Psicanálise e Marxismo

Por Matheus Dias Pereira (1)

Inicio o trabalho dizendo para vocês que este é um artigo político e um posicionamento político de um psicanalista . Duas asserções, uma de Lacan e outra de Marx, fundamentam meu desenvolvimento, a do primeiro: “Não existe psicanálise sem psicanalista”, e a do segundo: “Não existe comunista sem militância”. Partindo dessas duas afirmações, começo dizendo que ambas práxis só existem a partir da participação daqueles que as propõem, não existe psicanálise teórica nem socialismo teórico, ambas só existem na constante execução de suas práxis, nas quais “pesquisa e prática coincidem” como já dizia Freud em 1912 sobre própria psicanálise!

Para Zizek(2) na psicanálise e no marxismo:

“Toda a estrutura da relação entre o campo do saber e a subjetividade do cientista nele implicado difere radicalmente do que encontramos na ciência positivista contemporânea, bem como se passa nas formas tradicionais do conhecimento”

Nesse sentido temos práticas pautadas na intervenção direta com seus “objetos” de trabalho e construídas a partir do ato e não apenas da observação e da pesquisa de “laboratório”. Essa condição metodológica, tanto do marxismo quanto da psicanálise, as coloca em constante colisão com os interesses “privatistas” tanto da vida pública quanto do Estado. Dar a palavra ao sujeito e colocá-lo como ator principal e responsável de sua posição íntima diante do Outro se torna uma grande ameaça aos interesses capitalistas, seja de controle de massas, definição de padrões de conduta, homogeneização da cultura e das formas de trabalho adaptadas aos padrões da burguesia. Assim, se a psicanálise e o marxismo podem ameaçar tudo isso, temos a prova de que psicanalisar pode ser um ato de rebelião ao status quo, que por princípio deve manter as coisas como estão. Uma análise nunca é para manter as coisas como são ou estão. Pelo menos, esperamos que não seja e esse talvez seja um dos legados mais importantes de Lacan.

Nesse caminho proponho a discussão, principalmente no que tange a psicanálise no campo da atuação pública na América Latina. No momento histórico, vemos os constantes ataques aos psicanalistas que atuam no campo público, seja nas instituições públicas de saúde, assistência social, universidades públicas, produção científica financiada pelo estado, etc. Portanto, pensar na atuação do psicanalista nesses espaços sem abrir os olhos para os interesses capitalistas é fechar os olhos para a realidade. Faz-se então necessária, uma aproximação das teorias e práticas revolucionárias contra o impiedoso empuxo a capitalização da vida e do gozo das pessoas, assim é que proponho podermos pensar na aproximação entre psicanálise e marxismo.

Acredito que hoje no nosso continente é extremamente importante tanto para analistas quanto para marxistas conhecerem-se e ampliar as discussões sobre suas práticas. Não é possível um analista estar alheio às lutas de seu povo e um marxista estar alheio aos desejos, gozo e a existência do inconsciente na luta de classes.

Se Lacan, a partir de Freud, nos revelou que existe um inconsciente estruturado como uma linguagem, o que é diferente do instinto animal, Marx nos revelou que também a luta de classes não é algo natural, mas que a história marca seus comportamentos e seu destino.

É preciso ressaltar que ao longo dos anos, aconteceram muitas cismas entre esses campos, talvez seja preciso entender que a influência do pensamento pequeno burguês trouxe dificuldades e distorções, tanto para os marxistas quanto para os psicanalistas. Essa influência impediu tanto os marxistas quanto os psicanalistas de ver o caráter revolucionário de ambas as práxis, levanto dois pontos:

Primeiro: a posição de alguns marxistas, por se ligarem equivocadamente aos conceitos burgueses de sexualidade normal e tomar as descobertas de Freud enquanto “libertinagens” da classe burguesa, portanto, uma posição moralista de enquadramento das famílias a um padrão de controle necessário, não ao marxismo, mas talvez ao stalinismo. Essa posição mantém a repressão capitalista a sexualidade e aos desejos do povo e consequentemente reforça a impossibilidade de uma revolução.

