Um comunista em diálogo com os religiosos

Por Diogo Fagundes

 

“Somente um desenvolvimento da filosofia pode nos explicar porque a causa comunista é justa, porque devemos agir do jeito que agimos, porque a realidade das nossas ações não é algo absurda e ilusória. Somente uma discussão envolvendo conceitos como ser, verdade e sujeito poderia dar conta de abarcar a explicação da nossa vida.

 Quando um marxista mais praticista e menos preocupado com discussões filosóficas diz que age como age por causa da “ciência” ele está falando uma grande bobagem. As razões em última instância são sempre filosóficas. A diferença está na sua reflexão mais ou menos consciente e sistematizada sobre elas.”


Eu venho percebendo que boa parte das pessoas de outras orientações políticas com quem mais tenho conversas produtivas e que mais respeito pela sua honestidade intelectual e coerência são pessoas religiosas muito sérias nas suas crenças.

Não falo de fundamentalistas ou dogmáticos, messiânicos bolsonaristas, católicos ultramontanos ou coisa do gênero, mas pessoas liberais, mais progressistas ou mais conservadoras, que possuem uma relação com a vida e com a consciência baseada na fé, extraindo todas as consequências práticas deste fato.

Hoje consigo compreender o que materialistas ateus como Alain Badiou ou Slavoj Zizek foram enxergar de importante na religião.

O primeiro até possui um livro dedicado a estudar a subjetividade de São Paulo — que ele ilustra como exemplo de fidelidade militante a alguma verdade, o que é essencial para a filosofia do francês — e já chegou até a fazer comparações da história das cisões religiosas (gnosticismo, arianismo, etc.) com a ideia de desvios direitistas ou esquerdistas em relação a um centro da “linha justa” da tradição comunista.

O segundo vive falando da necessidade de recuperar o legado universalista do cristianismo e de paradoxalmente defender um ateísmo cristão. Há todo um interesse crescente de teólogos na filosofia destes dois autores por conta destas constantes referências.

O tema do cristianismo, principalmente daquele vivido nas primeiras comunidades cristãs, é algo que também despertou fortemente o interesse de Engels e de Kautsky, que chegaram até a escrever trabalhos historiográficos sobre o assunto.

Mas por quê? Porque há homologias de valores e comportamento entre quem vive uma vida dedicada a uma causa política igualitária (o comunismo) e alguém que acredita que deve-se viver uma vida dedicada a uma fé que nos transcende.

Para começo de conversa, ambos acreditam que há algo maior que atravessa nossas vidas e que gera um compromisso de engajamento subjetivo profundo, transversalmente aos nossos interesses materiais imediatos e nossos prazeres mundanos. Dizendo numa forma brutalmente esquemática, exigem uma postura subjetiva em ruptura com a forma como o mundo é regido.

Ambos exigem vidas condicionadas a uma causa universal que pode interessar genericamente a qualquer um em qualquer lugar no mundo. É a noção do Badiou de “genérico”, indispensável ao seu conceito de verdade. Para o comunista e filósofo, a verdade (ou o que o Platão chamava de Bem) exige não só o universalismo e a igualdade, como também o desinteresse: é algo gratuito, que não pode ser convertido em mercadoria, dinheiro ou interesse próprio, mas que deve conduzir nossas vidas.

Pense nos exemplos da maioria dos comunistas famosos, incluindo Marx, Engels, Lenin, Mao, etc. Todos poderiam ter uma vida confortável, mas abdicaram disto por uma causa maior que não interessava às suas carreiras profissionais ou interesses familiares. Muitos passaram por privações terríveis em nome desta causa. Um exemplo deste comportamento comunista é o Fidel Castro fazendo reforma agrária com as terras de sua própria família após a revolução cubana.

Da mesma forma, cristãos sinceros têm de ser desinteressados e praticar sua fé sem esperar recompensas. O cristão que age na base do cálculo utilitário, achando que isto lhe trará benefícios após a morte, não é um verdadeiro cristão. Isto fica muito claro através da leitura de São Paulo.

Esta importância do desinteresse em nome de uma verdade genérica e universal é o que me faz ter dificuldade em considerar empresários que defendem ideias que lhes são úteis (ex: medidas liberais para favorecimento dos negócios) ou coisas do tipo, empreendedores anarcocapitalistas ou “libertarians” e semelhantes. É o que me faz ter um rechaço instintivo a coisas como Ayn Rand tão forte quanto tenho com o nazismo. Afinal de contas, o que é verdadeiro e justo tem de valer para todos e não pode ser baseado em interesses particulares.

É por isto que eu também tenho dificuldade com militantes de movimentos sociais que só pensam no que sua causa poderá lhe trazer de benéfico — como uma feminista que não conecta sua luta a algo maior — ou com o sindicalismo quando se torna puramente corporativista. Um exemplo de interesse econômico de uma luta social desviando os compromissos comunistas seria o caso da “aristocracia operária” presente nos países de capitalismo desenvolvido, que tinha interesse na manutenção do colonialismo imperial ou mesmo em guerras de conquista; fenômeno este que Lenin identificou como a causa da degeneração da social-demoracia européia.

