Por Vinícius Puccinelli, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Certa vez, em um artigo para a Revista do Brasil, Graciliano Ramos escreve, analisando criticamente a obra de Machado de Assis:
“Nas homenagens que hoje tributam a Machado de Assis há com certeza, junto à admiração dos que o leram cuidadosamente, muito de respeito supersticioso, respeito devido às coisas ignoradas. Visto a distância, desumanizado, o velho mestre se torna um símbolo, uma espécie de mito nacional. Com estátuas e placas nas ruas, citado a torto e a direito, passará definitivamente à categoria dos santos e dos heróis. Os seus amigos modernos formarão dentro em pouco, não apenas grupos, desses que surgem para desenterrar alguma figura histórica, espanar-lhe o arquivo, mexer em papéis inéditos, mas uma considerável multidão desatenta e apressada que ataca ou elogia de acordo com as opiniões variáveis dos jornais [i]”
Ainda que tenha sido para um objeto em específico, em um contexto particular, o camarada Graça nos deixa um indispensável ensinamento universal. Assim, é preciso reconhecer a vivacidade que a ideia expressa nestas poucas frases tem para nós nos dias atuais. Partamos de um, relativo, consenso: vivemos em um período de derrota, em nível mundial, da classe trabalhadora. Se nosso recorte analítico for a classe trabalhadora no Brasil, por exemplo, não é preciso dedicar muito esforço para demonstrar o tamanho de nossa derrocada, que pode ser medida não somente pela triste situação, de fome, precariedade e morte em que os trabalhadores estão submetidos, mas, também, e sobretudo, pela sua diametral incapacidade organizativa para dar respostas à altura dos ataques desferidos pela classe burguesa.
Neste contexto, como na verdade deveria ser em qualquer outro, é salutar e imprescindível um olhar de nossa classe sobre si própria. Para isso, é necessário entender quais caminhos, e descaminhos, nos trouxeram até aqui, revisitando nossa história e investigando-a criticamente. Alguns, partindo de Gramsci, chamam tal movimento de um “inventário crítico”. Ou seja, submeter ao crivo da crítica todas aquelas posições que constituem os nossos lugares comuns que, enraizados em nossa classe, acolhemos sem grandes questionamentos. Chame este movimento como quiser, mas é exatamente aí que devemos levar em conta a grande contribuição das palavras de Graciliano, acima citadas.
Explico… Neste ano de 2021, comemora-se o centenário de Paulo Reglus Neves Freire. Sem dúvidas, celebrar sua vida e obra justo neste momento – em que a crise do capital se manifesta, também, na ascensão do pensamento conservador – tem uma importância política significativa para aqueles que lutam por uma educação conectada às lutas e desafios da classe que, para sobreviver, precisa vender sua força de trabalho. Porém, contrapondo-nos a 90% das iniciativas que comemoram seus cem anos – muitas delas, envolvendo intelectuais renomados do campo da educação – defenderemos aqui que celebrar o legado de Freire, não se trata de beatificar seu nome, de blindar sua obra ao escrutínio da crítica. É, antes, e pelo contrário, praticar com ele, aquilo que o velho mestre tentou perseguir em suas obras: a crítica desveladora da realidade.
Parece uma tarefa óbvia, mas se tratando de Freire podemos dizer que nem tão óbvia assim. Nos últimos anos, podemos facilmente notar, devido ao número de menções públicas em seu nome, que foi reacendida a polêmica, originada na década de 1960, em torno da figura do conhecido intelectual brasileiro que marcou profundamente o debate educacional no país e no mundo. A verdade é que desde que Freire passou a ser reconhecido nacionalmente sua imagem é motivo de controvérsias e disputas entre grupos dos mais diferentes matizes políticos.
Por um lado, setores conservadores – de forma rasteira e oportunista – se utilizam de seu nome para fazer um ataque generalizado aos grupos caracterizados à “esquerda”, ao marxismo em geral e a, uma suposta, estratégia comunista. De tudo que lemos, na maioria das vezes, não passam de comentários, com tom escolástico, dando voltas em argumentos a partir de um léxico pouco usual e, por vezes, cômico, que pela via do sensacionalismo tentam “desconstruir” Freire. Partindo do domínio da arte de falar muito sem nada dizer, rebaixam, assim, as discussões sobre um determinado fenômeno a um poço encharcado de um conservadorismo ignorante que em nada contribui ao desvelamento da realidade. Por esta razão, com estes, não devemos perder nosso tempo.
