A institucionalização pós-revolucionária e a Constituição mexicana de 1917

Por Mariana Varandas Lazzari, publicado originalmente em Revista de História da UEG

A partir da discussão em torno do conceito de tirania, busca-se trazer à tona a questão da legalidade como ferramenta para expor as contradições do novo Estado mexicano e a correlação de forças que se deixa entrever nessa formação. Em um segundo momento, recorre-se à comparação entre artigos constitucionais anteriores e posteriores à reforma constitucional de modo a expor como a institucionalização e a correlação de forças apresentadas estão plasmadas no documento. A hipótese proposta é a de que existe uma relação forte entre a formação do novo Estado e a necessidade de coibir o potencial avanço dos exércitos populares, o que, apesar das reformas, resulta em uma institucionalização anti-popular.


INTRODUÇÃO

Este artigo é parte de uma pesquisa de Iniciação Científica que se insere em História da América Latina, pesquisando a questão do México no início do século XX. Tem como objetivo geral compreender o processo da Constituição de 1917 à luz dos conflitos que se desenrolaram entre 1910 e 1917, considerando a segunda data como meramente um símbolo da finalização do ciclo conhecido como Revolução Mexicana. Mais especificamente, busca-se compreender o sentido político, ideológico, bem como as raízes – sociais, econômicas, culturais – dos artigos que compõem a nova Constituição. De maneira ainda mais pormenorizada, busca-se compreender a contribuição dos exércitos revolucionários na nova forma política do Estado mexicano, exercitando os conceitos de concessão, conciliação, mobilização popular, entre outros. Assim, a história da Constituição se insere em uma história maior e as leis se desvelam parte de um sistema mais amplo que não se fecha em si.

O tema específico debatido neste artigo é o da institucionalização mexicana e da criação de uma nova forma de Estado e de que forma isso aparece, ainda que indiretamente, no texto da Constituição de 1917, que é elaborada justamente no processo revolucionário. Iniciarei por um debate acerca do termo “tirania”. Em seguida, apresentarei o panorama geral da questão e analisarei artigos constitucionais em que esse esforço é observável, de modo a confirmar a hipótese de que no texto constitucional é possível perceber esses traços. Levanto ainda a questão de essa institucionalização operar justamente para conter o potencial avanço da Revolução e das demandas agrárias e operárias.

O CONCEITO DE TIRANIA

O termo “tirania” foi amplamente utilizado ao longo da história, desde a Antiguidade clássica, passando por Tomás de Aquino e mesmo pelos estudiosos do Século XVIII, como Voltaire. Exemplifico com esses três sistemas de pensamento com a finalidade de expor seu extenso e variado uso, o que, por consequência, concedeu ao termo variadas acepções específicas, variadas funções objetivas.

Mario Turchetti aponta que o termo era utilizado para um poder arbitrário, ou seja, absoluto e baseado na vontade, até o século VII antes de Cristo. Aristóteles, no século IV a.C., se preocupará com essa conceituação, colocando a tirania como um governo que prioriza seus governantes em detrimento de seus súditos, operando contra a vontade destes e que viola as leis. Esse último ponto é importante por ser exatamente a distinção entre “tirania” e “despotismo”. Para o romano Cícero, segundo investigação de Turchetti, a distinção é mantida, sendo a tirania o ponto máximo de degradação da monarquia e o “dominus” um poder absoluto que não necessariamente seja corrompido. De “denominar la degeneración de la monarquía”[1], logo, passa a designar a degeneração de qualquer sistema político.

Turchetti aponta, então, que os autores iluministas, em especial Montesquieu, foram os responsáveis por uma confusão entre o termo “tirania” e o termo “despotismo”. Dessa confusão deriva a falta de precisão atual do termo, sobre a qual escreve o autor:

En la actualidad, al hablar de “tiranía”, de inmediato el vocablo es asociado a “despotismo” y viceversa. Quienes recurren a este término, sean periodistas, historiadores, filósofos, juristas, sociólogos u otros, incluso cuando intuyen que estos dos vocablos no son perfectamente sinónimos, no perciben con exactitud aquello que los diferencia. (TURCHETTI, 2007, p.1)

Assim, para a acepção clássica, a ilegalidade era um elemento central para a tirania. O par “legal versus ilegal” é utilizado (ou ressignificado na modernidade) criando a oposição “democracia versus tirania”, de forma que os governos são tidos como tirânicos quando negativos e ilegítimos, ao tempo que os democráticos são os considerados positivos e legítimos. Essas conotações negativa e positiva escondem um fato importante: o de que o marco legal de uma determinada sociedade em um determinado tempo é também histórico e produzido pela própria sociedade, ainda que de maneira complexa. Portanto, o historiador deve olhar cuidadosamente para esses fenômenos, evitando aceitar imediatamente os parâmetros da própria sociedade que é seu objeto.

