A Questão Racial e a Geografia-estatística no Brasil

Por Giovani Damico

A sociedade brasileira, enquanto sociedade de histórico colonial e um presente marcado por um capitalismo maduro (e doentio), tem a sociabilidade de sua população atravessada pela questão racial e ao mesmo tempo por problemas de desigualdade intrínsecos ao capitalismo. As contradições sociais no Brasil atravessam assim condicionantes étnico-raciais, de gênero, de identidade sexual, bem como gritantes contradições de classe, que se intercruzam com as contradições socioespaciais.


Analisar a realidade social no Brasil incorre necessariamente em um esforço de observar essas diversas condicionantes locais, em consonância com a dinâmica do capitalismo mundial em sua ação imperialista. Na qual, na relação centro-periferia, somos situados enquanto elo frágil da cadeia imperialista, cabendo ao Brasil um papel submisso nas relações internacionais com as potências dominantes. Situação essa que só pode ser subvertida com uma transformação endógena em nossas relações sociais estruturantes, bem como na nossa inserção na geopolítica mundial, rompendo com o papel submisso ora mencionado e estabelecendo relações de novo tipo, enquanto nação soberana.

Uma vez estabelecido este breve preâmbulo, adentramos em nossas questões aqui centrais: como se reproduz o racismo no Brasil e no seu tecido geográfico hoje, como isso se relaciona com nossas estatísticas, a percepção da população, e como se situa o maior – ao menos enquanto potência estrato da população brasileira neste debate? Aquele estrato tipificado em nossas estatísticas como “população parda”? Tais perguntas nortearam nossa discussão doravante.

 A questão racial no Brasil em alguns atos

O racismo no Brasil possui ao mesmo tempo suas condicionantes nacionais locais e históricas, mas tal qual um fenômeno universal possui também suas determinantes que se assemelham gerais, que são observadas onde quer que ele ocorra, guardando assim como em qualquer parte do mundo capitalista caráter de fenômeno estrutural. Partiremos aqui da compreensão de Almeida (2019) que concebe a concepção de raça e racismo enquanto um fenômeno “relacional e histórico”. Almeida define assim:

Podemos dizer que o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam. (ALMEIDA, 2019, cap 2) [1]

Tal concepção vai diferenciar ainda discriminação racial de preconceito racial, sendo a primeira pautada em ações concretas ostensivas que inflijam algum tipo de dano à pessoa alvo, enquanto o segundo está associado a formação e concepção e adoção de estereótipos, que podem ou não resultar em ações concretas racializadas. O autor vai ainda complementar sua compreensão apontando as formas diretas e indiretas de discriminação, sendo todas elas em alguma medida sustentadas a partir de relações de poder.

O racismo, enquanto fenômeno histórico e atual, tem no Brasil suas diversas particularidades. O passado colonial brasileiro balizou, amoldou e reforçou paulatinamente processos de estratificação de nossa sociedade. Nas palavras de Almeida (2019): “A consequência de práticas de discriminação direta e indireta ao longo do tempo leva à estratificação social, um fenômeno intergeracional, em que o percurso de vida de todos os membros de um grupo social– o que inclui as chances de ascensão social, de reconhecimento e de sustento material – é afetado”. A “estratificação” social, ora referida, é aqui compreendida enquanto uma divisão entre classes sociais. Classes estas que compostas em cima de diversas condicionantes, sendo na nossa sociedade a condicionante racial de suma importância.

A partir da compreensão materialista-histórica, fundamentada em Marx e Engels (2007), entendemos que as sociedades são movidas a partir de suas estruturas econômicas e políticas, ambas com suas determinações e influências que atravessam a sociabilidade de todos os indivíduos em cada tempo histórico. As concepções individuais são assim elas próprias influenciadas fortemente pela ideologia, ou seja, o conjunto de ideias instrumentalizadas a partir de determinados interesses de classe. Tal noção é aqui fundamental para avançarmos na discussão acerca do racismo brasileiro e geral, enquanto fenômeno estrutural, mas também institucional e individual. Almeida (2019) desenvolve sobre as três formas de racismo e discriminação, sendo a individual aquela na esfera “privada”, que teria como “solução” medidas de conscientização individual, tal compreensão para o autor se coloca como insuficiente, sendo o aspecto institucional e estrutural determinantes na composição do fenômeno. Almeida (2019) ressalta:

Assim, a desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por causa da ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas, mas fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos.