Por outro lado, grupos que fazem sua defesa – dentre estes uma grande parte situada no que se convencionou chamar de campo democrático-popular – o erguem a um patamar de santidade, lançando mão de um arsenal de frases descontextualizadas que, de forma igualmente oportunista, tornam o autor um escudo blindado à crítica para a defesa de propostas que, se ainda vivo, não temos toda certeza de que o próprio Freire as defenderia. Com estes grupos, e com a classe trabalhadora em geral, é que queremos dialogar.
Antes, é importante dizer que este texto seria somente mais um dentre inúmeros – portanto, sem sentido algum para o debate, visto que muitos já o fizeram -, se tentasse criticar ou defender Freire, a partir da tentativa de um mero enquadramento do autor como marxista, ou fenomenologista, ou pós-moderno ou etc. Mapear o universo categorial de Freire é um trabalho importante e que deve ser feito, não para simplesmente enquadrá-lo em uma seara teórica, mas para, ao estudar suas categorias, compreender os desdobramentos políticos que estas implicam à sua obra e, por sua vez, à prática daqueles que em Freire se fundamentam.
Aliás, se é possível afirmar uma característica incorrigível de nosso intelectual brasileiro é justamente a amalgama de referenciais diferentes (e, por vezes, antagônicos[ii]) que ele decanta e incorpora nas suas proposições político-pedagógicas. Não nos deteremos nesta característica por agora, mas podemos dizer que este aparente ecletismo foi um dos fatores que possibilitou a aproximação do autor a um vasto público como, ao mesmo tempo, trouxe contradições insuperáveis a sua obra[iii].
Como podemos ver, tratar do pensamento político-teórico de Freire e de como este reverberou em nossa história é uma tarefa hercúlea. Por ora, começaremos “limpando o meio de campo”. A intenção do presente texto é, portanto, explicitar como a disputa envolvendo o nome de Paulo Freire, nascida em 1960 e reacendida nos dias atuais, dificulta e praticamente inviabiliza a compreensão sobre a produção freireana e um debate consequente sobre sua obra.
Por fim, apontamos que para ser coerente com o nosso autor e – sobretudo, no que é mais importante, com nossa classe – é preciso perder o respeito supersticioso, respeito sobre às coisas ignoradas na produção político-teórica do mestre. De modo que, aqueles e aquelas que desejam honrar seu legado, necessitam, antes, rejeitar radicalmente a caracterização do pedagogo dos oprimidos como santo, herói ou mito nacional.
Para uma introdução a esta problemática, busquemos as origens históricas das caricaturas, à esquerda e à direita, que fazem de Paulo o intelectual mais amado, e odiado, que no Brasil já pode existir.
Paulo Freire comunista: a gênese de uma falsa polêmica
O primeiro escrito de fôlego pelo qual Freire passa a ser reconhecido e debatido é o seu famoso Educação como Prática da Liberdade (1965). A origem deste texto, ainda que nele o autor realize substanciais alterações, se encontra na tese elaborada por Paulo para prestar concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação na escola de belas artes de Pernambuco, defendida em 1959 como o título de Educação e Atualidade Brasileira.
Esta tese é fruto e, acima de tudo, uma síntese, no campo da educação, dos estudos de nosso autor naquela que podemos afirmar como sendo a sua primeira grande escola: o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). O ISEB, fundado em 1955 ligado ao Ministério de Educação e Cultura, reuniu em sua curta e intensa existência, intelectuais dos mais variados posicionamentos político-teóricos, formando um espectro tão amplo que abrangia desde apoiadores e militantes do integralismo, como Roland Corbisier, até comunistas como Nelson Werneck Sodré, por exemplo. A ligação momentânea entre estes diferentes e antagônicos pensadores era a questão do desenvolvimento nacional.