Assim, se entramos no terreno da legitimidade e da democracia nos marcos atuais da sociedade, a análise deve ser mais complexa. É tirânico um governo não-democrático, mas considerado legítimo por grande parte da população? Quais instâncias democráticas determinam que um governo é legítimo? Eleições indiretas? Diretas? São as eleições diretas justas e igualitárias? Todo governo é legítimo e legal e, portanto, não é tirânico quando foi eleito “nas urnas”? Ou não são as eleições, mas outros elementos que determinam a sua legitimidade? Legal e legítimo são sinônimos? São perguntas que não buscarei responder, mas que abrem espaço para uma maior precisão no uso do termo e na observação da realidade.

Em verdade, é questionável se o historiador deve atribuir conotações “positivas” ou “negativas” em seu estudo. Quando, ao estudarmos tirania e democracia, abdicamos do julgamento de valor imediato, certas democracias apresentam diversas contradições. Vamos a um exemplo.

Paulo Sérgio Pinheiro, estudando as transições democráticas do Brasil, observa que os períodos democráticos são ainda marcados por elementos encontrados nos períodos ditatoriais: desigualdade social, violência endêmica, violência policial e, adiciono, um acesso ao poder político determinado pelo poder econômico[2]. Do mesmo modo, para uma comparação mais evidente, podemos observar diversos elementos que foram considerados parte da lei e que hoje nos suscitam horror, sendo considerados abjetos e violentos. O mais evidente, na história das Américas, é a escravidão de africanos, mas os exemplos são inúmeros.

Observamos, assim, que estar em conformidade com a lei não significa, automaticamente, que a situação observada não apresenta conflitos, desigualdades, injustiças. Isso é mais facilmente perceptível nos acontecimentos do passado, cuja lei é diferente daquela que já trazemos naturalizada, e muito mais difícil quando nosso objeto é o tempo presente, com normas e leis que regem também aqueles que buscam observá-las.

Assim, passemos ao nosso objeto de estudo central: o Estado que se instaura no México após o período revolucionário. Se pensarmos em termos da tirania aristotélica, fica claro que não estamos falando de tirania, embora pudesse ser assim compreendido em termos do senso comum atual. Isso porque, ao contrário de ferir as leis, o novo Estado mexicano busca o retorno a elas, em oposição a um período de suspensão legal. É por meio das leis, na forma da nova Constituição, que se legitima uma nova ordem[3].

Profundamente contraditória, foi através dessa instituição que se oficializaram as reformas alcançadas pela luta durante a Revolução. Ao mesmo tempo, foi através desse Estado que se combateu os exércitos revolucionários que não alcançaram o poder. Esse mesmo Estado deu condições ao desenvolvimento do capitalismo mexicano enquanto incentivava seus artistas comunistas e recebia exilados espanhóis vindos da Guerra Civil. Durante todo o século XX, governos de diferentes matrizes político-ideológicas sempre reivindicaram o legado da Revolução[4].

No entanto, não basta dizer que essa é uma história da contradição. É necessário apontar quais são esses limites. Se democracia e tirania aparecem, na atualidade, como opostos, aqui reunimos os dois conceitos para explicar a institucionalização mexicana, ou seja, explicar como o processo de legitimação e organização de um novo Estado foi feito de forma a manter as conquistas parciais enquanto se comportava de maneira autoritária e violenta com a oposição. E, mais ainda, é importante explicar como esse processo se utiliza dos meios legais e da legitimidade constitucional. Chegaremos à conclusão de que essa institucionalização foi necessária por seu caráter anti-popular, ou seja, contrário e a despeito das demandas profundas da população trabalhadora e camponesa do México, expressa nos exércitos populares e centrais sindicais.

