nos enfiar goela abaixo como sendo acidentais desvios de percurso, sem nenhum culpado, sem qualquer inimigo. Varrem tudo para debaixo do tapete afirmando uma sociedade idílica sem violência. Querem um povo míope, que como eles não enxergue mais que a si próprios e que ignore a violência estrutural de nossa sociedade.

“Os fatos dispensam-nos de usar palavras para provar que o instrumento essencial da dominação imperialista é a violência. Se aceitarmos o princípio de que a luta de libertação nacional é uma revolução, e que ela não acaba no momento em que se iça a bandeira e se toca o hino nacional, veremos que não há nem pode haver libertação nacional sem o uso da violência libertadora, por parte das forças nacionalistas, para responder à violência criminosa dos agentes do imperialismo. Ninguém duvida de que, sejam quais forem as suas características locais, a dominação imperialista implica um estado de permanente violência contra as forças nacionalistas. Não há povo no mundo que, tendo sido submetido ao jugo imperialista (colonialista ou neocolonialista) tenha conquistado a sua independência (nominal ou efetiva) sem vítimas, o que importa é determinar quais as formas de violência que vem a ser utilizadas pelas forças de libertação nacional, para não só responderem à violência do imperialismo, mas também para garantirem, através da luta, a vitória final da sua causa, isto é, a verdadeira independência nacional.” [2]

O ser social, no entanto, responde com incômodo. Com angústia, sofrimento, indignação e ódio. Mas não subestimemos o poder do bom-mocismo liberal, altamente financiado pelos patrões imperialistas. Por isso também se espalharam no terreno brasileiro em meio a fragmentação da classe no último período, galgando espaços cada vez maiores na política nacional através da mentira e ilusão sobre as massas. Impulsionados, sobretudo, pela esquerda social-liberal e seu derrotismo de praxe, que abraça o inimigo para então abandonar a própria classe.

Na atual marcha da crise brasileira, o liberalismo bom-mocista se coloca como alternativa moderada e pacífica ante a convulsão social. RenovaBR, Movimento Acredito e afins, inundam o cenário político, cooptando lideranças e movimentos políticos e tentando frear a luta de classes em seu movimento de radicalização. A intelectualidade e, na verdade, a pequena-burguesia no geral, se coloca num dilema, como exposto por Amílcar Cabral: “[…] trair a revolução ou suicidar-se como classe – constitui o dilema da pequena burguesia no quadro geral da luta de libertação nacional” [3]. Ou seja, ou deixa livre a tendência histórica de emburguesamento ideológico, submetendo-se a burguesia internacional e a nacional subordinada a esta, negando a revolução, ou então aproxima-se da classe trabalhadora, reforça sua consciência revolucionária, assume seu papel e seu partido no processo revolucionário, e constrói ativamente juntamente às classes revolucionárias a vanguarda política e o ascenso das massas sociais que conduzirão a velha ordem à derrota final.

“Deixemo-nos pois do cristianismo que se faz passar por marxismo e retomemos o espírito da revolta intransigente. E esse o sumo do marxismo: os oprimidos contra os opressores, o derrubamento do sistema, a expropriação dos expropriadores. Guerra prolongada, cheia de pequenas escaramuças, de avanços e recuos? Decerto. Mas uma guerra permanente significa que todos os episódios menores devem tender ao objectivo final e ser avaliados pela medida em que favoreçam ou prejudiquem esse objectivo.

E isto significa o quê? Dar tiros? Pôr bombas? Também, sem falta. Mas para nós, aqui, agora, significa demarcar a cada momento os dois campos opostos, excitar o seu antagonismo, desacreditar os conciliadores, activar o alinhamento de cada indivíduo num ou noutro campo, acirrar a sua resolução de se bater por um lado ou pelo outro, aproximar com cada acção o choque necessário entre duas forças, dois objectivos – manter o sistema caduco a todo o preço, como eles pretendem, ou instalar um novo sistema, um novo modo de viver, como nós exigimos.” [4]

As críticas insossas do liberalismo trajado de bom-moço deixam evidentes os dois lados da disputa atual. Entre o convite a miséria intelectual do liberalismo e do pacifismo, mantenedores da crise social, e o convite ao ódio de classe e à violência revolucionária, aceitamos sem dúvidas o segundo, com todo o horror consequente deste caminho. Sem reservas covardes, como diria Mariátegui. Assim, Bacurau finaliza: quando nos reorganizarmos, nos massificarmos, estivermos prontos, derrubemos de um só golpe o inimigo. Política é disputa entre forças antagônicas e luta pelo poder. Sem espaço algum para despreparados, oportunistas, fraseologias baratas e derrotismo medíocre.


Referências:

[1] A arma do ódio de classe. Por Francisco Martins Rodrigues. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/rodrigues/2007/mes/arma.htm – 2007.

[2] A arma da teoria. Por Amílcar Cabral. Disponível em: Revolução Africana; org. Jones Manoel e Gabriel Landi, Autonomia Literária. 2019.

[3] idem.

[4] ver nota 1.

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3 comentários em “Bacurau e a crise brasileira: um convite ao ódio!”

  1. Se a burguesia dos EUA não dá a mínima para o próprio país, contaminando a água com fracking, matando 100 mil por ano por overdose de opioides, imagina o que vão fazer aqui no Bananil agora que controlam até as terras.
    Bacurau vai ser ficha perto disso.

    Daqui a pouco eles abrem mesmo uns postos de caça para os atiradores supremacistas de lá virem se divertir um pouco com o povo brasileiro.

    Mas a burguesia brasileira é fraca e submissa, como os dois forasteiros do Sul. Lambem os ameriKKKanos enquanto estes os veem como um bando de miscigenados inferiores.

    Se preparem, o Mad Max está perto.

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  2. A merda-mor disso tudo é que o conservadorismo é mantido e estimulado em sua inércia quase como uma massagem de ego, vinda de todos os meios dominantes de mídias, com seu epicentro claramente na classe burguesa, mas constantemente ignorado pelos conservadores comuns, os quais querem ou conservar uma moral suprema e imaculada, claramente irreal para nós esclarecidos, ou conservar sua posição confortável no jogo de venda de mão de obra e gestão do trabalho alheio. Infelizmente o grupo majoritário é aquele que não tem nada a perder a não ser as suas correntes e A SUA FAMÍLIA, logo o horizonte revolucionário se afasta cada vez mais do olhar destes cidadãos.
    No final das contas ainda acredito que a população é uma manada incapaz de se articular de forma constante, por causa também das ações institucionais e midiáticas que extirpam o cidadão de qualquer poder político real, a exemplo do DCE posicionando-se como representante oficial do arrebanhamento dos estudantes no movimento estudantil para que ocorra “nos moldes democráticos”. Todos sabemos a quem e a o quê as reuniões a portas fechadas são vantajosas, mas nosso posicionamento firme é sempre travestido e exposto pelos inimigos institucionais de “rebelião” e “violência”, o que assusta e afasta o mesmo cidadão que não pode e não deseja pôr a sua prole em risco.
    Sinceramente, não vejo como a luta armada nos levaria ao sucesso. Guerra de classes? Milhões de corpos descartados no chão, batendo de frente com os militares da união e com as milícias. E no final, escravidão descarada. Talvez a paranoia da direita, o tal “marxismo cultural” seja realmente nossa maior arma kkkkk. Despertar esclarecimento de classe para que braços se cruzem em todas as fábricas de armas e de especulação financeira, por aqueles que de fato mantém as coisas em seu lugar, os faxineiros e técnicos, os ocultos e esquecidos pelos memorandos, os terceirizados.
    Gostaria muito de abrir esse debate.

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