A vinculação entre o aspecto institucional é por sua vez indissolúvel, vez que estas instituições são moldadas, edificadas, a fim de garantir determinados interesses que estão na base econômica da sociedade, suas estruturas. Para Almeida (2019): “As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos”. Uma vez estabelecidas as diferentes esferas do racismo, adentraremos um pouco mais nas condicionantes nacionais, enquanto contradições que operam conjuntamente na composição do fenômeno racial no Brasil.

As condicionantes nacionais e locais influem diretamente na sua dinâmica. Nosso histórico colonial nos traz uma questão racial com dois veios centrais: a dizimação, escravização e incorporação forçada da população indígena à sociedade colonial, e a posterior escravização em massa da população negra, trazida da África para nosso território e sua posterior incorporação tardia à sociedade do já nascente capitalismo brasileiro, no final do século XIX e início do século XX. A questão racial no Brasil coloca assim até os dias de hoje em choque as populações indígenas e seus descendentes, bem como as populações negras e afrodescendentes, com a população branca, sobretudo a classe dominante, que notadamente é majoritariamente branca de ascendência europeia.

A dinâmica racial no Brasil gerou processos históricos que foram desde dizimação das populações indígenas no início da colonização portuguesa, nos fazendo ter hoje a menor participação de populações indígenas no conjunto da população nacional de toda américa latina. Somadas a um processo eugenista que utilizou desde a “importação”  de europeus, até políticas de embranquecimento da população, que somados ao genocídio até hoje operante da população negra, segue gerando traumas históricos notórios. Ainda assim, no transcorrer da história brasileira a miscigenação se tornou um fenômeno bastante presente em nossa sociedade, o que não reduziu sua condicionante racial, e o fenômeno do racismo.

O desenvolvimento do capitalismo brasileiro, somado ao processo de regionalização do país, reforçaram matizes de uma desigualdade social gritante, onde regiões Norte e Nordeste, aquelas que em termos relativos possuem as maiores populações  negras e indígenas, se transformam paulatinamente nas regiões menos desenvolvidas, com problemas crônicos de desemprego, tanto no campo quanto na cidade. A urbanização brasileira do século XX em diante, marcada pela favelização da população negra e parda, veio para radicalizar tais divisões, o que matura até mesmo sentimentos xenofóbicos dentro de nosso território, que se misturam com o racismo.

O processo de urbanização brasileira levou à uma migração massiva de populações do Norte e Nordeste para o Sudeste brasileiro, sobretudo para o eixo Rio-São Paulo, o que reforçou uma mudança em curso na composição racial da região, somando-se ao antigo processo de expansão da escravidão no sudeste, o qual também contribuiu  para a presença da população negra na composição social da região. Assim as populações migrantes, somadas àquelas descendentes do processo colonial, passaram a compor os estratos mais precarizados do proletariado na região Sudeste, ao mesmo tempo que figuram como o estrato fundamental da classe trabalhadora que edifica o centro econômico brasileiro. Tal fenômeno levou a um crescimento considerável da população negra e “parda” do Sudeste brasileiro.

Nas outras regiões do país o racismo segue sendo uma condicionante fortíssima das relações sociais, embora com matizes diferentes. Em cidades como Salvador a composição da população, predominantemente “parda” e negra, não gerou qualquer inversão na dinâmica racial, sendo esta uma cidade radicalmente desigual, na qual a situação de classe frequentemente se associa à questão racial. Não à toa as periferias soteropolitanas são marcadas pela presença massiva da população afrodescendente, enquanto os bairros das camadas médias e da elite baiana, são de composição predominantemente branca. Seria assim, Salvador, um exemplo dos mais emblemáticos de tal questão. Salvador, a cidade brasileira comumente referida como a “mais negra fora da África”.

O racismo brasileiro gestou assim divisões sociais flagrantes em nosso país, que são em grande parte marcadas pela componente da cor da pele. Entretanto, tais relações seguem sendo ainda bastante confusas em uma série de aspectos, e nas próximas linhas buscaremos trazer algumas contribuições sobre a questão, inclusive pensando, qual o papel da população miscigenada em nossa questão racial? Qual o papel da população assim chamada parda, que engloba cada vez mais um contingente gigantesco da população brasileira?

A questão Racial e o Estado

Vimos seguindo a compreensão de Almeida que existe uma vinculação estrutural, e desta forma indissociável entre o fenômeno racial e o modo de produção capitalista. Tal vínculação estrutural significa também rebatimento nas super-estruturas, ou seja, as instituições, políticas, religiosas, educacionais, midiáticas e etc. forjadas e amoldadas para esta sociedade são elas próprias parte constitutiva de uma dinâmica que reproduz o fenômeno racial, de modo que um Estado em uma sociedade capitalista com as características como nossa sociedade, é necessariamente um Estado reprodutor do racismo enquanto fenômeno estrutural e também super-estrutural.