A esse respeito, o autor Ramon Eduardo Ruíz menciona as greves de 1916 e a maneira como os carrancistas[5] lidaram com ela:

A greve, que enfureceu líderes do governo, levou Carranza a declarar traidores os porta-vozes da Casa [del Obrero Mundial]. Para encerrá-la, Carranza, com a concordância de Obregón, se utilizou de uma lei de 1862 que permitia a pena de morte por traição, prendeu os líderes da Casa, e enviou tropas para fechar suas sedes. Então, a administração foi atrás das filiais e afiliadas da Casa nas províncias, usando soldados para destruir suas sedes e para prender os líderes. (…) Ao final de 1916, os governantes do México tinham dado um golpe mortal na Casa e no movimento operário independente.” (RUÍZ, 1980, pp. 292-293)

Assim, o governo herdeiro da Revolução, que se preparava para a institucionalização das reformas sociais e clamava pelo direito ao bem de todos, se portava de maneira abertamente porfirista[6] frente ao levante do movimento operário. O mesmo se observa no incessante combate às forças revolucionárias de Zapata e Villa e perseguição dos líderes (ambos assassinados logo após os conflitos).

GUERRA DE FACÇÕES

A Revolução Mexicana não foi um processo linear. Partimos dessa frase para explorar um aspecto muito importante: a alternância de lideranças e as tomadas de poder durante o conflito mexicano. O ano de 1910 marca o início dos conflitos armados, com a efervescência dos movimentos e a convocação às armas feita pelo líder Francisco Madero. Já em 1911, Madero se torna a liderança do país. No entanto, o conflito não passou perto de se acalmar: a instabilidade do país era enorme, causada tanto pelas forças mais radicais como pelo grupo que tinha em Porfírio Díaz seu representante de classe. Quando Victoriano Huerta dá um golpe em Madero, no ano de 1913, o porfirismo volta à tona, buscando recuperar a ordem pré-revolucionária. Uma terceira fase é iniciada quando Huerta é derrubado, em meados de 1914, com o esforços dos principais exércitos (Pablo González, Carranza, Zapata, Villa etc.) e, inclusive, o apoio dos Estados Unidos[7].

Tampouco nesta fase o México pôde testemunhar a paz e a estabilidade. O conflito agora se daria entre exércitos revolucionários. Villa, Zapata, Carranza, Obregón e outros batalhavam pelo poder do país e demonstravam, assim, as profundas diferenças entre seus programas políticos[8].

A Soberana Convenção Revolucionária é a expressão dessas diferenças entre os exércitos. Ocorre em 1914 na cidade de Aguascalientes e é onde representantes de todas as forças são convidados a debater o projeto político do país, as novas diretrizes do Estado que se criava e as demandas de cada grupo. Apesar do convite a todas as forças, os carrancistas logo deslegitimam a Convenção, propondo o Congresso Constituinte, que seria composto apenas por forças constitucionalistas. É nesse período que os interesses dos exércitos revolucionários começam a aparecer mais claramente como inconciliáveis[9].

Alguns autores, como Héctor Aguilar Camín, consideram, inclusive, que houve um período de hegemonia dos participantes da Convenção de Aguascalientes no final de 1914. Camín aponta, no entanto, que algumas questões entre zapatistas e villistas impediam uma consolidação forte dessa aliança[10].

Enquanto isso, Carranza se construía como líder maior e buscava o restabelecimento da ordem, na forma do novo Estado que buscava criar, e a legitimidade deste Estado, em ruínas após anos de conflito e instabilidade. Passo a passo, buscava subjugar os movimentos (como fez ao adestrar a Casa del Obrero Mundial, principal organização do movimento operário no México) e retirar o espaço da oposição[11].

Outro constitucionalista, Álvaro Obregón, também buscava o poder, disputando com Carranza no Congresso Constituinte e, de fato, saindo vencedor. Seu projeto apresentava reformas sociais mais profundas do que o proposto por Carranza e logrou plasmá-las na Constituição[12].

Os zapatistas mantinham firme sua defesa do Plano de Ayala, elaborado em 1911 como a carta com as principais demandas dos zapatistas e onde estava expressa sua íntima ligação com a questão agrária e a distribuição de terras. Os zapatistas se encaminhavam para um aprofundamento das demandas agrárias. Isso explica por que chegaram à Convenção de Aguascalientes sem abrir mão dos pontos explicitados no Plano de Ayala: sua participação dependeria da aceitação deles e tão insistente foi essa defesa que o Plano foi acatado na Convenção[13].

