Por Oisín Mac Giollamóir, via Red and Black Revolution, traduzido por Gata Soviética e Codinome Gelo
Nota da tradutora: Camaradas, termino de traduzir este texto com um sentimento estranho ao meu hábito de tradução. Sinto que este texto seria muito mais proveitoso para mim se tivesse este comentário feito por uma militante comunista, especialmente da práxis Marxista-Leninista. O texto que estão prestes a ler realmente demonstra uma crítica do autor (um anarquista do Movimento de Solidariedade dos Trabalhadores Irlandeses) ao Comunismo de Esquerda, bem como apresenta definições acerca do comunismo de esquerda do ponto de vista de alguém que não está inserido no movimento comunista em si. Essas questões colocam a leitura do texto num ambiente duplo: ao mesmo tempo em que se apresenta uma perspectiva positiva (muitas vezes quando se trata da corrente alemã-holandesa do comunismo de esquerda) acerca dos temas tratados, existem críticas bem acentuadas ao ponto de vista comunista (especificamente ao Bordiguista, ou à Esquerda Comunista Italiana).
Isto é, o texto não traz falsificações históricas nem realiza distorções que fariam os anarquistas se “sobressaírem” enquanto grandes libertadores da classe trabalhadora mundial. Muito pelo contrário, as opiniões do autor são fundamentadas, mesmo tendo em seu ponto final uma conclusão puxada à esquerda anarquista, se configuram como um texto honesto e muito bem feito. Não é por acaso que o escolhemos para introduzir o Comunismo de Esquerda ou a Esquerda Comunista para o leitor comum.
Ademais, convido os camaradas a dialogarem com esse texto, seus questionamentos e provocações. Certamente tenho desacordos com as conclusões tomadas pelo autor, especialmente quando se trata do programa comunista, que ele acredita não existir simplesmente porque “não existem interesses fora da luta de classes”. É como se a luta de classes fosse um bloco monolítico e ao mesmo tempo abstrato, que pode ser evocado a qualquer momento para fugir de lutas que claramente envolvem e não podem ser dissipadas da classe trabalhadora em si, mas que orbitam sob a luta de classes e devem ser pautadas pelos revolucionários por uma razão de EXISTÊNCIA DA CLASSE e de mínima dignidade para os trabalhadores que construirão o comunismo. O autor também traz recortes do pensamento marxista para tentar provar seu ponto centralizado na luta de classes de forma abstrata. Sinceramente, entendo que essa seria a opinião do autor, mas é uma opinião anacrônica que não respeita o próprio sentido marxista que tenta evocar. Ao mesmo tempo que trata o marxismo como um diamante lapidado, esquece de olhar para suas outras faces em busca de respostas diretas para os anseios da classe.
É muito importante salientar que o termo “Comunismo de Esquerda” não é um pleonasmo em si, mas deriva do texto crítico de V. I. Lenin (abordado neste texto), o mal traduzido “esquerdismo” – em inglês: left-wing communism – que acabou simplificando as auto-denominações de diversos grupos revolucionários da esquerda comunista. Isto é, antigamente esses grupos declaravam-se como “revolucionários abstencionistas” ou diversos outros nomes, mas foi a partir de Lenin que esses grupos foram colocados no “mesmo balaio”.
Portanto, a necessidade de traduzir esse texto deixou muito claro que, enquanto marxistas-leninistas, não temos que ter medo de assimilar posições defendidas historicamente pelos anarquistas e por nenhum tipo de corrente revolucionária. Devemos nos munir das ferramentas deixadas pelo marxismo-leninismo, utilizando criticamente os avanços dos outros movimentos a favor do nosso próprio avanço enquanto partido-classe. Nesse sentido, devemos usar deste texto como um exemplo a ser seguido em nossas produções, nos aprofundando mais uma vez na doutrina marxista, como aconselha Rosa Luxemburgo, de modo a tirar dela nossas armas para enfim estabelecer para a classe uma verdadeira ditadura do proletariado brasileiro, latinoamericano e mundial.
Precisamos debater para hoje, por exemplo, o especismo enquanto estratégia burguesa da dominação dos animais e perpetuação da lógica do lucro, o debate binarista de gênero enquanto forma deturpada do materialismo-histórico-dialético para colocar às margens as militantes comunistas travestis e transviadas no Brasil, a atuação problemática, defeituosa e vanguardista do movimento comunista no movimento indígena na América Latina, e muitos outros acúmulos importantes que são tratados com desdém por um conjunto influente de “militantes revolucionários”, mas que encontra enérgica atuação dos anarquistas. Se somos revolucionários, que possamos preservar os ideais de Marx, Engels e Lenin. Que façamos a revolução.