Marx em seus escritos sobre a questão judaica traz uma contribuição expressiva a este debate,  no qual aborda a relação entre aspectos religiosos e raciais da sociabilidade dos judeus, frente ao Estado alemão, um estado igualmente racializado, mas também amoldado sob uma lógica cristã. Entendemos que alguns paralelos importantes podem ser estabelecidos entre as duas problemáticas. Marx (2010, p. 34) aponta que: “O estado cristão só pode se relacionar com o judeu na qualidade de Estado cristão […]”, o raciocínio segue adentrando na peculiaridade da relação que o Judeu estabelece com este Estado. Mas aqui nos interessa uma premissa básica que o autor estabelece, um estado guarda de forma inerente, as condicionantes estruturais da sociedade à qual é correspondente. O Estado em uma sociedade marcada por contradições raciais, só pode se relacionar com sua população enquanto um Estado racial.

As contradições referentes à questão racial e religiosa, se relacionam de forma bastante imbricada, embora guardem suas diferenças. Mas ambas se encontram de forma bastante próxima quanto abordada a questão da emancipação. Marx (2010) se detém longamente no debate sobre a emancipação religiosa, à qual podemos aqui estender também para a questão racial. O problema da emancipação necessariamente perpassa por transformações estruturais, na base do processo que gera tais contradições. A emancipação para além de um exercício da crítica deveria perguntar também: “De que tipo de emancipação se trata? Quais são as condições que tem sua base na essência da emancipação exigida.” (MARX, 2010, p. 36). As respostas a tal questão recaem em dois tipos de emancipação a política e a humana, aqui nos interessa a primeira delas, que se relaciona diretamente com nosso “estágio atual das coisas”.

A perspectiva de emancipação é entretanto um processo de ruptura frente às estruturas e superestruturas colocadas, Marx aponta que “A emancipação política do judeu, do cristão, do homem religioso, de modo geral consiste na emancipação do Estado em relação ao judaísmo, ao cristianismo, à religião como tal.” (MARX, 2010, p. 38). Entendemos seguindo tal compreensão, que sem uma subversão integral das instituições, forjadas sob preconceitos religiosos, mas também étnico-raciais, a emancipação não pode se completar. .A emancipação política aqui mencionada remete diretamente à superação das contradições de classe, da separação radical entre interesses particulares e interesses gerais, da própria propriedade privada enquanto base de sustentação de tais conflitos (MARX, 2010, p. 42). Nos voltando para a realidade brasileira atual, tais formulações se mostram extremamente pertinentes e atuais.

A estatística oficial: Entre contribuições e embaralhamentos

Nosso órgão nacional de geografia e estatística, o IBGE, é reconhecido – ou pelo menos costumava ser – como um órgão de grande competência em produção de dados. Tendo o grosso de sua base de dados sido disponibilizada para análises públicas, que nas últimas décadas deram aos pesquisadores subsídios para avanços importantes na compreensão de nossa realidade nacional, regional e local. E embora nos períodos mais recentes tenham surgido indícios de operações escusas do Governo Federal em sua crescente escalada fascista para adulterar dados produzidos pelo IBGE, este ainda é um importantíssimo órgão para a pesquisa de nossa realidade.

O trabalho demográfico do IBGE é pautado por algumas premissas que consideramos particularmente problemáticas, às quais buscaremos pontuar expondo e discutindo alguns dados, comparando rapidamente as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. As três maiores cidades brasileiras, possuem respectivamente 11,25; 6,3 e 2,7 milhões de habitantes, segundo o censo do IBGE de 2010. A população de São Paulo compreende assim: 6,8 milhões de brancos (60,64%), 736 mil pretos (6,54%) e 3,4 milhões de pardos (30,51%). A população do Rio de Janeiro possui 3,2 milhões de brancos (53,6%), 724 mil pretos (12,3%) e 2,3 milhões de pardos (33,6%). Salvador por fim, possui 505 mil brancos (18,9%), 743 mil pretos (27,8%) e 1,38 milhão de pardos (51,7%). Apontamos aqui apenas estes três estratos que figuram como quase a totalidade das populações dessas cidades.

