Estado, crise e pandemia: Sobre o necessário manifesto de Mascaro e suas fundamentações

Por Thais Hoshika e Romulo Cassi Soares de Melo

O novo coronavírus encontra, expõe e amplifica as fissuras do velho vírus do capital. A obra de Mascaro se assenta sobre três pontos que merecem destaque: o fundamento não natural da crise; a intensificação da crise como possível resposta à crise; e a provável investida do autoritarismo no caso brasileiro.


Um vírus ronda o planeta – o vírus do capitalismo. É sobre esta plataforma que Alysson Leandro Mascaro, jurista e filósofo brasileiro, desenvolve o seu recente manifesto Crise e pandemia. Recém-publicado, este ensaio trata das tendências e possibilidades de transformação social, abertas a partir da crise do capitalismo e de seu encontro com a pandemia. Mas longe de ser uma manifestação solitária, esta obra só pode ser lida enquanto uma espécie de continuação de um longo projeto de pesquisa que tem os livros Estado e forma política (2013) e Crise e golpe (2018) como marcos fundamentais. Situá-la em meio a este projeto, retraçando brevemente o trajeto dessa pesquisa, é o objetivo deste texto.

Em Estado e forma política, Mascaro trabalha, na tradição de pensamento de Evguiéni Pachukanis e Joachim Hirsch, as formas sociais estruturantes do capitalismo na dinâmica da sociabilidade presente. Diferentemente de pensadores que tratam o direito e o Estado como meros instrumentos que podem ser capturados por qualquer classe e preenchidos por qualquer conteúdo, Mascaro desnuda a especificidade histórica da forma jurídica e da forma política, apresentando-as como formas de relações sociais derivadas da categoria determinante das relações capitalistas: a forma-mercadoria. Em linhas gerais, se os produtos do trabalho tomam a forma de mercadorias, então os indivíduos tomam a forma de sujeitos de direito e o Estado toma a forma política de terceiro perante a troca. Assim, Estado e direito não são acidentais ao capitalismo. Pelo contrário, mantêm relação estrutural com este modo de produção, surgindo nele e encerrando-se nos seus estritos horizontes[1].

No entanto, o processo de materialização das formas política e jurídica não se dá de modo necessariamente funcional ao da reprodução das relações capitalistas. Historicamente, as formas sociais capitalistas encontram instituições sociais dos modos de produção passados e as aproveitam, transformam e adequam como podem[2]. Além disso, a condensação das formas em instituições políticas é altamente contraditória por ser atravessada pelas lutas de classes, grupos e frações de classe. É por isso que, em determinadas situações históricas, as instituições podem apresentar configurações disfuncionais ao processo de valorização do valor. São essas as contradições que, somadas aos limites na dinâmica do capital impostos por sua própria lei de queda tendencial da taxa de lucro, podem gerar rupturas a partir de crises estruturais e, com isso, colocar em risco a própria reprodução geral da sociabilidade capitalista. Como engrenagens, as formas sociais se engatam, mas o seu próprio movimento e a pressão que recebem de todos os lados podem desacoplá-las e pôr todo o maquinário em xeque.

Em Crise e golpe, Mascaro utiliza todo o arsenal teórico apresentado na obra anterior para analisar a crise brasileira que ensejou o golpe sintetizado na forma do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A crise brasileira, acirrada a partir de 2013, é apresentada em alinhamento à crise estrutural do capitalismo mundial, eclodida em 2008. A partir dos termos médios propostos pelas escolas francesas da regulação[3], a crise é compreendida, fundamentalmente, como crise do modo de regulação e do regime de acumulação do estágio pós-fordista, amplamente conhecido como neoliberal[4].

No caso brasileiro, a crise estrutural do capitalismo apresentou contornos específicos. Houve a determinação econômica da crise[5] – disputas por lucros entre as frações de classe dos capitais nacional e industrial de um lado, e internacional, financeiro e do agronegócio do outro – e a sobredeterminação jurídica da crise[6] – as construções ideológicas que, encarnadas nos agentes operadores do direito, puseram o golpe em marcha de modo comissivo ao mesmo tempo em que o legitimaram.

Por conseguinte, o golpe é compreendido como uma das possíveis consequências da crise. Mais especificamente, como uma possível via de redução das contradições de uma dada formação social por meio da adequação do conjunto de instituições aos novos processos de acumulação de capital. Em uma contribuição marxista original, Mascaro substitui a métrica legalista por um juízo “da materialidade das relações sociais, de suas forças em disputa, orientadas para a acumulação e a exploração, numa totalidade estruturada”, o que o permite identificar o golpe a uma “alteração de padrões sociais que, em última instância, repercutem ou são determinados pelas dinâmicas do capital”[7]. Apesar de frequentemente condensado no Estado, o golpe é social.

