Um importante debate teórico e político

Por Diogo Fagundes

Uma discussão sobre teoria francesa, economia, nação, política e maoísmo a partir de Safatle


Respeito bastante o trabalho do filósofo Vladimir Pinheiro Safatle. Admiro o fato de ele procurar ser um “intelectual público”, não restrito apenas à discussão entre pares nos espaços acadêmicos, uma figura muito necessária e em extinção.

No plano político, ele cumpre um papel principalmente em denunciar o que persiste da ditadura militar nas instituições e nos valores da sociedade brasileira atual, particularmente no caráter assassino e racista das polícias nas periferias brasileiras, contrário a uma certa apologia acrítica e comum da transição democrática e da “moderação democrática” da Nova República.

Já no plano mais propriamente filosófico, compartilho da sua visão da subjetividade humana influenciada pela psicanálise lacaniana e do retorno à tradição dialética de Hegel, o que o coloca numa certa tendência contemporânea do pensamento crítico — o exemplo mais famoso é Zizek — de valorização da falta, da exceção, da contingência irredutível, da incompletude e indeterminação necessárias à constituição do sujeito; características estas presentes na própria realidade.

No entanto, ao longo do tempo fui percebendo algumas lacunas importantes nas suas análises: a ausência de reflexão a respeito da “questão nacional” e um certo distanciamento da ideia de desenvolvimento econômico e tecnológico. Estes temas foram o alfa e ômega da esquerda brasileira durante os anos 50 e 60 e retomaram nova atualidade com o neoliberalismo.

Ao longo deste texto, extrapolarei os textos e comentários do autor para especular a respeito de uma certa lógica que opera em ambientes impregnados de uma atmosfera cultural da esquerda que se pretende radical e contemporânea, principalmente influenciada pela filosofia da Europa continental e psicanálise. A intenção é debater criticamente com certo estilo de pensamento que oblitera tanto o problema da dependência nacional quanto a temática do desenvolvimento das “forças produtivas” presente no marxismo clássico.

Compreendo o fato do desdém do filósofo, mas não coaduno: os pensamentos associados ao desenvolvimento da nação foram apropriados de certa forma por um setor dos milicos na ditadura militar (pense em Ernesto Geisel), quando as profecias de certa necessidade de reformas estruturais tais como a reforma agrária para a decolagem da economia brasileira, associadas ao nacionaldesenvolvimentismo progressista, pareciam fora de propósito, afinal de contas o Brasil havia adensado cadeias produtivas, criado um parque industrial de respeito e se tornado a principal economia da periferia capitalista sem redistribuir renda ou riqueza.

No entanto, esta é uma visão cujo sentido fica restrito à ótica dos anos 80. Hoje está claro que o Brasil desde então sofre um processo de desindustrialização, com consequências sociais trágicas para o emprego, renda e produtividade, se distanciando daquelas potências em relação as quais havia diminuído a distância em capacidade científico-tecnológica e ficando para trás até de economias que até há pouco tempo eram bem inferiores ao aparato produtivo nacional (China, Coreia do Sul, Índia).

Nesta conjuntura, uma crítica genérica a todo e qualquer “desenvolvimentismo” significa coadunar, de certa forma, com os ideólogos do mercado globalizado: o problema do desenvolvimento e da dependência, principalmente a dos EUA, fora superado, ou então, simplesmente constitui um falso problema.

O que Satafle diz a respeito do atraso tecnológico brasileiro, da sua completa falta de relação com os avanços da revolução científico-tecnológica da Revolução 4.0 (mas já anteriormente, na chamada “terceira revolução industrial’ da microeletrônica), sua regressão na divisão internacional do trabalho para um padrão primário-exportador, sua especialização em setores intensivos em matérias-primas?

