Kwame Nkrumah: o encontro de duas razões revolucionárias

Por Jones Manoel, prefácio à coletânea “Kwame Nrkumah – Escritos

“Nkrumah é um brilhante exemplo da capacidade do marxismo de ser uma arma crítica e emancipatória para todos os explorados e oprimidos, combinando – nunca é demais insistir: de forma crítica e criativa – as duas grandes razões revolucionárias da modernidade: marxismo e luta anticolonial. Uma prova prática, cabal, de como é uma besteira as ideologias que afirmam ser o marxismo uma “ideologia branca”, essencialmente eurocêntrico ou inadequado à compreensão de sociedades não-europeias.”


Theodor W. Adorno afirmou que escrever poesia depois de Auschwitz era um ato bárbaro (ADORNO, 1998, p. 26). Já Hannah Arendt, no seu clássico Sobre a Revolução, assegura que os germes da guerra total se desenvolveram já na Primeira Guerra Mundial, quando, pela primeira vez, a diferença entre soldados e civis deixou de ser respeitada (ARENDT, 2016, p.39). Mesmo o historiador marxista Eric Hobsbawm disse que a “abolição da tortura foi uma das poucas realizações do liberalismo que pode ser exaltada sem qualquer restrição” (HOBSBAWM, 2015, p. 275). O filósofo Slavoj Žižek, em entrevista ao jornal El País (2018), comentando sobre a “atração” que a “liberdade e o bem-estar” europeu provocam nos migrantes, respondeu: “continuamos oferecendo ao mundo aquele que talvez seja o grande modelo de bem-estar relativo, um único modelo que combina bem-estar e liberdade, o melhor até agora na história mundial. Portanto, deveríamos estar orgulhosos do nosso destino europeu”. Adorno, Arendt, Hobsbawm e Žižek, todos grandes nomes da ciência nas últimas décadas, têm muitas diferenças entre si.

O que eles têm de semelhante? Nesses trechos destacados, exemplos possíveis entre centenas, há um ocultamento da questão colonial [1]. Adorno diz que é um ato bárbaro escrever poesia depois de Auschwitz, mas e os massacres coloniais no final do século XIX e começo do XX na China, Coréia, Argélia, Congo, África do Sul e afins? Arendt diz que só com a Primeira Guerra Mundial a diferença entre soldados e civis passou a ser ignorada – nas conquistas coloniais em África, Ásia e América Central essa distinção era respeitada?

Hobsbawm afirma que o liberalismo conseguiu a abolição da tortura, mas quando? Nas colônias também? Por último, Žižek pensa o “bem-estar e a liberdade” da Europa como uma ilha, um insulamento no mundo, sem fazer a ligação entre essa prosperidade europeia e o domínio colonial sobre a maior parte do mundo. A realidade, contudo, é bem diferente da avaliação dos nossos autores. Começamos com os Estados Unidos, uma das pátrias por excelência do liberalismo:

“Em 1918, 64 negros foram linchados; em 1919, o número subiu para 83. Talvez o ato mais brutal tenha sido o ocorrido em Valdosta, no Estado da Geórgia, em 1918. Mary Turner, uma mulher negra grávida, foi enforcada numa árvore, embebida com gasolina e queimada. Quando se balançava na corda, um homem da multidão puxou uma faca e abriu seu ventre. Seu filho caiu. “Deu dois gemidos fracos – e recebeu como resposta um pontapé de um valentão, no momento em que a vida era triturada nessa forma tão minúscula” (JONES, 1973, p. 15).

Já Alexis de Tocqueville, pensador de referência para Hannah Arendt, diz sobre a colonização francesa na Argélia que “tornamos a sociedade muçulmana muito mais miserável, mais desordenada, mais ignorante e mais bárbara de quanto fosse antes de nos conhecer”. Em seguida, diz o liberal francês ainda sobre a Argélia: “dizimamos a população, que continua a ser reduzida pela fome provocada pela guerra de conquista” e, em tom de aprovação, afirma “a morte de qualquer um desses (os árabes) parece um bem” (TOCQUEVILLE apud LOSURDO 2006, p. 107). Na mesma linha de raciocínio, tece esses comentários líricos sobre a colonização da China:

“Eis, portanto, afinal, a imobilidade da Europa às voltas com a imobilidade chinesa! É um grande acontecimento que […] empurra a raça europeia para fora de seus limites e submetem sucessivamente ao seu império ou influência todas as demais raças […] é a sujeição dos quatro cantos do mundo pelo quinto”. (Idem, p. 75)

Como se pode ver, no processo de colonização, na Argélia, China ou qualquer outro país, não existia a distinção entre civis e militares. Um povo como um todo era vítima de atos de barbárie extrema e violência condensada em seu mais puro estado. Essa violência onipresente da colonização foi muito bem percebida pelo grande Ho Chin Minh,

“Sr. Beck quebrou o crânio do seu motorista particular com um golpe vindo de suas próprias mãos. Sr. Bres, empreiteiro, chutou um anamita até à morte após ter amarrado seus braços e ter o deixado ser mordido pelo seu cachorro. Sr. Deffis, tesoureiro, matou seu servo anamita com um chute fortíssimo nos rins. Sr. Henry, um mecânico de Haiphong, ouviu um barulho na rua; quando abriu a porta de sua casa, uma mulher anamita entrou, seguida de um homem. Henry, pensando que era uma perseguição feita por um nativo depois de um ‘congai’, pegou seu rifle de caça e atirou no elemento. O homem, que caiu no chão duro como uma pedra era um europeu. Questionado, Henry respondeu, “eu pensei que fosse um nativo.

Um francês apresentou seu cavalo em um estábulo onde havia uma égua que pertencia a um nativo. O cavalo empinou, deixando o francês furioso. Ele agrediu o nativo, que sangrou pela boca e pelas orelhas; após isso, o francês amarrou as mãos do nativo e o pendurou sob sua escada”. (MINH, H, C., 2017, p. 30)

Isso pode ser associado à abolição da tortura? A realidade colonial, dentre outras coisas, pode ser compreendida como um gigantesco complexo institucional, combinando de forma criativa Estado colonial e sociedade civil, de tortura onipresente em um universo de desumanização total do colonizado.

A desigualdade entre centro e periferia do sistema capitalista (colônias, semi-colônias e países dependentes) é muitas vezes compreendida apenas em sua determinação econômica. Há, contudo, também uma óbvia determinação jurídico-política. O centro do sistema, enquanto receptor de valor de toda periferia, comporta margens maiores para um conflito redistributivo sem o direcionamento para rupturas políticas e formas agudas da luta de classe. A festejada liberdade europeia, como pensa Žižek, é inseparável do vale de lágrimas da periferia do sistema.

“Ainda, toda essa ideologia se articula com uma outra falácia, que surge da exposição de uma meia verdade: a afirmação de que a democracia burguesa vigente nos elos mais fortes se explica, de maneira indeterminada, pela luta de suas classes populares. Meia verdade, dizemos, porque aqui também se omite algo que é mais do que um mero detalhe: os parâmetros estruturais do sistema que permitiram que essa luta de classes, que ninguém pretende ignorar, produzisse certos efeitos e não outros, como os que se mostram nos países subdesenvolvidos, por exemplo. Ou alguém pensa, seriamente, que a Suíça é mais democrática que a Guatemala porque no país alpino a luta de classes foi mais intensa?” (CUEVAS, 1987, p. 180)

Os exemplos acima indicam que é fundamental compreender com precisão a nossa época histórica. Note, ao final dos anos de 1980, com a vitória da burguesia mundial sobre a União Soviética, o movimento comunista e o “campo socialista”, a história da modernidade burguesa no geral, e do século XX em particular, foi reescrita com base em premissas funcionais à hegemonia do capital. O traço primário dessa hegemonia é contar a história da modernidade como uma marcha inequívoca de liberdade, democracia, direitos humanos e desenvolvimento econômico. Um belo dia, porém, essa marcha sem sofrimento rumo ao paraíso é interrompida pelas duas grandes bestas que pareciam diferentes, mas são iguais: nazifascismo e comunismo soviético – ambos totalitários.