Os villistas também encabeçavam as demandas agrárias, possuindo uma aliança fraca com os zapatistas e um conflito latente com os carrancistas, além de contar com uma grande força militar. Foram uma força muito importante na Convenção de Aguascalientes e perdem seu espaço na disputa com os constitucionalistas Obregón e Carranza[14].

Enquanto Obregón e Carranza disputavam forças na Constituinte, Villa e Zapata nem sequer a compunham. A própria convocação para o Congresso Constituinte, em Querétaro, feita por Carranza, excluiu os setores mais populares da Revolução, buscando abafar o poder e a organização de trabalhadores que haviam conquistado durante os conflitos[15]. O conflito entre as forças constitucionalistas e os exércitos populares aparecem em diversos momentos ao longo do período revolucionário, mas se acirram nesse momento, a partir de 1914, quando a disputa interna pelo poder é latente[16].

Assim, o próprio movimento de criação da Constituição, bem como diversos temas que aparecem no documento pronto e nas discussões, são ferramentas da institucionalização, ou seja, do retorno à ordem e da legitimidade desse novo Estado. No mesmo movimento, no entanto, foram ferramentas de exclusão de grupos organizados que não apenas visavam disputar o poder, mas que traziam propostas de reformas mais avançadas e ofereciam sempre o perigo do aprofundamento do conflito. A institucionalização do México, longe de ser pacífica, teve muito fortemente um caráter anti-popular ou anti exércitos populares.

A CONSTITUIÇÃO

Passemos a observar não apenas a empreitada da Constituição como ferramenta da institucionalização, mas também seus elementos internos, ou seja, o seu conteúdo. Para isso, analisaremos trechos da Constituição de 1917, em comparação à Constituição de 1857, por ela reformada, e ao Projeto Constitucional elaborado por Venustiano Carranza.  Proponho alguns eixos que aparecem no novo documento constitucional por meio dos quais compreenderemos a institucionalização. São eles: o fortalecimento do Estado, a partir do respeito à lei e às ordens, e a conciliação de classes. Eles aparecem não apenas como características do novo Estado mexicano, mas também como condições para o seu estabelecimento.

É importante também evitar a ilusão de que todo o conteúdo constitucional seja a política do governo em sua prática. Analisar a Constituição aqui não é o bastante para determinar os esforços de institucionalização do novo governo: serve, isso sim, para apenas apresentá-los no contexto de criação do documento, propondo uma compreensão de como o documento responde à conjuntura.

FORTALECIMENTO DO ESTADO E A ORDEM

A comparação da Constituição de 1917 e a de 1857 torna evidentes algumas diferenças. Essas diferenças são produto tanto de influências que se desenvolveram durante o meio século que as divide como de aspectos mais conjunturais, produto dos conflitos e influências que estão condensados na própria Revolução.

São notáveis os esforços para o fortalecimento do Estado e de seu monopólio sobre a violência. Isso significa que na Constituição mexicana constam alguns artigos que fazem o movimento de fortalecer o poder do Estado e coibir ou regular outros poderes. O Artigo 10, por exemplo, já existia na Constituição de 1857, redigido da seguinte maneira:

Art. 10. Todo hombre tiene derecho de poseer y portar armas para su seguridad y legítima defensa. La ley señalará cuáles son las prohibidas y la pena en que incurren los que las portaren.”[17]

No projeto constitucional de Carranza o artigo já aparece com o mesmo sentido do presente na Constituição de 1917, onde se lê:

Art. 10. Los habitantes de la República Mexicana son libres de poseer armas de cualquiera clase para su seguridad y legítima defensa, hecha excepción de las prohibidas expresamente por la ley, y de las que la nación reserve para el uso exclusivo del Ejército, Armada y Guardia Nacional; pero no podrán portarlas en las poblaciones, sin sujetarse a los reglamentos de policía.[18]

Observemos que a permissão da posse de armas já estava colocada em 1857, bem como a proibição de algumas armas e do porte das mesmas. O artigo de 1917, no entanto, especifica com mais clareza quem são as forças que podem portar armas proibidas: o Exército, Armada e Guarda Nacional. Além disso, restringe o porte de armas nos povoados à sujeição aos regulamentos de polícia. O que se deixa entrever nessa leve, mas simbólica, mudança? Uma hipótese é que se trate da própria crise de legitimidade. Se a Constituição é feita também com o objetivo de conter poderes regionais, consolidando o poder dos constitucionalistas sobre um Estado forte, se torna útil especificar quem são as forças para as quais nenhuma arma é proibida e quais podem regular as armas permitidas. Em outras palavras, se todos os exércitos se declaram legítimos representantes do povo e da Revolução, é importante especificar que apenas quem detiver o controle do Estado poderá também ter controle desse armamento.