Ora, o Brasil não é a França, onde Safatle aprofundou seus conhecimentos em filosofia e de onde mais claramente retira suas influências. Lá desindustrialização está associada a um elevado nível de desenvolvimento e exportação de fábricas para países mais pobres; aqui, significa mais neocolonialismo mesmo. Faz sentido para um pensador francês colocar entre parênteses o tema do desenvolvimento econômico; no Brasil significa adequação ao consenso de que o PIB não precisa crescer tanto e que a desnacionalização econômica é, na verdade, algo positivo.

Mas o Brasil também não é uma república das Antilhas: seu tamanho territorial, recursos naturais e população exigem que pensemos a respeito de sua economia com a mesma régua adotada para se enxergar os EUA, a União Europeia, o Japão — países que nem de longe abdicam da soberania econômica. É o critério que a China, um país da categoria “em desenvolvimento”, adota, por exemplo: elevar o PIB per capita de forma rápida, adquirir autonomia tecnológica, diversificar sua sociedade e seus serviços a partir do crescimento da indústria. Sem isso, qualquer pretensão de soberania estatal é conto da carochinha, pois ficamos condenados — e por conseguinte, a América Latina, pois não há nenhum outro país nesta região do globo com esta potencialidade — a sermos eternamente subordinados às outras potências.

Falei em soberania nacional. Talvez estas palavras sejam o problema. Afinal de contas, pensar a libertação da nação significa ficar a reboque de um mito (a “burguesia nacional” anti-imperialista) compartilhado pelo PCB e enterrado por FHC — ou numa visão mais radical, por Ruy Mauro Marini, ostracizado durante muito tempo pela teoria da dependência mais mainstream — há mais de cinquenta anos. Além do mais, a lógica nacional tem que ser suprimida se quisermos pensar de maneira universalista e igualitária, para além dos particularismos e suas rivalidades, que tantas guerras e mal nos trouxeram.

Esta abordagem, por mais que parta de problemas reais, torna-se insuficiente para quem está inserido na periferia do capitalismo. Sim, a questão “nacional” é algo historicamente burguês. No entanto, é ilusório achar que está colocado na ordem do dia — apesar de ser nosso horizonte — a superação do Estado nacional e da geopolítica dos conflitos entre interesses nacionais distintos. Quem se propõe a discutir o fim do Estado nacional dentro dos parâmetros econômicos atuais está, na prática, propondo sua fraqueza relativa frente a outros poderes, principalmente o das corporações transnacionais.

Urge, portanto, pensar a questão nacional dentro de um paradigma presente em Leon Trotsky: é uma tarefa democrático-burguesa — assim como a reforma agrária, por exemplo — pendente nos países de capitalismo retardatário, cuja solução efetiva pode advir somente de um processo que supere os marcos burgueses, devido à subordinação das burguesias locais ao imperialismo e a poderes tradicionais antigos, como o latifúndio.

Mais abstratamente ainda, é preciso pensar este tema dentro de uma problemática hegeliana (universalidade, particularidade, singularidade) que, como toda dialética genuína, opera em tríade e não em binarismos absolutos. O universal, o comunismo — Satafle não utiliza a palavra, mas penso que não há outro nome possível a uma real alternativa à modernidade diferente ao capitalismo — pode se realizar no nacional: pensemos em Cuba e como em sua lógica patriótica, uma das forças essenciais à revolução, em nada antagoniza à solidariedade universal que tantas vezes demonstrou, seja no auxílio a guerrilhas anticoloniais ou no envio de médicos a países afetados por catástrofes. Na verdade, é algo presente desde a Revolução Francesa em sua fase mais igualitária, a jacobina: o nacionalismo cívico andava em consonância com a libertação dos escravos nas colônias e a recusa ao exclusivismo chauvinista (todo cidadão que adotasse alguém ou cuidasse de um idoso era considerado francês).