Nessa autoimagem do mundo burguês, como bem disse Domenico Losurdo, “impressiona […] a ausência da história e, em certo sentido, até da política. Desaparecem o colonialismo, o imperialismo, as guerras mundiais, as lutas de libertação nacional” (LOSURDO, 2010, p. 187). O primeiro passo para compreender a importância de Kwame Nkrumah e os dois livros em mãos do leitor/a – a Luta de Classes na África e Neocolonialismo, último estágio do imperialismo – é resgatar a história e a política ausente do balanço histórico dos vencedores sobre a grande guerra de classes do século XX.

O ato de nascimento da modernidade é a conquista colonial do território posteriormente chamado de América. A partir daí começa um ciclo, até hoje vigente, com formas histórico-sociais diferenciadas de extermínio dos povos não ocidentais pelo poder político-econômico, que se apresenta como personificação do Ocidente: o extermínio dos povos originários da América, a escravização e o tráfico de pessoas de África e a empresa de exploração colonial se combinam com o início da criação do conceito de raça [2].

O primeiro ciclo de domínio colonial pode ser datado do século XVI até o século XVIII. A partir da segunda metade do século XVIII começa um novo ciclo de domínio colonial ocidental rumo ao controle de nações milenares como a chinesa e a indiana. A Guerra do Ópio que inaugura o período chamado pelos chineses de “Século de Humilhações”, e consiste em uma marca fundamental na história do mundo. Naquele momento, aquela que foi durante séculos a nação não-ocidental mais poderosa do mundo é destroçada pelo poder colonial e sua superioridade militar inconteste.

Nas últimas décadas do século XIX, com o capitalismo transitando para sua fase imperialista, o colonialismo ocidental dominou todo globo. No primeiro ano do século XX, a imensa maioria da humanidade estava colonizada, sujeita a trabalhos forçados, regimes de supremacia racial, excluída da categoria de ser humano e sem gozar da maravilhosa liberdade dos modernos, exaltada por Benjamin Constant. Esse dado básico da história da modernidade excluída da autoconsciência burguesa do nosso tempo foi muito bem expresso no famoso debate entre Palmiro Togliatti e Norberto Bobbio.

Bobbio defendia, nos anos posteriores à Segunda Guerra, que os comunistas precisavam incorporar o liberalismo na sua teoria e prática de governo nos países socialistas. Togliatti, porém, faz o seguinte questionamento: “Quando e em que medida foram aplicados aos povos coloniais aqueles princípios liberais sobre os quais se diz fundado o Estado inglês do século XIX?” E prossegue afirmando que “a verdade é que a doutrina liberal […] está fundada numa discriminação bárbara entre as criaturas humanas, que se alastra não só nas colônias, mas na própria metrópole, como demonstra o caso dos negros estadunidenses” (TOGLIATTI apud LOSURDO, 2018, p. 72).

A conclusão é inequívoca: o balanço histórico da modernidade e, portanto, do liberalismo, Iluminismo, democracia, republicanismo e afins, muda radicalmente considerando a realidade da… maioria da população mundial – os povos colonizados. Mas esse processo histórico de longa duração de subjugação da maioria da humanidade não aconteceu sem resistência. Desde os povos originários das Américas, como os Mapuche no Chile, passando pela resistência quilombola dos negros(as) escravizados(as) no Brasil, até o Levante dos Boxers, kikuyus no Quênia e os anamitas na Indochina, e assim segue. Os exemplos são infinitos. O central é destacar que, a partir de diversas formas, conteúdos ideológicos, composição de classe e estratos sociais, uma série de lutas de resistência anticolonial cortam toda história da modernidade.

Essa é a primeira razão revolucionária da modernidade. Uma permanente luta de resistência que tem como fulcro a defesa da diversidade de modos de vida, organização social, manutenção da condição de humano e formas de produção pré-capitalistas de conteúdo às vezes comunitarista ou até igualitário com relações tendencialmente mais harmônicas com a natureza. O ápice dessa razão revolucionária foi a Revolução Negra antiescravagista e anticolonial de Santo Domingo.