Essa coibição dos poderes de homens armados e dos movimentos também aparece no Artigo 82 da Constituição de 1917, equivalente ao 77 da Constituição de 1857. Os dois estabelecem critérios necessários para que um cidadão possa ser presidente. No documento mais antigo, se lê:

Art.. 77. Para ser presidente se requiere:

[I] ser ciudadano mexicano por nacimiento, en ejercicio de sus derechos,

[II] de treinta y cinco años cumplidos al tiempo de la elección,

[III] no pertenecer al estado eclesiástico [Vid infra Art. 77 frac. IV y Art. 82. Párrafo IV P.C. y C.17]

[IV] y residir en el país al tiempo de verificarse la elección. [Vid supra Art. 77 frac. III y Art. 82. Párrafo III P.C. y C.17][19]

No projeto elaborado por Carranza, e levado às discussões da Constituinte para votação e aprimoramento, se adicionam duas proibições importantes: membros do Exército, secretários ou subsecretários de Estado não poderiam ser presidentes, a menos que houvessem se desligado com dois meses de antecedência.

O traço mais evidente do aspecto que tem sido apresentado nesse texto, no entanto, aparece durante as sessões de Querétaro, expresso na Constituição e se diferenciando inclusive da proposta de Carranza. Às adições do projeto constitucional, soma-se: “VII. No haber figurado, directa o indirectamente en alguna asonada, motín o cuartelazo.[20]

O que significa em um período que sucede uma Revolução, em que movimentos operários, militares e rurais se levantaram, proibir a presidência de cidadãos que já tenham participado de levantes, motins ou quarteladas? Esse artigo opera em duas vias: ao mesmo tempo, deslegitima o ato de oposição política e impede que o poder institucional seja ocupado por membros de diversos grupos envolvidos na Revolução. Também é interessante observar como são genéricos os termos “asonada” [tradução: revolta, protesto] e “motín”, o que pode abrir a brecha para que diversos tipos de movimentos sejam enquadrados nesta proibição.

Nesse sentido, também operam os Artigos 14 e 16. São artigos irmãos: tratam do mesmo assunto e tiveram partes separadas e partes reunidas na reforma da Constituição. Seu assunto é a aplicação de leis sobre os cidadãos, a expedição de mandado, prisões, sentenças e congelamentos de bens. Cito-os, na versão de 1857:

Art. 14. No se podrá expedir ninguna ley retroactiva.

Nadie puede ser juzgado ni sentenciado, sino por leyes dadas con anterioridad al hecho y exactamente aplicadas a él, por el tribunal que previamente haya establecido la ley.

e

Art. 16. Nadie puede ser molestado en su persona, familia, domicilio, papeles y posesiones, sino en virtud de mandamiento escrito de la autoridad competente, que funde y motive la causa legal del procedimiento.[21]

Em 1917, ambos buscam especificar a lei que antes aparecia de forma genérica, detalhando seus procedimentos e reforçando o uso das instâncias administrativas, das autoridades legais etc. Ao 14, é adicionado o trecho:

[…]Nadie podrá ser privado de la vida, de la libertad, o de sus propiedades, posesiones y derechos, sino mediante juicio seguido ante los tribunales previamente establecidos, en el que se cumplan las formalidades esenciales del procedimiento y conforme a las leyes expedidas con anterioridad al hecho.

En los juicios del orden criminal queda prohibido imponer, por simple analogía y aun por mayoría de razón, pena alguna que no esté decretada por una ley exactamente aplicable al delito de que se trate.