É verdade, contudo, que este ainda é um terreno cheio de obstáculos e armadilhas. Para quem quiser visualizá-los pode olhar os posicionamentos paranoicos de alguns comentaristas do portal Duplo Expresso, às vezes flertando com delírios conspiracionistas mais remetente à Enéas Carneiro do que a Che Guevara, com afinidades eletivas enormes com os integralistas ou seguidores do Alexander Dugin — alguém que merece ser lido e de uma originalidade eclética interessante, mas tal como Julius Evola, Oswald Spengler e pensadores do estilo, jamais pode basear o pensamento de algum socialista ou comunista; aliás, ele se coloca explicitamente contrário a isto.

Também é preciso dizer que esta aspiração universalista cubana foi mantida — ainda que com limitações, impostas pelo isolamento e bloqueio — devido ao fato de seu Estado não estar inserido numa lógica direta de disputa de territórios, fronteiras, mercados, matérias-primas. Em experiências de tentativas de ultrapassagem capitalista em Estados com condições virtuais ou reais de potência, tais como a URSS e a China, a lógica geopolítica, voltada ao atendimento primário de suas fronteiras internas, se impõe, após tentativas iniciais de aspiração internacionalista, o que configura um problema ainda não solucionado na tradição comunista — que não deve ser resumido à figura do Stalin e seu “socialismo em um só país”, como faz certo trotskismo vulgar, mas às pressões da inércia do mundo tal como ele é após o esgotamento das energias revolucionárias.

Todo este debate faz muito mais sentido para nós, latino-americanos do que às potências do chamado equivocadamente de “Ocidente”, nas quais pensadores de esquerda podem se gabar de imaginar o fim da lógica estatal de Westfália — ou mesmo qualquer Estado — e a fuga da discussão do desenvolvimento e da dependência. Aliás, nem na França esta temática pode ser abordada de maneira “pura”: o orientador de doutorado de Vladimir Safatle, o filósofo Alain Badiou, em suas intervenções políticas costuma discorrer sobre a subordinação da França ao capitalismo norte-americano, inclusive em seus valores (a “americanização” presente no consumismo hedonista e à imbecilização da cultura de massas, associados ao EUA, por exemplo), mas principalmente, na lógica geopolítica — a discussão sobre a OTAN e sua lógica colonial de bombardeios, saques e demais agressões aos países dos antigos Segundo e Terceiro Mundo.

Pois bem, Badiou me leva à segunda metade do meu texto — sim, é um autêntico “textão”, tão livre e caótico quando as redes sociais — que almejava: as relações entre teoria francesa e política.

A França conheceu, após a febre do existencialismo, uma vaga chamada de “estruturalismo”.

A expressão serve para designar um conjunto guarda-chuva de autores, bastante diferentes entre si, muitas vezes se opondo de maneira polêmica, marcado por uma semelhança — a tentativa de dar rigor formal às ciências humanas por meio da linguística. Das aporias aparentemente insolúveis do estruturalismo — estrutura x sujeito; história x política; natureza x cultura — surge o mal definido “pós-estruturalismo”, que inclui muitas vezes os mesmos autores do primeiro, a exemplo de Jacques Lacan e Michel Foucault.

Durante muito tempo julguei toda essa herança intelectual como “idealismo pós-moderno”, preso que eu estava a um certo marxismo vulgar e esquemático — “se não fala de economia não é materialista”. Em um período posterior, um pouco mais habituado à dialética e a Hegel, “comprei” a crítica presente em autores de viés lukacsiano, até hoje referências maiores para mim, como Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Também me influenciava bastante as considerações críticas vindas de Perry Anderson. Em um certo historicismo, eu enxergava, portanto, este movimento como um modismo irracionalista da fase “decadente”, pessimista e contrarrevolucionária da burguesia pós-1848 — obras de Lukács tais como “A destruição da razão” permitem uma leitura que cataloga genérica e apressadamente todo este corpo de pensamento.

O palavrório complexo e às vezes hermético de boa parte destes autores — a dificuldade de ler Lacan é famosa, por exemplo — certamente não ajudava no meu primeiro contato com estas obras, mas hoje percebo a riqueza e inventividade deste período recente do pensamento ocidental, que colocou novas questões e desafios para qualquer um que queira pensar na contemporaneidade.