Nessa revolução, os negros escravizados tomaram o poder matando seus senhores, acabando com a escravidão, combatendo o colonialismo Francês e clamando pela tão festejada universalidade dos direitos humanos, cometendo o sacrilégio, aos olhos do mundo liberal, de dizer que os negros também tinham direitos naturais, razão e sentido de liberdade [3]. O artigo 14° da Constituição haitiana de 1804, afirma que “todas as distinções de cor necessariamente desaparecerão entre os filhos de uma e a mesma família, onde o Chefe de Estado é o pai; todos os cidadãos haitianos, de aqui em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros”. O negro, enquanto símbolo de segregação e domínio total, passa a ser o verdadeiro universal emancipatório [4].

O marxismo, a segunda razão revolucionária da modernidade, é o negativo mais completo, desenvolvido e radical do capitalismo. Oferece uma crítica radical à ordem burguesa a partir da crítica da economia política; uma compreensão unitária, histórica e desmistificadora de mundo com o materialismo histórico-dialético e uma teoria da revolução e da construção de um mundo novo, comunista, com fundamento na ditadura revolucionária dos explorados e oprimidos. Um dos grandes paradoxos do capitalismo é que quanto mais ele tornou-se universal, dominando o mundo alicerçado no colonialismo-imperialista, por consequência tornou-se o marxismo, enquanto seu negativo, a filosofia insuperável do nosso tempo, como diria Sartre.

Essa universalidade do marxismo, contudo, não se expressa sem dificuldades. Muitos marxistas mostram uma incapacidade sistemática de fazer o que Lênin chamava de uma “análise concreta de uma situação concreta” e do marxismo uma arma viva pela revolução. Exemplo prático disso é a vulgata marxista presente em muitos partidos e intelectuais de que o grande problema da ordem burguesa é que ela garante apenas igualdade formal, jurídica, buscando a partir dessa superestrutura ocultar as desigualdades socioeconômicas. Como vimos no começo dessa introdução, é um escárnio com a história concreta da maioria da humanidade – isto é, os povos colonizados e de capitalismo dependente – tal afirmação.

O grande desafio do marxismo foi e continua sendo materializar-se enquanto um guia para ação que consiga concretizar sua dimensão universal – a crítica radical da ordem burguesa e o horizonte da emancipação humana – a partir das diversas mediações nacionais, locais. Em outros termos, entender a multiplicidade de formas da luta de classes (o plural aqui é importante) e das diversas contradições constitutivas da luta política em condições histórico-concretas. Isso significa, dentre outras coisas, que raramente a luta de classes se apresenta na sua forma “pura” imaginada, como um conflito mais que claro entre um bloco de trabalhadores de um lado e um bloco de burgueses de outro [5], e as tarefas da conquista do poder e da revolução, concretamente, não são as mesmas, nem têm os mesmos ritmos, para todas as formações econômico-sociais.

Kwame Nkrumah foi um dos muitos revolucionários do século XX que conseguiu fazer do marxismo uma arma na luta anticolonial e socialista do seu povo e usar o materialismo histórico-dialético de forma crítica e criativa para, superando o colonialismo cultural, analisar seu país, Gana, e o continente africano como um todo. Nascido em 1909, veio de um seio familiar que poderíamos chamar, genericamente, de “classe média”. Estudou em escolas católicas de Gana e, posteriormente, teve um período formativo nos Estados Unidos na Universidade da Pensilvânia. Nesse país conheceu figuras como C.L.R. James e tomou contato mais aprofundado com filosofia, política, história e o marxismo.

Kwame Nkrumah também participou do Sexto Congresso Pan-africano em Manchester, na Inglaterra, e matinha uma relação de assimilação crítica com as reflexões de Marcus Garvey. Depois de seu longo período de estudos e atividades políticas divididas entre Estados Unidos e Europa, volta para Gana e torna-se o principal líder da independência do país. Com Gana independente, Nkrumah foi primeiro-ministro entre 1957 e 1960 e presidente de 1960 a 1966. Em 1966, enquanto fazia uma visita ao Vietnã Socialista, sofreu um golpe de Estado articulado pela burguesia local e setores descontentes da burocracia governamental com apoio do imperialismo britânico.