A estatística demográfica do IBGE para estipular a composição racial, utiliza-se da premissa da autodeclaração. Para o IBGE vale a indicação individual acerca de sua identidade étnico-racial. Tal concepção implica que a população amostrada pelos recenseadores é questionada acerca de sua identidade racial, bem como de seus familiares. Tal componente gera um primeiro problema que gostaríamos de tratar. A identificação racial, em um país marcado por uma tradição colonial, carrega necessariamente um elemento muito dificultoso, que é a própria negação de sua situação racial à qual parte expressiva da população é submetida, após séculos de humilhação e rebaixamento moral, incutidos pela ideologia dominante. O que dificulta muito uma valoração precisa a partir da autodeclaração. Para além do fato de confusões e incompreensões sobre as categorias, (preto, pardo, amarelo, branco e indígena), existem ainda as diferentes compreensões acerca dos marcadores sociais, como a composição difusa das famílias brasileiras. A própria miscigenação gera fenômenos fenotípicos, no qual na mesma família filhos de mesmo pai e mãe, por vezes acabam por ter auto-identificações distintas e até mesmo extremadas, como irmãos autodeclarados brancos e negros.

Este aspecto gera um problema conceitual e analítico grave, os dados colhidos pelo IBGE são pautados em cima de uma avaliação subjetiva, mas buscam produzir um dado objetivo. Tal prática não é de todo estranha às ciências estatísticas, porém sendo a questão racial de natureza tão complexa, a adoção apenas da autodeclaração gera uma fragilidade e imprecisão considerável no dado produzido. Tal problema se esbarra inclusive com o próprio funcionamento do racismo, que age sobretudo enquanto um fenômeno de fora para dentro, o racismo enquanto fenômeno social, não está circunscrito à esfera do indivíduo e sua percepção individual, mas sim à uma esfera social, que geram uma série de ações “institucionais, econômicas (estruturais) e também individuais”, como ressaltado por Almeida (2019) que rebaterão nos indivíduos e nas comunidades.

A problemática das estatísticas não se encerra por aí, o IBGE adota ainda um critério de aglutinação a partir do qual a população autodeclarada preta e parda, compõem a população negra. Tal elemento para nós causa ainda mais confusão conceitual. Visto que evidentemente do ponto de vista social, não existe um entendimento de que pretos e pardos possuem uma sobreposição automática, somado ao fato de que existe socialmente uma compreensão de pretos e negros enquanto sinônimos, o que é diferenciado apenas a partir de estudos e compreensões mais científicas da realidade.

Voltando a nossas cidades que tomamos como exemplo, visualizamos como Salvador desponta como a cidade com a maior população preta, embora com uma margem pequena frente à São Paulo e Rio de Janeiro ( 7 e 20 mil respectivamente), sendo de fato a cidade brasileira com maior população preta, entretanto popularmente é concebida como a cidade mais negra, o que de acordo com a lógica do IBGE estaria bastante equivocado, vez que São Paulo e Rio de Janeiro possuem respectivamente 2 e 1 milhão a mais de residentes autodeclarados negros (usando o critério do IBGE). Tal confusão embora não traga maiores prejuízos, reforça a necessidade de avanços neste debate e na própria forma de concepção e análise dos dados.

A dificultosa situação da população parda

Se o racismo é um fenômeno estrutural no Brasil, ele é também um fenômeno marcado por suas próprias contradições internas. Ou como diria Mao Zedong (2017), toda contradição principal é marcada por suas contradições internas. Dentre as contradições do racismo brasileiro chamam atenção as condicionantes espaciais e a condicionante da população miscigenada, que aqui chamamos de parda, utilizando a tipificação oficial do IBGE, embora concordemos com muitas das críticas referentes à problemática de tal conceituação. A população miscigenada no Brasil é um fato, independente da denominação que utilizemos, o que ainda é alvo de amplo debate, ao qual não pretendemos adentrar.

Aqui buscamos avaliar como a População Parda se relaciona com essas contradições. A própria relação com a estatística vai se dar de forma contraditória, vez que parte da população miscigenada tem grande dificuldade de se “autodeclarar” nos termos propostos pelo IBGE, evidentemente novamente a questão histórica tem seu peso, mas pesquisas vão apontar como esta tipificação gera muitas confusões. E parcelas consideráveis da população ao serem perguntadas de forma espontânea se qualificam como morenas, ou outras denominações. Independente de tais denominações tal estrato da população, que hoje compreende a segunda maior parcela da população brasileira (apenas atrás da população branca), e que seguindo as tendências atuais, deve se tornar maioria em uma década, é ela própria também alvo do racismo brasileiro.

A população Parda é maioria em Salvador, e figura em segundo lugar nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, hoje se somada à população negra, ultrapassa à nível nacional o total autodeclarado como branco. Como apontamos novamente, entendemos que este dado tem em si certo grau de subjetividade e imprecisão, entretanto o tomando como fato, a população parda será em breve maioria, mas tal qual a população negra ela está também no centro da questão da desigualdade social no Brasil.