Jacques Lacan, por exemplo, uma das referências maiores de Safatle, sofre as maiores distorções preguiçosas. A sua leitura racionalista de Freud, interpretando o inconsciente não como algo ilógico — como faz a Lebensphilosphie — mas, sim, como uma estrutura simbólica complexa, é de um racionalismo quase cartesiano (aliás, ele faz alusão explicitamente ao cogito de Descartes em sua leitura do sujeito), mas, bizarramente, ainda o acusam de irracionalista.

Críticos dizem que falta dialética, mas somente uma leitura muito mal feita poderia chegar a esta conclusão: a tríade do imaginário, simbólico e real é uma das dialéticas mais sofisticadas já criadas pelo pensamento humano. Aliás, foram as próprias considerações sobre o real vindas deste autor que colocaram questões novas e complexas para a ciência e o materialismo filosófico, tirando a psicanálise de uma mera defesa conformista e “adaptativa” do ego — como é dominante neste disciplina no mundo anglo-americano –, fazendo ela desvendar a fundo as complexidades da subjetividade humana.

Alguns dos subprodutos deste universo podem ser encontrado na revista “Cahier pour l’analyse”, editada na época por seguidores lacano-maoístas (pois é!) de Louis Althusser. Lá encontramos excelentes e inovadores reflexões sobre epistemologia, em busca de compatibilizar marxismo, psicanálise e o rigor formal exigido pelo estado atual das ciências. Infelizmente, trata-se de algo esquecido, inclusive por alguns dos seus principais nomes — como Jacques-Alain Miller, que de maoísta lacaniano inovador se tornou um defensor dogmático tanto de um dogmatismo lacaniano escolástico (uma contradição em termos) quanto um apologeta da democracia liberal burguesa.

Muitos devem ter se espantado com a menção ao “lacano-maoísmo”. Pois é, na França — mas também nos EUA, basta ver a influência do maoísmo no pensamento dos Panteras Negras e figuras associadas ao movimento negro radical tais como o poeta Amiri Baraka — o movimento maoísta constituiu um evento intelectual radical e criativo. Um dos maiores problemas das leituras que se faz deste período intelectual está na ignorância acerca deste fato. Assim, muitos leitores de Rancière, Badiou, Balibar ou mesmo Deleuze e Foucault (que polemizavam com os maoístas) e Sartre (que panfletava jornais maoístas na rua) não conseguem apreender determinações importantes destes autores por desconhecerem a tradição comunista, mais em geral, e o maoísmo, em particular. Esta história rica foi apagada pelos donos do mundo. Após a restauração conservadora dos anos 80/90 mencionar o nome de Mao virou pecado mortal para setores amplos e dominantes da academia, tão arrogantes quanto ignorantes.

Aí reside uma das causas da minha problematização do pensamento influenciado pela França deste período que se abstém de considerar a política revolucionária daquela época, através de uma leitura puramente acadêmica.

Alain Badiou, por exemplo, ao contrário de Safatle, nunca falaria que não é um homem para disputar partido — nisto Safatle lembra mais Adorno — como o professor da USP deu a entender na entrevista com o Fernando Haddad, recém divulgada em vídeo. Para Badiou, a política emancipatória é sempre coletiva, popular (“as grandes trocas de experiências com as massas”, um jargão do maoísmo) e elaborada de maneira organizada e disciplinada. Assim, as reflexões e experiências do intelectual francês acerca do fim da forma partido (que para ele estão associadas a uma superação do leninismo já presente no próprio Mao da Revolução Cultural) podem se tornar perorações anarcóides e espontaneístas ou simplesmente antipolítica de classe média quando descoladas de seu substrato cultural e histórico original.