Nunca mais conseguiu voltar para Gana em vida. Continuou atuando como um líder socialista, anti-imperialista e pan-africanista, especialmente a partir de sua produção intelectual, até morrer em 1972, quando pôde, finalmente, voltar à sua amada pátria. Não será, no âmbito dessa introdução, o espaço para avaliar o período de Nkrumah como governante e sua política de transição socialista. As tentativas de transição socialista em África exigem maior tempo de reflexão, estudo e aprofundamento – especialmente por parte de nós, brasileiros, que vivemos também na periferia do sistema capitalista.

Vamos focar, agora, a título de conclusão desta introdução, em quatro aspectos fundamentais da obra de Kwame Nkrumah, presentes nos dois livros desse novo volume. Nkrumah, assim como outros grandes marxistas da periferia do sistema (como José Carlos Mariátegui) teve que enfrentar um desafio que se põe para todo revolucionário que teve uma civilização antiga destruída pelo colonialismo, mas que se depara com sobrevivências, reminiscências de modos de produção antigos: o que fazer com essa herança?

Frente à história pré-capitalista e às relações que ainda sobrevivem, podemos cometer dois erros. O primeiro: defender que estas não são importantes, que vão desaparecer como um dado natural e inexorável, bastando focar na crítica ao capitalismo, ignorando as particularidades histórico-concretas. O resultado disso, grosso modo, é colonialismo cultural e eurocentrismo, impossibilitando de desenvolver uma análise e, portanto, uma prática política, correta. Um segundo problema é o fetiche do particularismo: a noção de que, dada a existência de um passado pré-capitalista com legado civilizacional forte e sobrevivências dessas relações sociais, o marxismo não é capaz de captar a essência dessa formação social, sendo necessário desenvolver uma nova teoria – ou método – apto a compreender esse fenômeno único.

Nkrumah, no seu A Luta de Classes na África, conseguiu enfrentar com maestria esses problemas. Mostrou como o passado pré-capitalista e a existência de múltiplos modos de produção combinados sob a dominância do capitalismo criam particularidades no continente africano, mas não particularidades absolutas e sim formas específicas do ser social capitalista plenamente compreensível à teorização marxista. África é um continente cindido em classes antagônicas. Aqui a universalidade do mundo do capital se impõe. Mas Nkrumah sabe captar essa universalidade em seu movimento real e mostra isso, por exemplo, quando analisa o papel da raça e do racismo na estrutura de classes do capitalismo em África.

Em segundo lugar, o revolucionário de Gana também conseguiu resolver com talento um dilema de dilacerou todo movimento anticolonial de África: a leitura histórica do passado pré-colonial. Houve uma tendência muito forte em diversos movimentos políticos em idealizar esse passado como uma época idílica, sem contradições, exploração, pobreza ou miséria, buscando contrapor-se ao discurso colonial-imperialista do continente bárbaro, sem história, cultura, etc. Nkrumah no A luta de classes… consegue mostrar que depois da penetração do capitalismo, as mazelas sociais, como a exploração, alcançam outro patamar histórico, o que não significa dizer que elas não existiam anteriormente.

As sociedades africanas pré-coloniais, guardada toda diversidade, eram, no geral, dotadas de menor níveis de desigualdade, exploração e miséria. Não eram perfeitas, paraísos. Não se trata, portanto, de recriar uma sociedade que não existe mais. Essa perspectiva, para Nkrumah, era reacionária. É necessário, indispensável, combater os mitos do poder colonial, criar uma história crítica, combatente ao eurocentrismo, mas sem idealizar o passado. A poesia da Revolução Africana, resgatando criticamente o passado, está no futuro.

Um terceiro aspecto, já comentado, é o caráter criativo do marxismo de Nkrumah. O nosso revolucionário, partindo da clássica análise de Lênin sobre o imperialismo como etapa superior do capitalismo, não se limitou a repetir as considerações do líder bolchevique ou tratá-las como uma teoria geral a ser encaixada numa realidade diversa. Em Neocolonialismo, último estágio do imperialismo ele desenvolve a teoria marxista do imperialismo, exibe uma aguçada análise do neocolonialismo e mostra os meandros da permanência da dominação imperialista nos países africanos que conseguiram a independência política.