Segundo: os próprios psicanalistas, por confundirem exatamente o stalinismo com o marxismo e considerarem a psicanálise uma prática neutra e apolítica, com isso, encaminhando a psicanálise para a direita e restringindo seu alcance somente ao tratamento individual burguês.

Essas posturas deixaram de lado o caráter emancipador das obras de Freud e Marx, pois se prenderam em distorções teóricas graves de ambos os campos. Tal distorção afastou psicanalistas e comunistas durante muitos anos e ainda o faz. Concepção essa que construiu muros gigantescos de preconceitos como: a psicanálise de ser cara, a psicanálise é coisa de rico, por parte de marxistas e por parte dos psicanalistas ataques ao socialismo prático acusando o de totalitário e religioso.

Na psicanálise, essas distorções em nada tem relação com o método, mas sim, com a posição política de alguns psicanalistas, sob o pretexto pseudo metodológico da necessária neutralidade política quanto às questões de seu povo, essas posições nada mais são do que a manutenção dos tais preconceitos e acentuação deles. É óbvio que quem não se posiciona politicamente diante de algo se posiciona politicamente na manutenção do que está acontecendo.

A tal “neutralidade política” do psicanalista engessou a prática da psicanálise, mantendo-a quase que estritamente em consultórios particulares como se esse dispositivo fosse o único possível para a aplicação do método freudiano, afastou os psicanalistas das questões das psicoses e principalmente de tudo que não fosse possível de ser tratado dentro de seu consultório privado.

Por outro lado também, quando a psicanálise se aproximou das práticas em espaços públicos sempre correu o risco de misturar o rigor de sua práxis com o lodo adaptativo burguês, devido tamanha distância de alguns psicanalistas da realidade política que não fosse burguesa.

Talvez nesse ponto, seja importante dizer que enquanto método de tratamento a psicanálise pode ser aplicada em qualquer espaço que propicie a existência da posição de analista e de analisante, ou seja, isso não necessariamente tem que acontecer no consultório privado. No Brasil temos algumas tentativas de psicanálise lacaniana séria fora os espaços “privados” dos consultórios, talvez possamos falar sobre elas em um outro momento.

Voltando a discussão sobre o cunho revolucionário que a própria psicanálise possui, talvez tenhamos esquecido que o próprio Freud, ao se interessar por aquilo que ninguém aparentemente queria se meter, pôde descobrir com as histéricas, a própria psicanálise. Histéricas, cujos sintomas graves revelam a repressão sexual sofrida pelas mulheres em um sistema capitalista machista e patriarcal. Se Freud naquele momento diante de tal acontecimento histórico tivesse se mantido neutro dentro do campo da medicina, teríamos a psicanálise? Talvez também tenhamos esquecido a posição política de Lacan quanto a IPA (Associação Psicanalítica Internacional) e sua consequente excomunhão, justamente por denunciar as concessões, tratados pequeno burgueses e adaptacionistas que levavam a psicanálise para uma prática conservadora egocentrista e necessária ao “controle do inconsciente” e dos analisandos.

A partir do legado de Freud e Lacan, não seria a hora de olharmos para os “sintomas populares”? Não seria a hora de nos aproximarmos mais das questões do sofrimento de nosso povo latino americano? No Brasil, por exemplo, vivemos um momento de extrema violência contra as populações mais pobres que a partir disso tem reagido e chegado aos serviços públicos apresentando sintomas clássicos como: conversões histéricas, ideias obsessivas e religiosas clássicas como a do Homem dos ratos de Freud, tentativas de suicídio, auto mutilações, etc. Sintomas constantes de uma população que sofre gigantesca opressão e exploração. Na maioria das vezes, essa população, acaba encontrando no campo público de saúde, apenas uma psiquiatria ligada aos interesses do capital, criando uma população extremamente dependente de psicotrópicos e drogas oferecidas pelo Estado.

Assim, a exploração capitalista e os interesses privativos da indústria farmacêutica e da psiquiatria burguesa formam um grande casamento contra a reação do povo diante das suas condições de vida miseráveis. Enquanto uma oprime e adoece a outra entorpece. A famosa cópula entre ciência e capitalismo que Lacan denunciou como sendo o discurso capitalista.

