Um claro elemento racista na histeria com o novo coronavírus

Por Slavoj Zizek, via RT, traduzido por Pedro Vannucchi

Alguns de nós, incluindo a mim mesmo, secretamente amariam estar em Wuhan na China neste momento, experienciando na vida real um cenário de filme pós-apocalíptico. As ruas vazias da cidade fornecem a imagem de um mundo não-consumista despreocupado consigo mesmo.


O Coronavírus está em todas as notícias, e não pretendo ser um médico especialista, mas há uma questão que eu gostaria de levantar: onde os fatos acabam e onde a ideologia começa?

O primeiro enigma óbvio: existem epidemias muito piores ocorrendo, então por que há uma obsessão tão grande com esta quando milhares morrem todos os dias por outras doenças infecciosas?

Claro, um caso extremo foi a pandemia de influenza de 1918-1920, conhecida como gripe Espanhola, quando o número de mortos foi estimado em pelo menos 50 milhões. Atualmente, o vírus influenza já infectou 15 milhões de americanos: pelo menos 140.000 pessoas foram hospitalizadas e mais de 8.200 pessoas morreram apenas nestas últimas semanas.

Parece que a paranoia racista está obviamente em ação aqui — lembre-se de todas as fantasias sobre as mulheres chinesas em Wuhan esfolando cobras vivas e saboreando sopa de morcego. Considerando que, na realidade, uma grande cidade chinesa é provavelmente um dos lugares mais seguros no mundo.

Mas há um paradoxo mais profundo em ação: quanto mais nosso mundo está conectado, mais um desastre local pode desencadear um medo global e, eventualmente, uma catástrofe.

Na primavera de 2010, uma nuvem de uma pequena erupção vulcânica na Islândia interrompeu o tráfego aéreo na maior parte da Europa — um lembrete de como, independentemente de toda nossa habilidade para transformar a natureza, a humanidade permanece sendo apenas outra espécie viva no planeta Terra.

O catastrófico impacto socioeconômico de um evento tão pequeno se deve ao nosso desenvolvimento tecnológico (viagens aéreas). Um século atrás, uma erupção como essa passaria despercebida.

O desenvolvimento tecnológico nos torna mais independentes da natureza e ao mesmo tempo, em um diferente nível, mais dependentes dos caprichos da natureza. E o mesmo vale para a disseminação do coronavírus — se isso tivesse acontecido antes das reformas de Deng Xiaoping, nós provavelmente nem teríamos ouvido falar sobre isso.

Saindo em defesa

Então como devemos combater o vírus quando ele simplesmente se multiplica como uma forma estranha e invisível de vida parasitária e seu mecanismo permanece basicamente desconhecido? É esta falta de conhecimento que causa pânico. E se o vírus sofrer uma mutação de forma imprevisível e desencadear uma verdadeira catástrofe global?

Esta é minha paranoia particular: a razão pela qual as autoridades estão entrando em pânico é porque sabem (ou suspeitam, pelo menos) algo sobre possíveis mutações que não querem tornar públicas a fim de evitar confusão e inquietações públicas? Porque os efeitos reais, até agora, têm sido relativamente modestos. Uma coisa é certa: isolamento e quarentenas não farão o trabalho.

É necessária total e incondicional solidariedade e uma resposta coordenada globalmente, uma nova forma do que antes foi chamado de comunismo. Se nós não orientarmos nossos esforços nessa direção, então a Wuhan de hoje é provavelmente a imagem da cidade de nosso futuro.

Muitas distopias já imaginaram um destino semelhante. Nós geralmente ficamos em casa, trabalhamos em nossos computadores, nos comunicamos por videoconferência, trabalhamos em uma máquina de nosso home-office, ocasionalmente nos masturbamos em frente a uma tela exibindo sexo hardcore e pedimos comida delivery.

Feriado em Wuhan

Há, no entanto, uma inesperada perspectiva emancipatória escondida nessa visão de pesadelo. Devo admitir que durante os últimos dias, me peguei sonhando em visitar Wuhan.