Por último, nos dois livros que o(a) leitor(a) tem em mãos, é possível ver uma teoria concreta da revolução. Nkrumah passava longe do doutrinarismo comum a certos marxistas que acham que proclamar a revolução em dimensões totalmente abstratas é solução para tudo ou que organizar as massas é convencer, como se fosse uma competição retórica, de que o socialismo é melhor que o capitalismo. Ele consegue apreender as expressões concretas do desenvolvimento capitalista em condições neocoloniais e, a partir disso, propor tarefas de superação dessa condição. Pensa a revolução como uma série de mediações tático-políticas, ligadas à estratégia de conquista do poder, com vistas à construção de outra ordem social. A Revolução é um ato vivo, concreto, tocando o presente para construção do futuro.

Em suma: segue um brilhante exemplo da capacidade do marxismo de ser uma arma crítica e emancipatória para todos os explorados e oprimidos, combinando – nunca é demais insistir: de forma crítica e criativa – as duas grandes razões revolucionárias da modernidade: marxismo e luta anticolonial. Uma prova prática, cabal, de como é uma besteira as ideologias que afirmam ser o marxismo uma “ideologia branca”, essencialmente eurocêntrico ou inadequado à compreensão de sociedades não-europeias.

Boa leitura!


Notas:

[1] Não quero, contudo, resumir toda obra desses pensadores apenas a esses exemplos. Os níveis de ocultamento da questão colonial e eurocentrismo são variados e tem historicidade. Hobsbawm, por exemplo, é bem melhor que Hannah Arendt na compreensão da periferia do sistema capitalista.

[2] Para aprofundar o debate sobre modernidade, colonialismo e o conceito de raça, ver MANOEL, Jones. A luta de classes pela memória: raça, classe e Revolução Africana In Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista. Org. Manoel, Jones; Landi, Gabriel. São Paulo, Autonomia Literária, 2019.

[3] É necessário sempre lembrar que todas as revoluções burguesas clássicas foram escravagistas no sentido muito preciso: depois delas, seja a nível interno, ou no papel do país no tráfico de pessoas escravizadas, a revolução e o triunfo liberal deram força de expansão a esse instituto bárbaro. Mas temos uma exceção: a Revolução Francesa. Nesse ponto, damos a palavra a esse pensador: “a insistência dos críticos liberais da Revolução Francesa em atribuir à “revolução americana” a iniciativa histórica da Declaração dos Direitos do Homem confirma a que ponto o liberalismo de hoje rebaixou-se a uma vulgar apologia do Império estadunidense. Afetam esquecer uma não pequena diferença entre a concepção de direitos humanos dos chamados “Pais Fundadores” dos Estados Unidos e a dos revolucionários jacobinos: aqueles mantiveram os negros na escravidão; estes aboliram-na imediatamente. Ela foi entretanto restabelecida nas colônias francesas após a queda de Robespierre…” (MORAES, 2001, p. 13).

[4] Para um aprofundamento do significado da revolução haitiana, conferir “Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos” de C. L. R. James: São Paulo, Boitempo, 2010.

[5] “Imaginar que uma revolução social é concebível sem as revoltas das pequenas nações nas colônias e na Europa, sem as explosões revolucionárias de um setor da pequena-burguesia com todos seus preconceitos, sem um movimento do proletariado politicamente não-consciente e massas semiproletárias contra a opressão de seus latifundiários, da Igreja, e da Monarquia, contra a opressão nacional, etc. – imaginar isso é condenar a revolução social. Então, um exército se enfileira em um local e diz “Nós apoiamos o socialismo”, e outro, em outro local qualquer, diz “Apoiamos o Imperialismo”, e isso será uma revolução social! Apenas aqueles que têm uma visão tão ridiculamente pedante podem difamar a rebelião irlandesa chamando-a de “putsch”. Quem espera uma revolução social “pura” nunca vai viver para vê-la. Tal pessoa fala tanto de revolução sem entender o que é uma revolução” V. I. Lênin – A Rebelião Irlandesa de 1916. Disponível no link: https://www.novacultura.info/single-post/2018/04/22/Lenin-A-Rebeliao-Irlandesa-de-1916

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