Hoje, desencadeada pelo fator relativamente contingente da pandemia, a contradição irrompe novamente. O novo coronavírus encontra, expõe e amplifica as fissuras do velho vírus do capital. Por esta linha, Mascaro desenvolve seu Crise e pandemia, assentando-se sobre três pontos que merecem destaque: o fundamento não natural da crise; a intensificação da crise como possível resposta à crise; e a provável investida do autoritarismo no caso brasileiro.

O primeiro dos pontos é apresentado logo no tópico de abertura do ensaio. A causa desta crise é da ordem do modo capitalista de produção, e não de um mero infortúnio ou de uma total casualidade da natureza. A pandemia evidencia e agrava a crise estrutural preexistente. Revela o desemprego, a falta de moradia e habitação precária, o desmonte do sistema público de saúde etc., bem como a incapacidade de superação da crise pelas mesmas instituições que se forjaram em seu seio. Mais do que uma crise da natureza, do sistema de saúde ou, ainda, do neoliberalismo, esta é a crise do próprio capitalismo.

O segundo ponto que merece especial atenção diz respeito à possível saída da crise encontrada por países do capitalismo central, como os Estados Unidos, mas também replicáveis na periferia: mais crise. Trata-se de uma tentativa de solucionar a contradição através do sacrifício de determinados setores em detrimento de outros. Nesse sentido, são perceptíveis as tendências de esgarçamento das instituições sociais, com precarização da vida e das condições de trabalho, bem como de fortalecimento do setor financeiro e das políticas intervencionistas – para a desgraça de muitos, a falência de vários e a alegria de poucos. Nas palavras de Mascaro, “a crise do capitalismo contemporâneo, agravada pela pandemia, buscará se resolver, pela dinâmica do capital e da coerção das formas, mediante seus próprios termos: liquidando os impasses internos de décadas da economia neoliberal e abrindo, por choque, novas possibilidades de acumulação”[8].

O terceiro ponto refere-se à dimensão da crise no cenário político nacional, com a hipótese de uma investida de autoritarismo. Se, no atual estágio do capitalismo, a constituição das subjetividades mantém os indivíduos atomizados, desagregados de partidos, sindicatos e grupos, então a mobilização das massas tende a ser precária. Assim, é provável que a resolução dos próximos impasses políticos decorrentes da gestão da crise pelo governo Bolsonaro se dê “de cima para baixo”, pelo setor militar, reiterando as configurações políticas autoritárias como regra da formação social brasileira.

Mas o jogo não está perdido, pois há esperança na luta. De um lado, a crise econômica e a pandemia expõem as falhas objetivas deste modo de produção e distribuição dos produtos do trabalho – a começar por comida, respiradores, álcool gel e máscaras. Do outro, mudanças de hábitos globais dão amostras de que um planeta diferente é possível, apontando os limites e as fissuras nas formas de subjetividade. A partir do encontro dessas condições objetivas e subjetivas, o manifesto de Mascaro expõe os termos nos quais é possível pensar e fazer a transformação. E, por isso, ele é necessário.


Notas:

[1] MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, passim.

[2] Ibid., p. 31.

[3] Ibid., p. 112.

[4] MASCARO, Alysson Leandro. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 24-25.

[5] Ibid. p. 24-50.

[6] Ibid. p. 50-64.

[7] Ibid., p. 71.

[8]MASCARO, Alysson Leandro. Crise e pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020, l. 159 (versão kindle).


* Thais Hoshika é mestranda no programa de Direito, na área de concentração de Filosofia e Teoria Geral do Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Integrante do Grupo de Pesquisa “Crítica do Direito e Subjetividade Jurídica”, coordenado pelo Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro.

* Romulo Cassi Soares de Melo é mestrando no programa de Direito, na área de concentração de Filosofia e Teoria Geral do Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Centro Universitário Internacional (Uninter) em parceria com o Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Integrante do Grupo de Pesquisa “Crítica do Direito e Subjetividade Jurídica”, coordenado pelo Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro.


 

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1 comentário em “Estado, crise e pandemia: Sobre o necessário manifesto de Mascaro e suas fundamentações”

  1. Excelente texto! Claro, objetivo e didático, além de crítico. Parabéns aos autores pela síntese do pensamento do Professor Alysson Mascaro!

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