Afinal, onde estão os psicanalistas? Talvez ainda poucos pensem nisso, mas o capital, antes que nos aproximemos dessas questões, já tem criado formas de nos afastar delas, seja na eliminação do saber psicanalítico das contratações para servidores públicos, seja na luta do campo científico, acusando a psicanálise de falta de rigor e de ser uma prática não científica. O capitalismo já concluiu o que talvez ainda nós mesmos não tenhamos nos dado conta: metodologicamente a psicanálise aplicada em todo seu rigor e vigor faz mal a dominação e coloca em risco os interesses da ciência “vagabunda” e do próprio capital. Por isso o ímpeto adaptacionista do capitalismo de manter a psicanálise longe do povo.

Aprendemos com Lacan que se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, ele não é natural, é constituído a partir da nossa relação com o Outro e com a cultura. Assim, a falácia de que nossos desejos levam ao capitalismo é facilmente desconstruída e podemos ver, que na verdade é a realidade social com que nos deparamos que constitui nossas formas de gozo, nossos recalques, nossos desejos. Não há nada natural na psicanálise, muito menos o destino do homem adaptado ao capitalismo! Ouso dizer que inclusive, o sujeito do inconsciente resiste ao capitalismo!

Algumas práticas da psicanálise nos espaços públicos e populares, tem provado, ao contrário do que historicamente sempre se pensou sobre a prática psicanalítica: a psicanálise não precisa se integrar, como um instrumento “psicomanipulador” da burguesia para que se sustente. Essa associação a pequena burguesia inclusive pode afetar a prática, em uma adaptação contrária a estrutura do sujeito do inconsciente que é “sem qualificações prévias”. Veja o que aconteceu com a psicanálise adaptacionista nos Estados Unidos. Afirmo então, que a torpe associação da psicanálise com o liberalismo e a pequena burguesia é o que impede aos psicanalistas de transmitir a força subversiva e revolucionária das descobertas de Freud e do próprio Lacan.

Falando em revolução, voltamos ao possível encontro entre Marx e Lacan. Não seria esse encontro também perigoso para o rigor metodológico da psicanálise? É óbvio que Marx não inventou a luta de classes, mas deu um passo científico revolucionário, análogo ao de Freud, quando permitiu tornar os processos de exploração do homem que eram inconscientes em conscientes, tornou consciente os processos da luta de classes. Lacan ao retomar a psicanálise em seu rigor ético metodológico nos apresentou o caminho e nos mostra os perigos do adaptacionismo e das concessões a qualquer interesses políticos que não os da estrutura do funcionamento do inconsciente. Lacan, mesmo não sendo comunista e não sendo afeito a isso, nunca deixou de levar em conta as contribuições de Marx. Relembro de novo que sua excomunhão da IPA esteve intimamente ligada às tendências adaptativas da psicanálise de sua época e sua íntima relação com a institucionalização de discursos universitários e do mestre nas práticas psicanalíticas. Nesse sentido o que proponho não é uma associação uniformizante entre psicanálise e marxismo, mas que possamos ver o potencial emancipador que ambas práxis possuem e que podem nos permitir inclusive sustentar tanto a existência da psicanálise, quanto do marxismo.

Essa cisão de Lacan com o status quo de sua época e suas contribuições foram importantíssimas para nosso campo, pois elas de certo modo nos permitem ainda ter a psicanálise como uma práxis revolucionária. Arrisco a dizer que sem Lacan, a psicanálise não existiria mais no mundo. Seu ato político, pôde nos revelar que as pressões de classe impedem o avanço da uma práxis realmente revolucionária, pois devem ser cooptadas, neutralizadas e adaptadas. Eis aí o risco de uma prática psicanalítica não crítica a ordem burguesa, pois tal prática daria ao supereu inconsciente um forte aliado que é a censura social. Podemos concluir nesse sentido que o supereu e a burocracia são aliados importantes contra a revolução. Imaginem também, Freud hoje, em 2017, no Brasil, falando sobre sexualidade infantil? Estaria correndo o risco de ser preso!