São diversos os referenciais que Freire mobiliza em Educação e atualidade brasileira e Educação como Prática da Liberdade. Transitando entre o existencialismo (sob forte influência de Karl Jaspers), o personalismo católico (ex. Emmanuel Mounier) e, inclusive, o liberalismo (ex. Karl Popper, Cf. nota ii), para citar apenas alguns. Dessa forma, nosso autor constrói a base do que viria a ser a síntese pedagógica, naquele período, do projeto político do nacionalismo desenvolvimentista proposto pelo ISEB.
A partir do ISEB, Freire construiu uma determinada leitura da realidade e foi a partir desta que ele realiza suas primeiras formulações pedagógicas de maior fôlego. Podemos sintetizar esta leitura da seguinte forma: o Brasil passava por intensas transformações em suas circunstâncias, isto quer dizer, um avanço na industrialização, na urbanização e nos canais de participação democrática. No entanto, estes avanços estavam desajustados à cultura de nossa herança colonial, autoritária e dependente de outros países. Era preciso, pois, ajustar circunstância e cultura, colocando o país em sua fase nacional.
A ausência de participação política era interpretada como uma herança de nossa história colonial. Essa era a “atualidade do ser nacional” que se deparava com a industrialização, urbanização e democracia, mas devido aos entraves coloniais, não tinha alcançado a “consciência autêntica” necessária pra efetivar a transição completa à “fase nacional”.
É só a partir do entendimento deste cenário que conseguimos perceber a relevância que o processo de alfabetização passa a ter para Freire. Obviamente, nunca se tratou apenas de leituras de palavras, mas de uma educação política que preparasse as massas para as novas relações de trabalho e para a participação nas instâncias democráticas, dentre elas, as eleições. Cabe destacar ainda, que o tema da alfabetização era reivindicado na maioria dos programas dos diversos partidos da época. Além da grande aceitação popular pela pauta, ela poderia mudar a correlação de forças visto que, neste período, analfabetos não podiam votar.
O método de alfabetização desenvolvido por Freire tinha tudo que as forças políticas necessitavam: era barato, rápido e podia ser facilmente elevado a nível nacional através da formação de educadores populares e novos Círculos de Cultura. Tanto que, quando das suas primeiras experiências bem sucedidas, ele foi aclamado, inclusive pela mídia hegemônica[iv]. Isto é facilmente compreensível, Freire era reconhecido como um professor, cristão e católico, que – como próprio dos pensadores do ISEB – nutria um profundo otimismo com a questão do desenvolvimento e modernização nacional.
Uma passagem em Educação e Atualidade Brasileira (1959) expressa bem esse momento:
“Neste sentido é que poderemos afirmar, […] que a nossa educação tem de apresentar uma duplicidade de planos instrumentais: o do preparo técnico com que se situará o homem nacional aptamente no processo de desenvolvimento. O da formação de disposições mentais com que adira ao desenvolvimento, aceitando, inclusive conscientemente, os traumas e as restrições decorrentes da industrialização, às vezes necessariamente apressada. Formação de disposições mentais democráticas com as quais se identifique com o clima cultural novo” (p. 18, grifo nosso).
Para Freire, a transição para a fase nacional era tão necessária quanto perigosa, pois o povo, na ânsia de participar das transformações societárias – e devido a sua inexperiência democrática – poderia cair facilmente na “fanatização” ou na “massificação” fornecida como projeto pelos sectários (de direita ou de esquerda). Nesse momento, a educação proposta por ele tem como objetivo não só formar para a participação democrática, mas, também, evitar uma ruptura revolucionária como sugeriam os “sectários de esquerda”.
É pela educação que se poderia garantir a “emersão do povo” dentro dos marcos democráticos por vias pacíficas e racionais, formando “mentalidades democráticas”. Para isso era necessário um esforço coletivo de intelectuais dispostos à fornecer as bases sobre as quais se construiria a preparação do homem brasileiro para a participação. A educação possui, então, papel preponderante na “comunicação de consciências”, fazendo – a partir do diálogo – que tanto elite quanto povo tomassem para si os desafios de um projeto autônomo e nacional de desenvolvimento.