As ruas semi-abandonadas em uma megalópole — os centros urbanos geralmente movimentados parecendo uma cidade fantasma, lojas com as portas abertas e sem clientes, apenas um caminhante sozinho ou um carro aqui e ali, indivíduos com mascarás brancas — não fornecem a imagem de um mundo não-consumista despreocupado consigo mesmo?

A beleza melancólica das avenidas vazias de Xangai ou Hong Kong me lembra de alguns velhos filmes pós-apocalípticos como “On The Beach”, que mostra uma cidade com a maior parte da população exterminada— nenhuma grande destruição espetacular, apenas o mundo lá fora não mais à mão, esperando por nós e olhando para nós.

Até as máscaras brancas usadas pelas poucas pessoas andando por aí fornecem um anonimato bem-vindo e uma libertação da pressão social por reconhecimento.

Muitos de nós se lembram da famosa conclusão do manifesto dos estudantes situacionistas de 1966: “Vivre sans temps mort, jouir sans entraves” — viver sem tempo morto, gozar sem obstáculos.

Se Freud e Lacan nos ensinaram alguma coisa, é que esta fórmula — o caso supremo de injunção do superego, uma vez que, como Lacan demostrou apropriadamente, o superego é, em sua essência, um imperativo positivo para gozar, não um ato negativo de proibir algo — é a receita para o desastre. O impulso de preencher com intensidade todos os momentos disponíveis, inevitavelmente acaba em uma monotonia sufocante.

O tempo morto — momentos de retração, que os antigos místicos chamavam de Gelassenheit, libertação — são cruciais para a revitalização de nossa experiência de vida. E, talvez, se possa esperar que uma consequência não-intencional das quarentenas do coronavírus nas cidades chinesas seja que pelo menos algumas pessoas usem seu tempo morto para se libertarem de atividades agitadas e pensem sobre o (sem) sentido de suas situações.

Estou plenamente consciente do perigo que estou enfrentando ao fazer público estes meus pensamentos — não estou me dedicando a uma nova versão de atribuir, ao sofrimento das vítimas, uma percepção mais profunda e autêntica a partir da minha posição externa e segura e, assim, legitimando cinicamente o sofrimento delas?

Insinuações racistas

Quando uma cidadão mascarado de Wuhan anda à procura de remédios ou comida, definitivamente não há pensamentos anti-consumistas em sua mente — apenas pânico, raiva e medo. Meu argumento é que mesmo eventos horríveis podem ter consequências positivas imprevisíveis.

Carlo Ginzburg propôs a noção de que ter vergonha do país de alguém, não amor por ele, pode ser a verdadeira marca de pertencimento.

Talvez alguns israelenses reúnam a coragem de sentir vergonha com relação às políticas de Netanyahu e Trump feitas em seus nomes — não, é claro, no sentido de vergonha por serem judeus. Pelo contrário, sentindo vergonha do que as ações na Cisjordânia estão fazendo com o legado mais precioso do próprio judaísmo.

Talvez alguns britânicos também devam ser honestos o suficiente para sentir vergonha do sonho ideológico que lhes trouxe o Brexit. Mas para o povo de Wuhan, não é hora de se sentir envergonhado e estigmatizado, mas sim hora de reunir coragem e pacientemente persistir em sua luta.

Se havia pessoas na China que tentavam minimizar as epidemias, elas deveriam estar tão envergonhadas quanto os funcionários soviéticos em Chernobyl que declararam publicamente que não havia perigo enquanto evacuavam imediatamente suas próprias famílias. Ou como esses altos executivos que negam publicamente o aquecimento global, mas já estão comprando casas na Nova Zelândia ou construindo abrigos de sobrevivência nas Montanhas Rochosas.

Talvez a indignação pública contra esse suposto duplo comportamento (que já está obrigando as autoridades a prometer transparência) dê origem a outro desenvolvimento político não-intencional positivo na China.

Mas aqueles que deveriam estar verdadeiramente envergonhados somos todos nós ao redor do mundo só pensando em como colocar os chineses em quarentena.

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