@gatasovietica
26 de dezembro de 2023
Introdução
Hoje o anarquismo está finalmente saindo da velha posição em que se mantinha como a “consciência do movimento dos trabalhadores”, a eterna crítica ao leninismo e às políticas centradas no Estado. Por muito tempo, o anarquismo ficou ao lado da classe trabalhadora contra o Partido, uma posição da qual Lenin debochou quando escreveu: “a simples apresentação da questão – ‘ditadura do partido ou ditadura da classe [1]; ditadura (partido) dos líderes, ou ditadura (partido) das massas?’ – atesta o pensamento mais inacreditável e perdidamente confuso… contrapor, de modo geral, a ditadura das massa a uma ditadura de líderes é ridiculamente absurdo e estúpido.” [2] Curiosamente, isso não foi escrito a respeito dos anarquistas, mas da posição defendida por uma tendência marxista alemã-holandesa que fazia parte da Comintern. Essa e outras tendências compreendem o que se conhece como “comunismo de esquerda”.
Há uma relação próxima e de longa data entre anarquismo e comunismo de esquerda, já que a esquerda comunista assumiu muitas das posições reivindicadas pelos anarquistas. A esquerda alemã-holandesa desenvolveu posições indistinguíveis das encontradas por muito tempo no movimento anarquista. Enquanto o anarquismo influenciou o comunismo de esquerda na prática [3], o comunismo de esquerda e as tendências marxistas próximas a ele tiveram uma grande influência teórica sobre o anarquismo, particularmente nos últimos trinta anos. Embora as teorias da esquerda comunista tenham de fato contribuído muito ao movimento e à teoria anarquista, é evidente que há nelas um número significativo de erros teóricos e táticos. Neste artigo, vou investigar o desenvolvimento dessas teorias e dar uma introdução às histórias da Revolução Alemã de 1918-1919 e do Biênio Vermelho [4] de 1919-1920, na Itália. Também tentarei destacar os problemas dessas teorias, insistindo na necessidade do desenvolvimento de um programa anarquista para a atualidade, baseado na situação presente de nossa classe, e não em princípios a-históricos.
O que é o comunismo de esquerda?
É muito difícil de se definir o que é o comunismo de esquerda. Muitas vertentes da esquerda comunista emergiram em diversos momentos no período entre 1917 e 1928. O grupo Aufheben[5] escreve que
historicamente a “ultra-esquerda” [6] diz respeito a uma série de correntes que emergiram de um dos momentos mais significativos na luta contra o capitalismo – a onda revolucionária que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. [7]
Geralmente se divide o comunismo de esquerda em duas alas: a Esquerda Alemã-Holandesa e a Esquerda Italiana. [8] Esses dois grupos não se bicavam. Gilles Dauvé, um bordiguista de origem, escreve que:
embora ambos tivessem sido atacados por Lenin no “Esquerdismo – doença infantil do comunismo”, Pannekoek considerava Bordiga um tipo estranho de leninista, e Bordiga via Pannekoek como uma mistura detestável de marxismo e anarcossindicalismo. De fato, nenhum deles se interessava realmente pelo outro, e as esquerdas comunistas “alemã” e “italiana” ignoravam-se fortemente. [9]
A Esquerda Alemã-Holandesa e a italiana foram tendências no interior da Comintern, até o momento em que romperam e passaram a criticá-la pela esquerda. Como tal, o comunismo de esquerda, ou a ultra-esquerda, define-se muitas vezes em oposição ao “esquerdismo”.