Mas a ideia do comunismo não significa adequação a um interesse particular, o do proletariado? A questão é que para Marx o proletariado não é definido só de forma econômico-social mas é também um conceito filosófico: o interesse particular do proletariado é a causa universal da libertação das classes sociais, o que implica que a “missão histórica”, para dizer em termos imprecisos, do proletariado pode servir a todo e qualquer indivíduo, não apenas a esta classe social.

Ademais, o compromisso militante de ambos, religiosos e comunistas, exige uma postura de dedicação e compromisso que tem consequências morais muito sérias, do ponto de vista da conduta pessoal nos estudos e na vida prática. Pense nos militantes que viram madrugadas em reuniões, gastam horas com tarefas, se dedicam de forma voluntária e gratuita a vários compromissos, coisas que soam esquisitas para pessoas mais bem adaptadas ao modo como funciona o mundo, baseado na lógica do dinheiro e da satisfação pessoal em primeiro plano.

Um bom comunista, por exemplo, é, como um bom cristão, alguém estudioso e interessado em fazer suas ideias corresponderem às condutas existenciais da sua vida. Deve haver um vínculo indissolúvel entre consciência e o cotidiano prático.

Estas ideias, para ambos, valem mais do que sua própria vida. É por enfatizar este aspecto moral que eu acho Mao um comunista tão interessante. Ele tem frases do tipo “sem estudo, sem direito à fala”, vários conselhos de comportamento que entram numa seara ética que é típica da filosofia clássica, com a qual o cristianismo também dialogou: o que é uma vida verdadeira? Qual é a vida que vale a pena ser vivida? Essa discussão mais subjetiva, que talvez alguns marxistas mais tradicionais considerem idealismo voluntarista, também pode ser encontrada em Ho Chi Minh, Che Guevara, líderes de guerrilhas anti-coloniais na África como Amilcar Cabral e Samora Machel. Claro, quem vive na guerrilha tem de necessariamente passar por questionamentos éticos do típico, até porque colocam sua causa como um compromisso de vida ou morte.

Em textos como “Contra o liberalismo” do Mao você encontra coisas interessantíssimas e surpreendentes. Para ele, o liberalismo não é principalmente uma doutrina econômica ou política mas envolve aspectos da conduta existencial dentro do coletivo: colocar sua vida pessoal acima das massas, evitar a crítica franca e aberta com receio de não agradar ao companheiro  e falar mal apenas pelas costas, ter um comportamento desleixado para com o erro, a arrogância de achar que as pessoas comuns não podem te criticar porque você alcançou um cargo importante, etc. Para ele, o que ele chama de liberalismo é uma espécie de vício de espírito que te deixa mais mole e passivo, mais individualista e menos corajoso e resoluto, mais egoísta e menos preocupado com o destino coletivo dos assuntos humanos.

Estas prescrições comportamentais entram em diálogo não só com autores, inclusive reacionários, que enxergam o liberalismo como uma fraqueza espiritual da modernidade burguesa (ex: Carl Schmitt) mas também com a própria conduta ideal do cristão e sua relação com as pessoas. Há um estudo interessantíssimo de um estudioso da esquerda brasileira, Marcelo Ridenti, analisando como a Ação Popular, de origem católica, pôde se converter ao maoísmo mais militante e frenético. As afinidades eletivas são evidentes: pare para pensar nos “padres operários” franceses e compare com os maoístas e suas “grandes trocas de experiências com as massas”, o “mergulho na vida das massas como o peixe na água” e coisas do gênero.

O compromisso radical com uma causa supra-individual nos explica porque há tantos exemplos de comunistas e religiosos que foram resistentes e conseguiram segurar melhor a barra em campos de extermínio e outras situações extremas, como formas brutais de tortura. Geralmente relatos do gênero envolvem este tipo de subjetividade heróica — há aí um possível diálogo também com a tradição do teatro grego, como Antígona e Oresteia.

Aproximações do tipo fazem com que a visão de autores — geralmente conservadores, como o Eric Voegelin — que estudam a relação entre religião e política ganhem relevância. As biografias de marxistas encontram exemplos significativos: a relação do judaísmo com toda a temática da “emancipação” na Escola de Frankfurt, o messianismo judeu presente em Lukacs, Bloch e, mais abertamente, em Benjamin. Mas mesmo em Marx e Engels, penso que um estudo tanto do judaísmo quanto do protestantismo alemão ajudaria a nos entender um bocado de onde eles tiraram esse compromisso inflexível com a revolução e com a igualdade.

Não dá pra ignorar, porém, que esta visão de que a vida verdadeira atende a anseios universais que servem a todos os seres humanos é algo que pode levar à completa falta de preocupação com a saúde e à satisfação individual, a delírios de grandeza, à dedicação a compromissos que, na verdade, são impossíveis, ao desgaste físico e emocional, ao auto-sacrifício que gera tristeza, amargura e endurecimento.

