Os velhos novos problemas da união europeia no gerenciamento da crise do coronavírus

Por Kommunistische Organisation, traduzido por Raul Floriano

Em algumas poucas semanas, desde o início da pandemia do Covid-19 e de sua consequente crise econômica, o caráter fundamental da União Europeia emergiu como havia tempo que não fazia. A conversa sobre “solidariedade europeia” –  que na realidade sempre foi uma frase vazia de propaganda para consagrar esta confederação de Estados com bênçãos mais nobres – revelou, mais uma vez, toda a medida de seu absurdo diante do comportamento de alguns Estados.


Na Itália e na Espanha as pilhas de corpos só aumentam. Seus sistemas capitalistas de saúde tornaram-se tão sobrecarregados que obrigou os funcionários de saúde à atroz escolha entre quem seria tratado e quem seria condenado à morte. Pedidos de ajuda à União Europeia foram todos rejeitados pela Alemanha e por outros países. O governo alemão segue essa mesma linha quando se pergunta se a União Europeia deveria conceder ajuda financeira aos países economicamente mais atingidos pela crise. O capital alemão e seus representantes políticos, o governo em Berlim, rejeitaram também o pedido de apoio implorado por Espanha e Itália.

Em uma videoconferência dos Ministros de Finanças da UE, em 24/03, nove países exigiram os chamados “Corona-Bonds”, entre eles França, Bélgica, Grécia, Espanha e Itália. Com esses instrumentos os países mais afetados, sobretudo Espanha e Itália, receberiam um alívio financeiro: por meio da emissão conjunta de títulos soberanos de Estados da UE, os juros que estes países cada vez mais endividados têm que pagar seriam pressionados para baixo (ver Box: Empréstimos Estatais & Empréstimos Comunitários Eurobonds). O Comissário da UE para o Câmbio, o italiano Paolo Gentiloni, manifestou-se também favoravelmente a essa alternativa[1]. Já o Ministro da Economia alemão, Peter Altmaier, rejeitou imediatamente a proposta e descreveu-a como um “debate fantasmático”. A proposta de um amplo programa de investimento, um “novo plano Marshall”, como nomeou o primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez, também foi rejeitada por Altmaier[2]. O Conselho Econômico da CDU, partido do governo, apoiou a posição do Ministro da Economia: “Não se ajuda a ninguém na Europa, caso a crise do coronavírus seja mal gerenciada no sentido de estabelecer um sistema de responsabilidade comunitária”.

Mesmo na Alemanha, até nas fileiras de alto-falantes da classe dominante, há opiniões em sentido contrário: como Peter Bofinger (ex-membro do Conselho de Especialistas em Economia) e Felbermayr (diretor do Instituto de Economia Internacional), que defendem, com ressalvas, os empréstimos comunitários. Michael Hüther, diretor do Instituto de Economia Alemão, também vê assim: “Por outro lado, os países que já vão muito, muito mal – e que agora nada podem fazer, foram pegos de maneira pesada já em uma primeira fase de contaminação pelo vírus – vão se perguntar quem os pode ajudar. E, ao fim, quando apenas os chineses e, talvez, os russos vierem ao seu socorro, então a dissolução da UE será inevitável”[3]. Parte das classes dominantes alemãs começa a sentir seus interesses ameaçados e passa a estar pronta para medidas que, na própria Alemanha, representariam uma grande quebra de tabu, pois temem um grande crescimento de influência de seus rivais geopolíticos, a Rússia e a China.

Uma terceira exigência da Itália e da Espanha também foi recebida negativamente na Alemanha, qual seja, a concessão de créditos, sem impor condições, para os países mais afetados pela crise por meio do Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira (ver box: “Rede de Segurança Financeira Europeia: MEEF e MEEF). Na última crise, créditos do MEEF foram concedidos só mediante o preenchimento de algumas condições, que constituíam, em essência, massivos ataques ao padrão de vida do povo. O Conselho de Economia da CDU comentou da seguinte maneira: “Se um país da UE entrar em dificuldade, que ele use o MEEF com suas claras condições”, as quais não se devem afastar “nem sob a desculpa (!) da pior crise da última década”[4].