A população parda vive dilemas existenciais consideráveis, as contradições sociais geram, inclusive, um sentimento de confusão que adentra a subjetividade desta população, que ora oscila buscando identificação maior com a população branca, por vezes até tentando modificar traços fenotípicos em busca de um padrão estético hegemônico tipicamente branco, mas por vezes também tem se movimentado a fim de uma proximidade maior com a identificação com a população negra, ou indígena, abraçando suas origens étnico-raciais, apesar da miscigenação.

Partindo do pressuposto já explicitado do racismo enquanto um fenômeno estrutural, social e que vem sobretudo de fora para dentro, a população parda é ela própria alvo do racismo tal qual a população negra e indígena, embora este apareça de forma matizada e conflituosa. Dentro do seio dos movimentos negros (doravante MN) existe uma questão pendente: qual o papel da população parda na luta antirracista? A população parda costumeiramente é evocada dentro das estatísticas, e compõe as narrativas do MN, ao se falar de negritude no Brasil, ao se utilizar dados, ao se criticar a violência policial, a discriminação racial no mercado de trabalho, frequentemente a população parda adentra estas críticas, e casos de racismo contra estratos desta população são também incorporados nas importantes denúncias realizadas pela luta antirracista. Entretanto no interior do MN, existe de fato uma grande dificuldade de estabelecer uma relação bem definida com a população parda, que por vezes tem sua presença questionada nos espaços da luta antirracista. Acreditamos que esta é uma questão pendente a ser resolvida e que no jogo das contradições sociais em nossa nação, apenas uma luta antirracista unificada e somada ao conjunto das lutas revolucionárias poderá ser exitosa.

Em vias de conclusão destacamos ainda como a condicionante geográfica é fundamental para a compreensão do racismo em nosso país. O tecido regional no Brasil é racializado, e historicamente as regiões mais brancas acabaram por se tornar as mais desenvolvidas, o que guarda suas relações com as políticas eugenistas, e com a própria composição das classes dominantes brasileiras. Mas para além das condicionantes regionais, o próprio tecido urbano é rasgado por contradições raciais, já mencionadas, e a própria reprodução do racismo opera de forma diferente no espaço. Notadamente em bairros povoados pelas camadas médias e abastadas, o racismo se expressa sobretudo na política de expulsão de populações negras e pardas, por vezes operadas pelos processos de “gentrificação” que conseguem afastar populações “indesejadas” de determinadas localidades. A fragmentação urbana, ou seja, o fatiamento da cidade em nichos e bolsões de determinados estratos sociais é uma outra forma de expressão deste fenômeno, visível na presença de comunidades pobres, vizinhas a condomínios luxuosos murados.

A reprodução do racismo opera assim diferentemente no tecido urbano, e nas diferentes regiões do país. Um mesmo trabalhador pode ser alvo de formas de racismo em determinado bairro, e não sofrê-las em um outro bairro. A violência policial declara abertamente em que bairros o racismo mais escancarado em sua face genocida pode aparecer, e em que bairros não deve operar, ou deve operar de formas mais sutis. A miscigenação vai também interagir com o espaço urbano de formas particulares, na qual um mesmo trabalhador pardo a depender do bairro onde viva, pode perceber e vivenciar o racismo de formas bastante diferentes, sendo até mesmo considerado branco, ou não-branco a depender de seu local de moradia e convívio.

Por fim, compreendemos que a sociedade brasileira é essencialmente complexa, e composta por contradições múltiplas, muitas delas ainda pouco compreendidas. Em síntese, entendemos que apenas com uma compreensão cada vez mais precisa e aprofundada da dinâmica do espaço, somada à dinâmica do capital, e das contradições que atravessam nossa sociedade é que poderemos finalmente ter mais clareza dos caminhos a serem percorridos para a superação definitiva da sociedade que nos oprime e perpetua violências de classe, raça, gênero, sexualidade e tantas outras. Tarefa que compete a todos aqueles engajados na revolução brasileira, rumo à sociedade sem classes e livre da exploração.


* Giovani Damico é Geógrafo e mestrando em Ciências Sociais.


Notas

[1] A publicação referenciada foi acessada em formato e-pub, o qual não possui paginação, com vistas a aproximação da página citada informamos o capitulo utilizado.


Referências

Almeida, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. (e-pub)

BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: <htthttps://sidra.ibge.gov.br/Tabela/3175#resultadops://sidra.ibge.gov.br/Tabela/3175#resultado>. Acesso em: 15/06/2020 <https://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/>

MAO, Zedong. Sobre a Contradição. In: Cinco Teses Filosóficas. Edições Nova Cultura: São Paulo, 2017.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, Karl. Sobre a Questão Judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.


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