Notemos que neste momento, além de nosso autor não ter nenhuma simpatia em relação às experiências comunistas – que na sua visão não passavam de sectários de esquerda -, um episódio em particular aprofundou as divergências de Freire com os comunistas brasileiros da época. Foi quando ele aceitou que seu método de alfabetização fosse financiado através da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), órgão imperialista que como hoje se sabe, tem como objetivo minar ameaças de rupturas e revoluções, e que naquele momento tinha uma sede no nordeste brasileiro para, entre outras coisas, monitorar a insurgência de grupos como a Liga Campesina.
Paulo Freire, se consolida nacionalmente após a experiência de Angicos[v] e seu método de alfabetização é alçado nacionalmente pelo Programa Nacional de Alfabetização do governo João Goulart. Contudo, a associação ao nome de Jango custará caro para nosso educador. Ele passa a ser perseguido pela mídia e por todas as forças apoiadoras do golpe de 1964. Atacar o Programa de alfabetização representava o ataque a uma das pautas mais populares do governo Jango e consolidado o golpe civil-militar de 1964, era somente questão de tempo, para Freire não só perder o financiamento da USAID como ser preso algumas vezes para prestar esclarecimento sobre seu método.
A despeito de seus antagonismos com os comunistas, cria-se aí a figura de Paulo Freire como um “criptocomunista encapuçado sob a forma de alfabetizador[vi]”. É preciso reiterar, neste momento Paulo Freire defendia um projeto de desenvolvimento das forças produtivas capitalistas no país que fosse orientado politicamente pela democracia participativa. Mas não só, ele tinha críticas severas, para não dizer uma completa recusa, a projetos de transformação da sociedade que visavam uma ruptura revolucionária como objetivo estratégico. Daí se justifica seu referencial em autores liberais e sua proposta pedagógica para a formação de disposições mentais que aceitassem a industrialização e a democracia sem cair, em suas palavras, nas “massificações”.
Contudo, por uma ironia da história, Freire passa a ser acusado daquilo que o próprio se propôs a criticar. A narrativa do “doutrinador comunista” tornou insustentável sua estadia no Brasil e – após uma série de ameaças e prisões – o forçou a buscar exílio. Foi, primeiramente, para Bolívia onde permaneceu pouco tempo e depois para o Chile.
Reorientação política: Superação ou adequação categorial?
No Chile, Freire passou a ter contato com um contexto político oposto ao do Brasil. Se tratava de um período de ascensão democrática e construção da Unidade Popular. Nesse cenário, Paulo tem a oportunidade de retomar os trabalhos com seu método e, mais do que isso, fazer uma adequação teórica. A síntese teórica desse movimento na vida de Freire é registrada inicialmente em Educação como prática da Liberdade, de 1965, em que – como já dissemos – o autor reescreve sua tese chamada Educação e Atualidade Brasileira, de 1959, suprimindo inúmeras citações de autores isebianos e incorporando outras correntes teóricas como Karl Popper e Frantz Fanon, por exemplo.
Porém, foi somente em uma de suas obras mais aclamadas, a Pedagogia do Oprimido, de 1968, que a síntese desse período de vida do nosso autor ganha sua forma mais acabada. A adequação teórica em relação às obras anteriores, se dá por duas principais vias: 1) ele incorpora uma série de autores que não eram inicialmente de sua predileção, como marxistas, por exemplo; e 2) toma a dialética como um argumento central de sua obra, como forma de não cair em dois tipos de desvios, o objetivismo mecanicista e o idealismo. Esta síntese Freire só pode fazer por causa da influência do contexto político recebida através do exílio.
Uma mudança interessante de notar aqui é sobre a leitura da realidade. A centralidade analítica de Freire não está mais no nacionalismo. Paulo percebeu que mesmo em países, ditos, desenvolvidos, existe uma classe oprimida. Para nosso autor então, o nacionalismo desenvolvimentista não dá mais conta de responder à realidade e ele o substitui por uma visão de classes sociais, na qual ele decanta de sua própria forma. Ou seja, não é uma análise necessariamente marxista, ainda que incorpore algumas categorias. Temos, pois, uma nova amalgama de referenciais distintos que vai conduzir Freire à caracterização da relação entre opressores e oprimidos.