Alguém poderia até ficar sem palavras diante do cinismo frio e desdenhoso com que a classe capitalista alemã se nega, mesmo diante de milhares de mortes, a comprometer seus interesses, nem que seja em milímetros. Mas quem olha um pouco para trás e vê a história da União Europeia logo se dá conta: esse conflitos na UE e esse posicionamento do governo alemão, não só em relação ao Sars-Cov-2, é tudo menos novo. Essa política já é implementada há décadas. Desde os anos 1980, integração europeia colocava uma questão principal à classe capitalista alemã: como se poderia implementar uma moeda única que garantisse vantagens ao capital alemão com o fim das variações cambiais, mas, por outro lado, também evitasse que outros Estados pudessem arruinar a estabilidade da nova moeda. Pois a introdução do euro representava, para a França e para os países do Sul da Europa, o acesso a uma moeda estável com menor inflação para, assim, poder contrair dívidas com condições substancialmente mais favoráveis – o que poderia, por outro lado, enfraquecer a moeda. Em outras palavras, a questão para a Alemanha Ocidental era conseguir uma moeda comum que trouxesse ao capital alemão algumas vantagens, mas nenhuma desvantagem. No fim dos anos 1980 e começo dos anos 1990, uma considerável parte do capital alemão ainda estava bastante cética de que isso era alcançável com o euro, e demoraria mais um tempo até que a maioria das corporações passassem a apoiar uma nova moeda.

Do ponto de vista dos capitalistas franceses e das classes dominantes do Sul da Europa a situação se apresentava de maneira bem diversa: nos últimos anos, na Comunidade Econômica Europeia, o curso do câmbio entre as moedas havia sido fixado como forma de evitar grandes oscilações cambiais. Mas isso só possibilitava, continuamente, que a autoridade monetária da moeda mais forte, o Banco Central Alemão, ditasse a política cambial de todos os outros países. Mas o Banco Central Alemão ditava sua política monetária somente de acordo com os interesses do capital alemão, que, devido a sua forte posição internacional, podia trabalhar com menos inflação do que outros países. Com a implementação de uma moeda única e estabelecimento de um Banco Central comum que não fosse controlado por um só país, os capitalistas franceses, italianos, espanhóis e gregos esperavam estabelecer políticas monetárias mais adequadas aos seus interesses.

Além disso, a França exigia também um “governo econômico” europeu, isto é, um comitê com orçamento próprio, que deveria ser capaz de transferir os meios financeiros das economias mais fortes para as mais fracas. Assim, a França esperava receber vantagens “abaixo da linha”, o que a Alemanha, por sua vez, rejeitava. Com o Tratado de Maastricht (1993) chegou-se, então, a um compromisso que também convencia o capital alemão, já que os Estados seriam obrigados, por meio dos chamados “critérios de convergência”, a diminuir o endividamento a 60% do PIB e manter a taxa de endividamentos novos a, no máximo, 3% antes que o euro pudesse ser implementado. Essa regra foi novamente fortalecida com o Pacto de Estabilidade e Crescimento de 1997, de maneira que os critérios, agora, deveriam ser mantidos também após a introdução da nova moeda. O resultado foi bastante vantajoso para as corporações alemãs: conseguiram uma moeda comum, aceita internacionalmente, mantendo-se a baixa inflação e encerrando a variação cambial dentro da Zona do Euro.

A crise de 2008/09 que se abateu sobre os países da EU trouxe uma controversa para as classes dominantes acerca do gerenciamento da crise, que se ligava diretamente a essa questão enfrentada nas décadas anteriores. Tratava-se, novamente, da aspiração do capital francês e de seus aliados à transferência financeira das economias mais estáveis para as mais problemáticas, o que era justificado pelo argumento de que só assim a Eurozona poderia ser salva. Propunha-se a criação de um fundo comum, que disponibilizaria crédito de emergência para os países que se aproximassem da insolvência (ver box: “Rede de Segurança Financeira Europeia: FEEF e MEEF). Outro ponto de discórdia girava em torno dos “Eurobonds”: tratava-se, então, como agora com os “Coronabonds”, de negociar empréstimos por meio de dívidas emitidas conjuntamente (ver box: Empréstimos Comunitários, Eurobons). Ambas propostas geraram grande controvérsia entre os Estados europeus e suas classes dominantes: a “Rede de Segurança” foi implementada com várias restrições, enquanto a proposta de “Eurobonds” foi prontamente rejeitada pela Alemanha.