O maoísmo francês era diversificado e continha diversas tendências, desde a nostalgia pelo passado do PCFML, uma certa tentativa de reavivamento dos anos mais duros e heróicos do comunismo francês quando liderado por Maurice Thorez, passando pelas tendências quase anarquistas da Gauche Proletariénne, com seu culto à violência espetaculosa e midiática — caráter pequeno-burguês que já anunciava a posterior conversão de Bernard-Henri Lévy e outros jovens maoístas em filósofos pop star mais habituados à mídia do que à reflexão crítica — até a UCFML, talvez o grupo mais original, liderado por Alain Badiou mas também por outras figuras intelectuais interessantes como Sylvain Lazarus e Natacha Michel. O maoísmo, além disto, estava impregnado, ainda que de forma um tanto estética, na influente revista literária “Tel Quel”– associada a Philippe Sollers e outros escritores importantes.

Este partido, ou melhor, esta união de comunistas em busca de um “partido de novo tipo”, como eles próprio se definiam, assim como a sua transformação (a Organisation Politique) em um contexto pós-crise do movimento operário, do marxismo e do fim da URSS, constituem condições indispensáveis para se entender a época e extrair o conteúdo real do pensamento produzido por aqueles envolvidos no pós-maio de 1968. No entanto, são poucos os que o fazem. Safatle, por exemplo, abarca várias dimensões da trajetória empreendida por Badiou — as artes de vanguarda, os debates do estruturalismo, o pensamento de Lacan, a dialética de Hegel — com a exceção (além da matemática pós cantoriana) daquilo que não pode ser nomeado: Mao e o comunismo.

O que buscavam estes maoístas? Liam no Mao justamente aquilo que faltava no pensamento stalinista — que nada mais é que o leninismo petrificado em dogmas da economia e da política–, mas também à tentativa de Althusser (ele próprio também inluenciado por Mao) de reformular o marxismo-leninismo e o materialismo dialético e histórico, esbarrando no impasse estruturalista mais comum: a importância da subjetividade e da transformação da história (compreendida em termos de estruturas, tendências ou leis objetivas) em agência política transformadora.

Mao, dentre todos os nomes do marxismo, é o revolucionário que mais ênfase deu ao papel da subjetividade: o entusiasmo das massas capaz de derrotar exércitos muito mais poderosos — como de fato ocorreu na revolução chinesa –, a valorização da luta cultural contra o “velho”(“devemos ser tanto a flecha quanto o alvo”), o papel das massas acima da burocracia partidária, a busca frenética para alcançar o comunismo visto na sua acepção mais igualitária possível (a superação das “três grandes divisões”, envolvendo a superação da contradição entre trabalho manual e intelectual; campo e cidade; e entre as nacionalidades, mas também entre gêneros, haja vista a importância da libertação feminina no programa da revolução).

Havia portanto um Mao diferente daquele que defendeu o legado de Stálin contra Kruschev (este é um dos que também existia): o escritor de comentários críticos ao manual de economia política soviético, o crítico da política de industrialização de Stálin baseada na coletivização forçada do campo, o estimulador rebelde da juventude estudantil contra a autoridade do próprio partido. Até mesmo naquilo que falhou de maneira barulhenta (o Grande Salto Adiante, a incapacidade da Revolução Cultural criar um novo modelo globalmente distinto ao soviético), estão presentes estas marcas de subjetivismo contrárias a uma ortodoxia de leis econômicas rígidas definindo a ação política. Ele, afinal de contas, defendia que a superestrutura poderia definir a infraestrutura, que as relações de produção poderiam ganhar proeminência frente às forças produtivas; que a força rebelde das massas poderia estar à frente da consciência da vanguarda partidária; que o campesinato poderia ocupar um papel de mais destaque até que o proletariado industrial. Neste sentido “heterodoxo”, encontro paralelos com Che Guevara e com intelectuais das revoluções anticoloniais (como Franz Fanon).