En los juicios del orden civil, la sentencia definitiva deberá ser conforme a la letra o a la interpretación jurídica de la ley, y a falta de ésta, se fundará en los principios generales del derecho.[22]

No Artigo 16, a mudança também não parece ser de conteúdo, mas de orientação e detalhamento. Nele, em 1857, se encontrava a ênfase sobre o delito “em flagrante”, redigido da seguinte forma: “[…] En el caso de delito infraganti, toda persona puede aprehender al delincuente y a sus cómplices, poniéndolos sin demora a disposición de la autoridad inmediata.” Com a mudança, no entanto, a ênfase se desloca para as autoridades estatais, colocando o delito flagrado como exceção:

No podrá librarse ninguna orden de aprehensión o detención, sino por la autoridad judicial, sin que preceda denuncia, acusación o querella de un hecho determinando que la ley castigue con pena corporal, y sin que estén apoyadas aquéllas por declaración, bajo protesta, de persona digna de fe o por otros datos que hagan probable la responsabilidad del inculpado, hecha excepción de los casos de flagrante delito en que cualquiera persona puede aprehender al delincuente y a sus cómplices, poniéndolos sin demora a disposición de la autoridad inmediata.

[…] Solamente en casos urgentes, cuando no haya en el lugar ninguna autoridad judicial, y tratándose de delitos que se persiguen de oficio, podrá la autoridad administrativa, bajo su más estrecha responsabilidad, decretar la detención de un acusado, poniéndolo inmediatamente a disposición de la autoridad judicial. En toda orden de cateo, que sólo la autoridad judicial podrá expedir y que será escrita, se expresará el lugar que ha de inspeccionarse, la persona o personas que hayan de aprehenderse y los objetos que se buscan, a lo que únicamente debe limitarse la diligencia, levantándose al concluirla, una acta circunstanciada, en presencia de dos testigos propuestos por el ocupante del lugar cateado o en su ausencia o negativa, por la autoridad que practique la diligencia.[23]

Ainda no Artigo 16, vale salientar a adição de uma nova função das autoridades administrativas: uma função de supervisão e controle na forma de visitas domiciliares com os mais diversos fins: fiscalização sanitária, criminal e fiscal. O artigo novo termina da seguinte forma:

[…] La autoridad administrativa podrá practicar visitas domiciliarias únicamente para cerciorarse de que se han cumplido los reglamentos sanitarios y de policía; y exigir la exhibición de los libros y papeles indispensables para comprobar que se han acatado las disposiciones fiscales, sujetándose en estos casos, a las leyes respectivas y a las formalidades prescriptas para los cateos.[24]

Não se pretende aqui sugerir que a Constituição de 1857 fosse afeita a ilegalidades ou a poderes não-institucionais. Um Estado legitimará, por óbvio, seus órgãos e autoridades. No entanto, a especificação e a quantidade de detalhamento adicionada pode ser entendida como resposta à crise política, como necessária para reforçar os valores da nova ordem. A mesma tendência é observada nos Artigos 19 a 21, em que as autoridades e procedimentos da execução penal aparecem com muito mais detalhamento em 1917.

Observemos o Artigo 21 de 1857:

Art. 21. La aplicación de las penas propiamente tales, es exclusiva de la autoridad judicial. La política o administrativa sólo podrá imponer como corrección, hasta quinientos pesos de multa, o hasta un mes de reclusión, en los casos y modo que expresamente determine la ley.[25]

Sua redação é modificada, mas, para além disso, a especificação dos responsáveis por cada uma das etapas do processo penal é claríssima. Na nova forma, o artigo aparece assim:

Art. 21. La imposición de las penas es propia y exclusiva de la autoridad judicial. La persecución de los delitos incumbe al Ministerio Público y a la policía judicial, la cual estará bajo la autoridad y mando inmediato de aquel. Compete a la autoridad administrativa el castigo de las infracciones de los reglamentos gubernativos y de policía; el cual únicamente consistirá en multa o arresto hasta por treinta y seis horas; pero si el infractor no pagare la multa que se le hubiese impuesto, se permutará ésta por el arresto correspondiente, que no excederá en ningún caso de quince días. Si el infractor fuese jornalero u obrero, no podrá ser castigado con multa mayor del importe de su jornal o sueldo en una semana.[26]

Alguns elementos saltam aos olhos. Primeiro, a especificação de que o processo é incumbência do Ministério Público e da polícia judicial. Estabelece-se a quantidade de horas da prisão preventiva e, mesmo, se garante o benefício de um teto de multa para os trabalhadores diaristas e para os operários. A Lei aparece em uma forma melhor acabada: modernizada, específica, mais clara em suas determinações e, sobretudo, bastante afeita aos processos institucionais e normais, no sentido de norma.