Mostrava-se, assim, que durante uma crise em que não há repartição de lucros, mas de prejuízos, as contradições entre os Estados-nacionais capitalistas e entre as classes capitalistas crescem consideravelmente. Também durante a chamada “crise europeia” não se pôde ver nada da dita “solidariedade europeia” – também naquele momento, apenas os interesses dos capitais nacionais foram decisivos para a política dos governos. Esse modelo repete-se agora de maneira mais dramática: mesmo quando se trata de vida e de morte, os Estados capitalistas não escolhem uma abordagem conjunta contra a pandemia, mas procuram, ao contrário, conseguir o que é melhor para si às custas dos outros, isto é, busca apenas o que é melhor para o seu próprio capital. Quem carrega o fardo são os trabalhadores, a maior parte da população de todos os Estados afetados.

A UE divulga até hoje, na mídia e nas escolas, o conto de fadas segundo o qual ela teria sido criada para garantir a paz na Europa e para unir os povos europeus sob o fundamento de valores comuns. Na realidade, já os primeiros passos da integração europeia eram animados por princípios exclusivamente capitalistas: tratava-se da proteção e garantia do capitalismo na Europa ocidental, da criação de uma federação contra a União Soviética e os países socialistas. A solidariedade entre os capitalistas só existe quando se unem contra a classe trabalhadora ou contra capitalistas rivais de outros países. À parte disso, eles perseguem seus próprios interesses, ora com, ora contra seus pares. Eles entram, temporariamente, em federações e uniões, mas depois as abandonam, como o faz agora a Grã-Bretanha. E em uma grave crise, como a atual, comportam-se não só como irmãos brigados, mas como uma matilha de cães selvagens que se seviciam pelo menor pedaço de carne.

Para os povos da Europa será da mais alta importância reconhecer que a União Europeia é uma união de seus inimigos, forjada apenas para aprimorar a exploração dos trabalhadores. Da União Europeia não é de se esperar nenhuma melhoria. Nós podemos, apenas, destruí-la, e colocar em seu lugar uma verdadeira federação dos povos: será aí, então, que os trabalhadores dos diversos países tomarão seu destino em suas próprias mãos e controlarão as empresas e o poder estatal: no Socialismo!

Box Empréstimos Estatais: Estados financiam seus gastos em parte por meio de suas receitas (impostos e demais receitas). Porém, normalmente, essas receitas não bastam para cobrir todas as suas necessidades financeiras. Para poder cobrir suas despesas, os Estados têm que se endividar. É o que eles fazem por meio da emissão e venda de títulos de dívidas. Quem compra esses títulos ganha o direito (i) às rendas, isto é, uma soma em dinheiro calculada como juros; e (ii) ao pagamento do valor da dívida (liquidação) em determinado momento, que pode variar. Os títulos de dívida pública podem ainda ser, assim como outros papeis de valor (e.g. ações, empréstimos privados, derivativos), revendidos no mercado financeiro. A demanda e a oferta por esses papeis do Estado determinam o valor dos rendimentos (juros) que o Estado deve pagar para se livrar da dívida. Quando o credor tem dúvidas de que o Estado pagará, no futuro, suas dívidas, ele exige juros altos como forma de compensar o risco, o que torna mais caro o financiamento dos gastos públicos por dívidas. Em uma situação em que esse financiamento se torna sempre mais caro, pode se estabelecer um círculo vicioso, levando o Estado a declarar sua insolvência (moratória).