É importante ressaltar que para a psicanálise lacaniana, assim como para a dialética revolucionária, não existe nada sagrado, nada eterno e não admite imposição alguma. Lacan e Freud sempre atacaram as formas de ilusão impostas pela burguesia, atacando assim como Marx, a constituição de falsas consciências. Para Jean-Marie Brohm (3): “Atacando deste modo as ilusões, Freud ataca também os fundamentos ideológicos da sociedade burguesa que se apoia sobre a mistificação e a falsa consciência”.

Freud assim como Lenin afirmava que o principal inimigo é o “interior”. A interiorização das proibições culturais. Quanto mais internalizamos as normas sociais, mais dóceis aos modos coercitivos estamos e ficamos. Assim, ambos encontram Marx quando este diz do papel alienante da interiorização da ideologia burguesa. Ao interiorizar os ideais culturais, interiorizamos os ideais da classe dominante. Para Freud (4) no livro Futuro de uma Ilusão:

“Essa identificação das classes oprimidas com as classes que as domina e explora é, contudo, apenas uma parte de um todo maior. Isso porque, por outro lado, as classes oprimidas podem estar emocionalmente ligadas a seus senhores; apesar de sua hostilidade para com eles, podem ver neles seus ideais”.

Mas diante disso tudo, qual o papel político do analista? Como podemos sair desse empuxo tendencioso a nos transformarmos em mais uma engrenagem da máquina do capitalismo, transformando a psicanálise em uma religião que serve ao capital?

Para isso é preciso de Lacan (5), é aí que ele é mais rebelde do que Freud, pois nos alerta sobre a posição política do analista na sociedade dizendo: “Já o analista é coisa completamente diferente. Ele está num momento de muda. Durante um pequeno instante, pôde-se perceber que se tratava apenas da intrusão do real. O analista permanece aí. Está aí como sintoma. Só pode durar aí a título de sintoma…”. Nesse sentido e na concepção lacano-marxista de sintoma, devemos resistir como aquilo que extrapola a máquina do capital, não se encaixa e não se adequa e é produzido justamente no momento em que algo falha e que não dá certo, como causa de desejo. É nessa via que Lacan considera Marx o inventor do sintoma. Por isso nós psicanalistas “estando aí como sintoma”, devemos nos ocupar de nos aproximarmos daquilo que “não funciona” na sociedade, daquilo que resiste e faz sintoma, “das histéricas e dos psicóticos de nosso tempo”, principalmente daqueles principais afetados pela massificação do capitalismo. Para isso devemos romper com nossas “IPAS”, nos aproximarmos as lutas populares de nosso tempo, não de modo a adaptá-los, mas para continuarmos historicamente nos ocupando do “excesso” que o capitalismo produz! Só psicanalistas criticamente orientados podem operar sobre isso, ou seja, o sujeito, seu gozo e seus sintomas! Creio que para isso nossa aproximação do marxismo seja fundamental, assim como um dia Lacan fez com a linguística, o estruturalismo, e inúmeros outros campos de saber e práxis. Talvez esse seja nosso compromisso político atual, para que “a humanidade não seja curada da psicanálise” e que por fim consigam recalcar esse sintoma!

Notas:

(1) Psicanalista. Membro do Laço Analítico / Escola de Psicanálise. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ, Diretor do CAPS Neusa Santos Souza – RJ. Militante do Partido Comunista Brasileiro-PCB. Instagram: @psicanalisepopular @matdias79.  Trabalho apresentado no Congresso Lacano Americano de Psicanálise (LacanoRio). 2017.

(2) Zizek, Slavoj. As Metástase do gozo.Relógio d’água Editores. 206. (p.240).

(3) Brohm, Jean-Marie. Psicoanálisis y revolución. Cuadernos ANAGRAMA. 1975. (p. 49)

(4) Freud, Sigmund. Futuro de uma ilusão (1927). Obras Completas de Freud. Imago.1996. (p.23)

(5) Lacan, Jacques. O Triunfo da Religião.Jorge Zahar Editor. 2005. (p.67)

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