CONCILIAÇÃO DE CLASSES

A conciliação de classes como elemento da nova ordem mexicana e da Constituição foi mais extensamente estudada. Isso é afirmado já por Arnaldo Córdova e Ramón Eduardo Ruíz, autores clássicos da historiografia mexicana. Eles apontam que as reformas expressas nos Artigos 27 e 123, referentes a direitos sociais do trabalhador e propriedade da terra, foram concessões feitas aos movimentos que, no entanto, não desafiaram a ordem econômica e o poder da classes dominantes no país  (CÓRDOVA, 1989; RUÍZ, 1980). Estão expressas nesses artigos demandas que os operários e trabalhadores rurais constituíram antes e durante a Revolução, e que, portanto, são legitimamente populares. No mesmo movimento, no entanto, a concessão das reformas serviu para o amansamento das classes e o cessar-fogo dos conflitos.

Embora produtos da movimentação dos exércitos populares e sindicatos, sua incorporação à Constituição serve como ferramenta para a tranquilidade do desenvolvimento do capitalismo e coíbe o aprofundamento das lutas e das demandas. Essa conciliação garantia, por um lado, as reformas e, pelo outro, a modernização das relações de trabalho, a generalização do assalariamento e as relações comerciais. O processo que já vinha se desenvolvendo com Porfírio Díaz agora surge em uma faceta mais “humanizada” e gerido por um Estado moderno.

Caracterizar os artigos como ferramentas de conciliação significa dizer que os movimentos se encontravam em estágio de muita mobilização, podendo barganhar as reformas que demandavam, e que, assim, os novos governantes do país poderiam garantir que a mobilização arrefeceria; pelo menos, durante um período.

FAZIMENTO DA CONSTITUIÇÃO

Podemos observar também o próprio processo de fazimento da Constituição como movimento da institucionalização. A Constituição surge como tentativa dos carrancistas de retornar à ordem, firmando seu poder e buscando coibir os outros poderes. É por isso que Carranza invalida a Soberana Convenção Revolucionária, experiência de convenção criada pelos exércitos populares, e convoca o Congresso Constituinte. Além do retorno à ordem, eles buscavam, com isso, a legitimação do novo poder.

Assim, observando os trechos da Constituição e seu contexto de produção, fica clara a maneira como o texto reflete o conflito social. A Constituição aparece como expressão das necessidades do tempo, não apenas das necessidades de um ou de outro grupo, mas permitindo entrever, através dela, a luta social. Embora a investigação possa ser aprofundada, é perceptível que as reformas feitas no texto constitucional têm sua raiz na Revolução e nas demandas dos grupos que se envolveram nos levantes.

E um dos pontos centrais aqui trabalhados é o fato de que a Constituição, esta que é a mais avançada de seu tempo para muitos autores, funciona como ferramenta da institucionalização. Esta, por sua vez, opera a partir do enfraquecimento da oposição. Desse modo, a institucionalização do México aparece como anti-popular. Ela não expõe apenas os interesses e poder do grupo que sai como vencedor, mas, sobretudo, a potência e a capacidade de organização que tinham aqueles que saem como derrotados. É apenas frente a um movimento avançado e perigoso que as medidas de controle e exclusão se fazem necessárias.


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Notas

[1] TURCHETTI, Mario. “Tiranía: variaciones sobre un tema entre Historia y Teoría”, Revista Historia Contemporánea 28, 2004, 457-466.

[2] SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge & PINHEIRO, Paulo Sérgio (orgs.). Brasil, um século de transformações. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, pp. 262-304

[3] Essa inclinação legalista é bastante discutida por Arnaldo Córdova em CÓRDOVA, Arnaldo. La ideología de la Revolución Mexicana. Ediciones Era, 2013.

[4] Com fim de exemplo, basta observar a aberta admiração a Zapata e à Revolução cultivada tanto pelo atual presidente mexicano, de orientação centro-esquerda, Obrador, como pelo privatista Carlos Salinas.

[5] Carrancista é o termo que caracteriza o grupo alinhado a Venustiano Carranza, líder principal do constitucionalismo, corrente que chegou ao poder em 1914.