Foi através deste maoísmo que muitos — incluindo o Badiou — encontraram uma maneira de contornar os impasses derivados do objetivismo cientificista de Louis Althusser e outros arautos do anti-humanismo teórico. Um pensamento do sujeito radicalmente novo — o que era negado por todos deste movimento estruturalista, com exceção de Lacan, daí a importância deste último — pôde surgir, englobando toda uma ética própria. Até mesmo as dificuldades e limitações destes autores, como uma tendência ao voluntarismo político sem mediações com a economia, uma certa visão subjetivista das classes sociais, vistas mais como constructos filosóficos do que como conjuntos econômico-sociais, uma incapacidade de formular o problema do desenvolvimento das forças produtivas nos países atrasados, gerando o problema do “igualitarismo na pobreza”– limitações estas que Safatle retém, ao meu ver, e que impedem estes autores de atribuírem valores positivos à China atual — devem ser lidas como tentativas de fugir do economicismo determinista do “materialismo dialético e histórico” divulgado por Stalin e operado na base do sistema filosófico oficial da União Soviética.

Mao, para Alain Badiou, é o nome próprio que circula e “dá cola” àquilo que deve se extrair de Jean-Paul Sartre, Althusser e Lacan em conjunto. Era uma maneira de ao mesmo tempo defender o movimento da vida e a criação do novo, preservando uma abertura frente à jaula de aço da estrutura, e manter no entanto, uma ideia de consistência e ordem, ao contrário de Deleuze, suas “máquinas desejantes” e outros de tendência mais anarquista dos legatários de maio de 68 — o fato de Deleuze poder ser apropriado atualmente por liberais defensores do capitalismo pós-moderno nos faz pensar em como o anarquismo, a ideia de horizontalidade dinâmica e totalmente fluida, o antiautoritarismo genérico, podem se converter em liberalismo, o que nos permite ver a limitação estrutural de Antonio Negri e autores pós-marxistas do gênero.

(Daí porque o absurdo, defendido até por professores universitários, de que não se deve ler ou discutir Stálin. Sem este contato, não se entende nada das discussões do movimento comunista do século XX. Daí também porque o absurdo cometido por alguns trotskistas quando igualam simplisticamente Mao a Stálin).

Apenas para concluir esta passagem pelo maoísmo e chegar ao argumento central do meu escrito: um dos erros de interpretação mais evidentes, para mim, do pensamento de Alain Badiou, está na associação de sua teoria do evento — uma contingência ontológica imprevisível capaz de dar origem a uma verdade nova e universal — a algo da ordem do milagre, da graça divina, totalmente sem relações com o mundo atual. Somente comete este erro de leitura quem esquece de revisitar as suas polêmicas dentro do movimento maoísta, quanto se colocou de forma contrária à doutrina esquerdista da novidade absoluta, a “ontologia do anjo” de Christian Jambet e Guy Lardreau. A academia — e aí situo Vladimir Safatle, talvez injustamente — não dá a importância a estas questões políticas, como se elas não fossem essenciais para interpretar não apenas Badiou, mas todos os intelectuais deste período histórico na França.

Safatle, resumindo, ao meu ver, mantém limitações desta tradição francesa — a ausência de reflexão sobre economia e geopolítica — ao mesmo tempo em que não se apropria da rica discussão política derivada dos impasses do marxismo-leninismo, que ganharam uma tentativa de reformulação por meio do maoísmo na Europa e EUA — aqui na América Latina, algo paralelo ocorreu por meio das guerrilhas guevaristas, se chocando com as mesmas dificuldades e bloqueios.

Estas lacunas e vieses de interpretação fazem justiça, de certa forma, a Domenico Losurdo, quando este acusa o “marxismo ocidental” de renegar o debate da libertação nacional e do desenvolvimento econômico na periferia do capitalismo. Modestamente afirmo que esta “politização” maior do pensamento filosófico do professor brasileiro certamente enriqueceria sua capacidade analítica e daria contornos ao mesmo tempo mais radicais e mais práticos às suas intervenções políticas.


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