A leitura crítica das categorias mobilizadas por Freire na Pedagogia do Oprimido, revela que a citação, principalmente dos autores marxistas, não se trata da apreensão de um novo universo categorial, mas, de uma adequação, no discurso, da defesa de ideias que já estavam presentes na Educação como Prática da Liberdade de 1965. À guisa de exemplo, Freire era criticado por defender um projeto “culturalista” – ou seja, projetar ações no âmbito da cultura desconsiderando a base material na qual ela se ergue. Na Pedagogia do Oprimido ele rebate tais críticas citando os escritos sobre a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung.
Uma leitura cuidadosa permite evidenciar que, na verdade, a citação de Mao serve muito mais como um argumento de autoridade para reforçar posições já defendidas antes mesmo de Freire ter abertura ao referencial marxista. Como já afirmamos, não se trata de uma apropriação categorial e um estudo sistemático do maoísmo, mas de uma adequação discursiva que pega de empréstimo o léxico de determinados autores.
Ainda que nosso autor não se aproprie radicalmente do universo categorial marxiano e marxista, é visível a sua nova posição em relação as experiências socialistas (excluindo-se a soviética). Além de citações de autores como Ernesto Guevara, Rosa Luxemburgo, Mao Tsé-Tung, Lênin e entre outros, Freire passa a reivindicar um, difuso, socialismo democrático.
Estas características que emergiram na Pedagogia do Oprimido foram suficientes para seus detratores, à direita, confirmarem sua invenção do “criptocomunista alfabetizador” e, ao mesmo tempo, à esquerda, serviu como cartão de entrada de nosso autor em vários grupos socialistas que passaram a reivindicar, mesmo com a negação do próprio autor, um Freire marxista[vii].
É verdade que, nesta confusão, o próprio autor tem suas responsabilidades. Mas, ainda que nunca tenha se furtado de defender abertamente suas posições e versar sobre temas polêmicos, como o da justa violência do oprimido, um fator é inegável: Freire, em nenhum momento, se vincula a uma estratégia que tenha por objetivo um revolucionamento da base material que só pode ser levado a cabo através de uma ruptura revolucionária.
Não por acaso, no seu retorno ao Brasil, ele veio a cumprir papéis importantes em Institutos de formação como o CAJAMAR e a Fundação Wilson Pinheiro, ambos vinculados ao Partido dos Trabalhadores. Partido no qual ele participou da fundação e pelo qual foi secretário de educação de São Paulo em 1989. Não por acaso também, em seus últimos escritos, Freire passa a reivindicar uma pós-modernidade progressista[viii].
Algumas questões ficam: a) Freire, ao reivindicar uma pós-modernidade progressista, mudou sua rota político-teórica ou esta reivindicação é o resultado no qual suas contradições já apontavam? b) como um formulador consequente de um programa de formação da classe trabalhadora, sobre qual estratégia Freire ergue suas principais formulações? c) há, de fato, uma falta de objetividade material em Freire? Ou melhor, os fundamentos mobilizados por Freire o vinculam a uma estratégia da revolução que tenha uma base material ou uma base objetiva que se movimenta a partir da concepção do ideal, portanto, da consciência?
É por estas e outras questões que o inventário de nossa própria classe precisa passar pelo legado deste indispensável autor. Sua importância não está na defesa irrestrita de suas formulações, mas no fato de que, como ninguém, Freire é a expressão – no campo da educação – dos movimentos da classe. Compreender criticamente Freire, é olhar para a nossa própria história. Nossa tarefa, pois, é honrar o legado de Freire praticando com ele, aquilo que o próprio autor tentou fazer em seu trabalho pedagógico.