Segundo o grupo Aufheben:
o esquerdismo pode ser compreendido de acordo com as práticas em que ecoam parte da linguagem comunista, mas que de fato ainda representam o movimento da ala-esquerda do capital. [10]
Em outras palavras, o esquerdismo descreve aqueles que nominalmente se dizem comunistas, mas não o são de fato. De acordo com os comunistas de esquerda, os esquerdistas são aqueles que, a qualquer custo, apoiaram a União Soviética, participam de sindicatos ou os apoiam, participam do parlamento, apoiam os movimentos de libertação nacional e aqueles que, de qualquer forma, participam de conchavos políticos com não-comunistas. Por sua vez, os comunistas de esquerda opõem-se à participação em qualquer um desses tipos de luta ou o apoio a elas, pois essas não são lutas comunistas ou são contra a classe trabalhadora. Dessa forma, os comunistas de esquerda frequentemente se definem pela negativa, em oposição àqueles que não sustentam posições “realmente comunistas”. Eles despendem muitos esforços denunciando aqueles que não reivindicam posições absolutamente comunistas e uma oposição prática à URSS, aos sindicatos, ao parlamento, aos movimentos de libertação nacional, às coligações políticas etc.
Para compreender plenamente o comunismo de esquerda, como e por que essas posições foram adotadas, precisamos olhar para seu desenvolvimento. Com a onda revolucionária que sucedeu a revolução russa, a Alemanha e a Itália eram os dois lugares mais próximos de se ver uma revolução comunista vitoriosa; eram também onde se encontravam as duas maiores tendências do comunismo de esquerda.
A Esquerda Alemã-Holandesa
A revolução alemã de 1918-1919
Em 1918, na Alemanha, houve uma grande onda de greves selvagens que culminaram no início de uma revolução em novembro, pondo fim à Primeira Guerra Mundial. Os marinheiros amotinaram-se e conselhos de trabalhadores foram formados por todo o país. Anos antes, todos consideravam o SPD [Partido Social-Democrata da Alemanha] como o maior partido marxista revolucionário mundialmente, até que em 1914 este apoiou os movimentos a favor da guerra. O partido participou dessa revolução, apesar de se opor a ela. Dessa forma, o SPD
conseguiu ganhar a maioria dos votos no primeiro Congresso Nacional dos Conselhos de Operários e Soldados, a favor da eleição de uma assembleia constituinte e pela dissolução dos conselhos em prol do parlamento. Ao mesmo tempo, os sindicatos trabalharam de mãos dadas com os patrões para demitir os trabalhadores revolucionários e destruir as atividades de conselhos independentes nas fábricas. “Conselhos contra o parlamento e os sindicatos” tornou-se a palavra de ordem dos revolucionários. [11]
No ano seguinte, o KPD [Partido Comunista Alemão] foi fundado. Com base em suas experiências recentes, a maioria dos trabalhadores do KPD formulou uma crítica revolucionária ao ativismo parlamentar, levantando a palavra de ordem: “todo poder aos conselhos de trabalhadores!” No entanto, os líderes do partido, incluindo Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, opuseram-se a essa tese sustentando que ela seria anarquista [12]. A maioria anti-parlamentarista também se opunha aos “Sindicatos” [“Trade-Unions”], baseando-se na experiência dos sindicatos social-democratas alemães, que se opuseram ao movimento revolucionário e ativamente tentaram esmagá-lo. Nesse caso, a liderança também se opôs à maioria. Por fim, em outubro de 1919, essas divergências levaram as lideranças a expulsarem mais da metade do partido. [13]
Então esses membros expulsos formaram o KAPD [Partido Comunista dos Trabalhadores Alemães], comunista de esquerda. O KAPD rompeu com a Comintern após o Terceiro Congresso em 1921, por razões a que os anarquistas seriam bastante simpáticos. Eles acreditavam que a revolução não seria realizada por um partido político, mas que ela só poderia ser produzida pela própria classe trabalhadora organizada em suas organizações autônomas. A organização com que a KAPD cooperou foi a AAUD [14] [União Geral dos Trabalhadores Alemães]; em seu auge, essa organização tinha em torno de 300.000 trabalhadores. [15] A AAUD nasceu na revolução alemã em 1919. Jan Appel descreve sua formação:
concluímos que os sindicatos eram inúteis para os propósitos da luta revolucionária e, na conferência dos Representantes Sindicais Revolucionários [Revolutionäre Obleute], decidimos pela formação de organizações fabris revolucionárias, que seriam a base para os conselhos de trabalhadores. [16]
Comunistas de conselho
Baseados em suas experiências, os comunistas de esquerda na Alemanha criticaram os argumentos de Lenin, em seu ”Esquerdismo – doença infantil do comunismo”, primeiramente argumentando que, embora o modelo bolchevique de organização fizesse sentido na Rússia, como a Alemanha era mais desenvolvida industrialmente, necessitava-se de diferentes formas de luta proletária. [17] Eles argumentaram que, por meio da auto-organização nas fábricas, os trabalhadores lançaram as bases para a formação dos conselhos de trabalhadores, e essa era a única forma de organização adequada para a luta revolucionária da classe trabalhadora. Dessa forma, eles colocaram-se contra a primazia do partido e a atuação nos sindicatos [18] e no parlamento.