Box Empréstimos Comunitários – Eurobonds: Os “Eurobonds”, assim como os atuais “Coronabonds”, seriam títulos de dívida emitidos conjuntamente por países-membros da Zona do Euro. Os Estados mais endividados tinham que, já a partir do fim de 2009 ou começo de 2010, pagar juros bastante altos por risco de insolvência, de modo a conseguir vender seus títulos no mercado financeiro. Como o risco dos “Eurobonds” é dividido por toda a Zona do Euro, recaindo sobre os ombros de economias fortes, como a da Alemanha ou dos Países Baixos, ele torna-se mais baixo. Dessa maneira, Estados endividados e especialmente também a França esperavam conseguir melhores condições na venda de dívidas no mercado, de forma a ser mais barato financiar seus gastos por meio de dívidas. As federações empresariais francesas também insistiram muito para que houvesse emissão de Eurobonds. Justamente porque os “Eurobonds” tornariam o capital francês atrativo, a Alemanha se opôs categoricamente a esse tipo de empréstimo: o capital alemão queria evitar a qualquer custo que outros países lucrassem com sua força econômica e prejudicassem, por seus problemas de endividamento, o euro e consequentemente a própria economia alemã. O temor da classe dominante da Alemanha é, por um lado, que o euro perca sua estabilidade por meio da emissão de dívidas comunitárias; e, por outro, que a pressão para que os Estados endividados implementem reformas diminua, isto é, temem que estes países sintam-se menos obrigados a diminuir os salários, os benefícios sociais, os orçamentos para saúde e a privatizar a economia, ações que beneficiam o capital alemão.

Box Rede de Segurança Financeira Europeia: FEEF e MEEF: No Tratado de Maastricht de 1993, no qual se criou a União Europeia, foi estabelecida, por pressão alemã, a cláusula de “no bail-out”, pela qual se proíbe que a União Europeia ou um de seus Estados seja responsável pelas dívidas de um outro país. A Alemanha lutou por ela sobretudo devido à sua economia industrializada, que permite um baixo endividamento estatal. A classe dominante alemã temia que o país acabasse tendo que carregar o fardo econômico de outros países. Na crise de 2008/09, que até ali havia sido a maior crise econômica europeia, essa regra tornou-se insustentável. Uma série de países chegou à beira da insolvência, isto é, estavam próximos a declarar moratória. Dessa maneira, as dívidas públicas de outros países que estavam em posse dos grandes bancos alemães e franceses perderiam o valor. Para evitar a moratória destes países altamente endividados, como Grécia e Portugal, foi estabelecido, em 2010, um Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) no qual alguns países poderiam fazer depósitos, disponibilizando, assim, crédito para os países em crise. O FEEF foi concebido para ser apenas temporário, tendo sido permanentemente implementado por meio do Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira (MEEF) em 2012/13. Créditos do FEEF e do MEEF eram concedidos sempre mediante a imposição de rígidas condições, isto é, com a contrapartida de profundos cortes no sistema de bem-estar social, ataques contra sindicatos, privatizações etc. Apenas sob essas condições, o governo e o capital alemão estavam dispostos a concordar com a criação desses fundos. Países como Grécia, Portugal e Irlanda tinham, primeiro, que concordar em garantir maciços programas de austeridade às custas da classe trabalhadora e de camadas populares, o que, por sua vez, também agradava aos capitalistas nesses países, pois esperavam conseguir uma duradoura realocação de capital e um enfraquecimento significativo do poder dos sindicatos.


[1] Volksblatt: EU-Gipfel berät am Donnerstag zu Corona-Krise per Videocall, 25.3.2020; Björn Finke: Was die EU-Finanzminister gegen die Corona-Krise tun wollen, Süddeutsche Zeitung 24.3.2020

[2] Interview mit Peter Altmaier im Handelsblatt, 24.3.2020

[3] Interview mit Hüther: Ein Lackmustest für europäische Solidarität“, Deutschlandfunk 28.3.2020

[4] Michael Sauga: Bloß kein Geld für Italien, Der Spiegel 24.3.2020; Julia Groth: Corona-Bonds – alte Idee, neuer Name, Capital 26.3.2020

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