Sobre aqueles que afirmam que, visto os ataques que o educador dos oprimidos recebe, este não é o momento de criticá-lo, nos parece que tal afirmação busca esquivar-se do enfrentamento da crítica contra aqueles pressupostos que estamos tão arraigados que não podemos abrir mão, mesmo que eles possam estar equivocados. É preciso dizer, mais do que nunca, justamente nos períodos de ascensão das forças conservadoras, expressão da crise do capital, que devemos pautar o avanço, e não o recuo, da crítica. E estamos falando da única forma crítica possível, aquela da qual não tememos seus resultados.
Infelizmente, pelo que podemos ver nas iniciativas de celebração de seu centenário, há pouco interesse por parte dos defensores de seu legado em responder as questões fundamentais sobre o pensamento político de Paulo Freire. Assim, continuaremos presos em um beco sem saída, onde a defesa de sua obra significará exaltá-lo ao status de divindade. Não há nada mais antagônico ao pensamento do próprio autor.
Não é possível defender o seu legado contrapondo uma versão inventada por seus detratores com outra que o ergue enquanto mito nacional. Aliás, nós sabemos os resultados desta tática: uma considerável multidão desatenta e apressada que ataca ou elogia de acordo com as opiniões variáveis dos jornais. Nesta ação, que coloca numerosas camadas de véus que encobrem a realidade sobre o tema, tanto seus detratores quanto seus defensores possuem suas responsabilidades. Para nossa classe não há outra saída, pois como afirma Freire: “precisamos da herança crítica, como o peixe necessita da água despoluída[ix]”.
[i] Graciliano Ramos, Os amigos de Machado de Assis. Revista do Brasil. 1939.
[ii] Em Educação como Prática da Liberdade de 1965, por exemplo, Freire incorpora referências que vão de Frantz Fanon (marxista, conhecido pelas lutas anticoloniais) e Karl Popper (Liberal que juntamente com Friedrich Hayek, Frank Knight, Ludwig von Mises, Milton Friedman e outros fundaram a Sociedade Mont Pèlerin). Deste último ele extrai as categorias sociedade aberta e sociedade fechada, que cumprirão um papel importante nos seus primeiros escritos.
[iii] Estamos realizando uma tese de doutorado que tratará do percurso intelectual de Freire e a relação de sua produção com os movimentos estratégicos de sua época que vai do início de 1960 até a década 1990. Na tese esta característica inabalável do autor será pormenorizadamente explicitada.
[iv]C.f: PAIVA, Vanilda. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. São Paulo: Graal, [1985] 2000.
[v]A experiência de Angicos, diz respeito à incursão de alfabetização, coordenada por Freire junto à equipe de Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade de Recife, em 1963. Realizada em Angicos, Rio Grande do Norte, ganhou notoriedade ao alfabetizar uma turma com cerca de 380 trabalhadores em 40 horas. O encerramento do projeto contou com a presença do presidente João Goulart.
[vi]Sobre como se deu essa construção da figura de Freire como sendo um comunista que formulou um método de “comunização” de alfabetizandos ver: HADDAD, Sérgio. O educador: um perfil de Paulo Freire. Todavia: São Paulo, 2019.
[vii]Diz Freire: “Me perguntaram, recentemente, num debate: Paulo, tu te definirias como sendo marxista? E eu comentava: eu lhes digo, que por respeito a Marx, eu não me defino como marxista. Um teórico que aceite um a priori da história ou na história não é marxista; […] Igualmente, se eu aceito Deus como a priori e não admito ouvir perguntas e questões sobre: como é este deus?, como ele age?, ele é homem, é mulher ou é um fluido?, ele mora aqui ou acolá?… Se eu não souber explicitar isto historicamente eu não estarei sendo marxista. […] Agora reflitam comigo, meus amigos, penso que isto (de não aceitar a priori) não significa que eu desvalorize a contribuição de Marx. Ele não é apenas moda. Justamente porque é a análise dele que me permite desmontar criticamente essa concepção neoliberal que está aí, na pós-modernidade”. Fonte: FREIRE, Paulo; NOGUEIRA, Adriano; SAVIANI, Dermeval. Educação: preparação para o século XXI. Curitiba: Cadernos pedagógicos da APP-Sindical. 1997. p. 48.
[viii] Ver: FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992.
[ix] Ver: FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992