No limite, o amor à humanidade no sentido genérico e excessivamente abstrato pode levar paradoxalmente à desumanização na relação com pessoas próximas — como bem notou o conservador perspicaz Edmund Burke. Pense nos militantes que amam tanto a ideia de se dedicar à igualdade e a bandeiras coletivas que perdem a sensibilidade e a dedicação para as pessoas concretas, sensíveis e, em tese, queridas. Podemos nos tornar um tanto fanáticos, obsessivos, dogmáticos e… chatos, profundamente chatos. Falemos sério: não tem muito militante chato? Por isso o contato com a arte, o amor, o conhecimento das ciências e outras práticas que não façam a política nos engolir por inteiro.

Essas preocupações, tipicamente conservadoras, são de grande importância para evitar os excessos da vida militante. Imagino que também façam parte das reflexões, preocupações e desafios colocados à vida prática de um cristão sério, principalmente na relação com as pessoas que não são do seu grupo, que estão fora do clube dos “convertidos”, e a compatibilização de militância cristã e a vida em sociedade.

Todas estas questões subjetivas, com suas implicações éticas, me fez acreditar que, ao contrário do que eu pensava em minha fase mais anti-religiosa, o diálogo com as tradições religiosas traz questionamentos e reflexões muito importantes para um comunista. Também me fizeram ter convicção de que, ao contrário do que já achei, este compromisso existencial radical não tem como fugir da filosofia.

No passado, por uma influência de uma leitura que fiz ainda muito jovem da Ideologia Alemã, talvez sem bagagem o suficiente para absorver todas as implicações e todo o subtexto, pensava que ser materialista era quase como ser um anti-filósofo. Afinal de contas, estes só tinham até então interpretado o mundo e a tarefa agora envolvia mudá-lo, como diz a famosa tese 11 das teses sobre Feuerbach. Também achava que materialismo era uma espécie de positivismo empirista: só a certeza sensível da ciência histórica do marxismo, determinada pela economia, tinha valor cognitivo e heurístico.

O meu entendimento hoje é completamente diverso: somente um desenvolvimento da filosofia pode nos explicar porque a causa comunista é justa, porque devemos agir do jeito que agimos, porque a realidade das nossas ações não é algo absurda e ilusória. Somente uma discussão envolvendo conceitos como ser, verdade e sujeito poderia dar conta de abarcar a explicação da nossa vida. Quando um marxista mais praticista e menos preocupado com discussões filosóficas diz que age como age por causa da “ciência” ele está falando uma grande bobagem. As razões em última instância são sempre filosóficas. A diferença está na sua reflexão mais ou menos consciente e sistematizada sobre elas.

Mas esta filosofia não pode mais ser aquele velho materialismo dialético soviético, que ficou mais famoso em sua brutal simplicidade e sistematicidade pelos textos de Stalin, mas que já estava em desenvolvimento antes pois era uma herança do marxismo da II Internacional de Kautsky e Plekhanov. Ela era uma filosofia que também abarcava o ser, o sujeito e a verdade, mas num sistema determinista e economicista, nos dizendo que somos instrumentos de leis econômicas da História, esta última contendo um telos inexorável. Esta visão, que se encaixa perfeitamente na figura clínica do fetichista encontrado na estrutura da perversão para a psicanálise, explica boa parte dos erros e limitações do socialismo real ou do chamado stalinismo.

Esta filosofia precisa explicar nossas ações através da ideia de fidelidade, militância, Ideia, universalismo, igualdade, que soam subjetivistas demais para um marxista mais rígido. É por isto que considero fundamental a obra do Alain Badiou, bem como estas discussões em diálogo com a religião.

Mesmo que provavelmente compartilhemos de posições muito diversas nos principais conflitos da História, a passada e a vindoura, tenho profundo respeito e admiração pelos colegas que vivem intensamente seu cristianismo (acredito que valha para o islamismo e outras tradições, mas não tenho contato então não posso afirmar categoricamente) e praticam o Evangelho, tentando extrair decorrências práticas de toda esta bagagem para a sua relação com o mundo.

É semelhante àquela afeição, existente na ética antiga da guerra, entre generais de campos opostos que se respeitavam. Ou àquele que levou o reacionário Estadão a escrever um editorial reverencial ao Prestes quando ele morreu, em uma declaração aberta de admiração pela pessoa incorruptível, obstinada e admirável que era.

De alguma forma, há semelhanças entre eu, este comuna convicto, e meus amigos religiosos refratários à minha visão política; semelhanças estas que eu não consigo encontrar com mais nenhum outro grupo de pessoas.


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1 comentário em “Um comunista em diálogo com os religiosos”

  1. Excelente e oportuna provocação! Os dias atuais pedem reflexões dessa lavra para a compreendernos a quais tarefas devemos nos lançar doravante.

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