[6] Porfirista é o termo que caracteriza os elementos, grupos e práticas alinhadas à política de Porfírio Díaz, que governou o México até o despontar da Revolução. Seu governo foi marcado pelo autoritarismo, alinhamento à política norte-americana e profunda concentração de renda e de terra.

[7]AGUILAR CAMÍN, Héctor. À sombra da revolução mexicana: história mexicana contemporânea, 1910-1989. EDUSP, 2000. pp. 64-67.

[8] GILLY, Adolfo. La Revolución interrumpida. México, 1910-1920: Una Guerra Campesina por la Tierra y el POder. Cidade do México, Ediciones Caballito, 1971. apud AGUILAR CAMÍN, Héctor. À sombra da revolução mexicana: história mexicana contemporânea, 1910-1989. EDUSP, 2000. pp. 67-69.

[9] ÁVILA ESPINOSA, Felipe Arturo. Las corrientes revolucionarias y la Soberana Convención. Primeira edición. México, D.F. : Instituto Nacional de Estudios Históricos de las Revoluciones de México : El Colegio de México ; Aguascalientes, Aguascalientes : H. Congreso del Estado de Aguascalientes, XLII Legislatura : Universidad Autónoma de Aguascalientes, 2014. pp. 332.

[10]AGUILAR CAMÍN, Héctor. À sombra da revolução mexicana: história mexicana contemporânea, 1910-1989. EDUSP, 2000. pp. 67-69.

[11] CÓRDOVA, Arnaldo. La ideología de la Revolución Mexicana. Ediciones Era, 2013. pp. 205-208

[12] ibidem.

[13] ÁVILA ESPINOSA, Felipe Arturo. Las corrientes revolucionarias y la Soberana Convención. Primeira edición. México, D.F. : Instituto Nacional de Estudios Históricos de las Revoluciones de México : El Colegio de México ; Aguascalientes, Aguascalientes : H. Congreso del Estado de Aguascalientes, XLII Legislatura : Universidad Autónoma de Aguascalientes, 2014. p. 304

[14] CÓRDOVA, Arnaldo. La ideología de la Revolución Mexicana. Ediciones Era, 2013., p. 248.

[15] ÁVILA ESPINOSA, Felipe Arturo. Las corrientes revolucionarias y la Soberana Convención. Primeira edición. México, D.F. : Instituto Nacional de Estudios Históricos de las Revoluciones de México : El Colegio de México ; Aguascalientes, Aguascalientes : H. Congreso del Estado de Aguascalientes, XLII Legislatura : Universidad Autónoma de Aguascalientes, 2014. p. 332

[16] HURTADO, Luciano Ramirez. Convención Revolucionária y Congreso Constituyente. Revista Eletrônica da ANPHLAC, [S.l.], v. 17, n. 23, p. 05-28, jul. 2017. Disponível em: <http://revistas.fflch.usp.br/anphlac/article/view/2843/2478> Acesso em: 24/06/2019.

[17] MÉXICO. Constitución Política de la República Mexicana, sobre la indestructible base de su legítima independencia, proclamada el día 16 de septiembre de 1810 y consumada el 27 de septiembre de 1821. 1857.

[18] MÉXICO. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos que reforma la del 5 de febrero de 1857. 1917.

[19]MÉXICO. Constitución Política de la República Mexicana, sobre la indestructible base de su legítima independencia, proclamada el día 16 de septiembre de 1810 y consumada el 27 de septiembre de 1821. 1857.

[20]MÉXICO. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos que reforma la del 5 de febrero de 1857. 1917.

[21] MÉXICO. Constitución Política de la República Mexicana, sobre la indestructible base de su legítima independencia, proclamada el día 16 de septiembre de 1810 y consumada el 27 de septiembre de 1821. 1857.

[22] MÉXICO. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos que reforma la del 5 de febrero de 1857. 1917.

[23]  MÉXICO. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos que reforma la del 5 de febrero de 1857. 1917.

[24] ibidem.

[25] MÉXICO. Constitución Política de la República Mexicana, sobre la indestructible base de su legítima independencia, proclamada el día 16 de septiembre de 1810 y consumada el 27 de septiembre de 1821. 1857.

[26] MÉXICO. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos que reforma la del 5 de febrero de 1857. 1917.

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