Quando me descobri

Por Laura Sahm Shdaior 

Quando se é muito branca aqui no Brasil, te chamam de loira. “Meu cabelo era preto quando eu era criança”, eu dizia, mas nunca adiantou explicar, porque nunca foi sobre isso. Foi por conta destas características que ganhei um apelido do Rodnei: Barbie. Conheci Rodnei quando trabalhava como psicóloga em um CAPS AD onde ele fazia tratamento. Rodnei, homem negro, tímido, doce e caiçara, tinha o costume de se apresentar como mais uma vítima do crack.  Eu implicava com essa forma dele de dizer de si, queria que pudesse falar de outras coisas. Um dia ele entrou na sala onde eu evoluía alguns prontuários e pediu pra conversar. Queria pedir desculpas. “Pelo que, Rodnei?” Respirou e disse: “Por ter te julgado mal”. Falou que quando eu cheguei lá pensou: “que que essa patricinha está fazendo aqui?”, mas que ele tinha percebido que estava errado, porque “você corre por nós”. Depois disso Rodnei nunca mais me chamou de Barbie.

Se há alguns meses o que dividia a opinião nas redes sociais era o filme da Barbie, hoje o assunto que polariza o debate é muito mais sério. Israel-Palestina tornou-se pauta nacional após o ataque hediondo do Hamas, que além de antissemita, pode ser definido como um feminicídio em massa, dado o modo como particularmente as mulheres foram mortas. O massacre do povo palestino que Israel vem operando após o dia 07 de outubro escalou a situação a um cenário trágico inimaginável e por isso um cessar-fogo definitivo é mais do que urgente, conforme clama a comunidade internacional. Juntam-se ao pedido de cessar-fogo muitos judeus e israelenses que são absolutamente contrários ao governo de Netanyahu, mas um dos efeitos do antissemitismo é invisibilizar essas vozes, impedindo que se juntem à causa palestina. 

Antissemitismo nunca foi tema fácil. Mas hoje se tornou um assunto cabeludo: com a guerra ele saiu do armário. A luta contra o antissemitismo, contudo, foi capturada pela direita, que nunca foi de defender minorias, e hoje abraça a causa por motivos escusos de sua própria agenda. Por outro lado, o tema foi praticamente apagado e possui pouca reverberação na esquerda dos dias atuais, que sempre se orgulhou de lutar contra os racismos. Coisa de doido. Sabemos que a pauta do antissemitismo pode servir para mascarar a causa palestina, impedindo críticas importantes ao Estado de Israel, mas considerar que essa é a única razão para ela se expressar é silenciar um sofrimento e naturalizar uma prática discriminatória, contribuindo para sua reprodução.

Meses atrás, antes da guerra, ao conversar com uma colega preta e travesti, ouvi que sou sensível, “mas muito branca”. Nessa ocasião algumas pessoas riram, mas eu não. No particular um colega me perguntou se eu não achava que isso poderia ter a ver com a minha etnia. Demorei pra entender, mas ele se referia ao fato de eu ser judia, o que ninguém mais era ali no grupo. Brancos haviam muitos.

Mais pra frente fui conversar com outra colega sobre sua percepção enquanto militante branca e privilegiada, cisgênero e heterossexual, queria saber como ela vivia essa condição, semelhante à minha, trocar figurinha. Antes de me dar qualquer parecer, ela me interpelou: e pra você ainda é pior, porque além de tudo, você é judia. Na opinião dela, minha situação era outra porque eu teria ainda mais um privilégio: ser judia. Fiquei com aquilo, então ser judeu é um privilégio? Qual ideia de judeu estaria por trás dessa afirmação? O esteriótipo de judeu dono de banco, que domina o mundo, que é de direita, que ajuda sua própria comunidade, inimigo em potencial. E tem Israel também. Judeus e israelenses se confudem e a ideia é que todos concordam com a política de governo – o que equivale a dizer que todo brasileiro é bolsonarista.

Se eu sabia que eu era judia, dessa vez eu me descobri de um jeito diferente. Assim como Bianca Santana (2015) e tantos outros contam que se descobriram negros pelo olhar racista da sociedade, eu me redescobri judia através de olhares antissemitas.

Meu ser “muito branca” denuncia privilégios, ao mesmo tempo que revela minha origem: sou judia de família do leste europeu. Após perseguições que provocaram a diáspora judaica, minha família se instalou por lá e de lá saiu (talvez ainda mais branca) por conta da ascenção do nazismo.

Aqui no Brasil, imigrantes judeus foram lidos como brancos e serviram ao propósito de embranquecimento do país. A pele branca lhes permitiu gozar de privilégios, o que fica evidente quando Rodnei me chama de Barbie. Mas apesar da pele branca, os judeus nunca foram assimilados plenamente. Afinal, a supremacia branca que massacra e extermina pessoas negras e trans diariamente guarda o ideal ariano que também massacrou e exterminou o povo judeu.

Há muitas espécies de brancura, todas elas podem fazer um pacto com a branquitude (Bento, 2022), embora não necessariamente. Certamente uma leitura chapada dos fatos nos impede de ver as muitas nuances e particularidades que existem entre nós.

Esse relato partiu do reconhecimento de que venho de um lugar de privilégio e de que tal condição me impede de entender muitas coisas. Senti-me encorajada a dizer, no entanto, sobre aquilo que vivi, embora saiba que minha dor está longe de ser a maior do mundo. Em algum momento eu pensei em começar o texto dizendo isso, para defender que todas as dores possam ter lugar. E foi então que aconteceu: li o que havia escrito e disse a mim mesma: sensível ela, mas muito branca. Num contexto e tom bem parecido com o que escutei há meses atrás. Foi quando me descobri de novo. Sensível, sim, e privilegiada o bastante pra falar que todas as dores importam, quando a dela nunca deixou de ser pauta; sensível e privilegiada o bastante pra falar destes assuntos da maneira que falei, do lugar de quem esteve acostumada a viver sem ter seu lugar questionado.

Se o Rodnei pode me enxergar para além de uma patricinha e se eu pude enxergá-lo para além de uma vítima do crack é porque há algo de precioso na polissemia do sujeito, é porque o laço só pode se dar aí. Ao limitar o sujeito a suas marcas identitárias, percorremos o caminho que a opressão e o preconceito sempre percorreram. Nele, o outro fica reduzido a seus rótulos e a compreensão do mundo e da vida fica reduzida a esquemas binários e respostas simplistas. Para que isso não ocorra, no entanto, não se trata apenas de apontar quem sempre foi vítima como algoz das lutas identitárias. Ali onde há o sujeito que sempre se viu como universal, há também um corpo que precisa ser marcado pela raça e pela cisgeneridade. Se esse processo é desconfortável, é por ele que todos aqueles não tidos como universais já foram marcados. E, por isso, não tem como: faíscas vão rolar. Não carece, no entanto, que nos limitemos ao esquema do rosa versus azul, onde as muitas nuances do sujeito ficam apagadas. Minha sugestão é que demoremos para nomear o conflito quando ele surgir, sustentando-o ao invés de taxá-lo. Deixemos o pensamento livre, em exercício, taxar é algo pra se fazer apenas com as grandes fortunas!

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