O KAPD não tinha como objetivo representar ou liderar a classe trabalhadora, mas sim esclarecê-la [19], um projeto similar à ideia avançada do grupo Dyelo Truda:
toda assistência dada às massas no campo das ideias deve estar de acordo com a ideologia do anarquismo; de outra forma ela não será uma assistência anarquista. “Assistir ideologicamente” simplesmente significa: influenciar do ponto de vista das ideias, diretamente do ponto de vista das ideias (uma liderança das ideias). [20]
No entanto, alguns comunistas de esquerda, como Otto Rühle, consideravam que mesmo isso seria demais. Eles saíram da KAPD e da AAUD, contestando o envolvimento da KAPD com a AAUD, e criaram a AAUD-E [União Geral dos Trabalhadores – Organização Unitária].
A maioria dos que reivindicam o legado da Esquerda Alemã-Holandesa, aqueles que se denominam comunistas de conselho, tendem a tomar a posição de Rühle e da AAUD-E. Por isso, eles recusam-se a formar organizações políticas. Dauvé explica a seguinte teoria:
qualquer organização revolucionária que coexista com os órgãos criados pelos próprios trabalhadores, na tentativa de elaborar de uma teoria e uma linha política coerentes, no final tentará liderar os trabalhadores. Dessa forma, revolucionários não se organizam por fora dos órgãos criados “espontaneamente” pelos trabalhadores: eles apenas repassam e fazem circular informações, estabelecendo contatos com outros revolucionários; eles nunca tentam definir uma teoria ou estratégia gerais. [21]
Pannekoek escreveu em 1936:
o velho movimento operário é organizado em partidos. A crença em partidos é o principal fator da impotência da classe trabalhadora; portanto, evitamos formar um novo partido — não porque somos poucos, mas porque um partido é uma organização que visa liderar e controlar a classe trabalhadora. Na contramão disso, sustentamos que a classe trabalhadora só pode ser vitoriosa ao atacar seus problemas de forma independente, decidindo seu próprio destino. Os trabalhadores não devem aceitar cegamente as palavras de ordem de outrem, nem de nossos próprios grupos, mas devem pensar, agir e decidir por si mesmos. Essa concepção tem fortes discordâncias com a tradição que entende o partido como o meio mais importante de educação do proletariado. Por isso muitas pessoas, mesmo repudiando os partidos socialista e comunista, resistem e se opõem a nós. Em parte, isso ocorre por causa dos seus conceitos tradicionais; quando se passa a ver a luta de classes como uma luta entre partidos, torna-se difícil concebê-la apenas como uma luta da classe trabalhadora, afinal, como uma luta de classes. [22]
Embora seja essencial compreender a luta da classe trabalhadora “apenas como a luta da classe trabalhadora”, essa ideia esconde enormes problemas teóricos e práticos. Em primeiro lugar, o que significa tomar o lado da classe em oposição ao partido? Afinal, com o que se parece a classe trabalhadora sem um partido? O que significa rejeitar partidos? Se seguirmos o entendimento de Dauvé, de que essa rejeição do partidismo é a rejeição de qualquer tentativa de se “elaborar uma teoria e uma linha política coerentes”, então nos deparamos com um problema [23]. Se qualquer tentativa de se elaborar uma teoria e uma linha política coerentes for proibida, então como pode a classe desenvolver coerentemente uma teoria e uma linha política para guiar a si mesma por uma revolução, até a vitória? Como pode a classe pensar estrategicamente, se o pensamento estratégico for banido, para que não seja opressivo ou vanguardista?
Em uma revolução, serão apresentadas diversas teorias e linhas políticas conflitantes. Afirmar o contrário é muitíssimo ingênuo. Se aqueles de nós, que acreditam que “a emancipação da classe trabalhadora deve ser atingida somente pela própria classe trabalhadora” [24], não participarmos da revolução preparados, com um programa que explique como isso pode ser atingido, essa revolução irá fracassar, como todas as revoluções de trabalhadores que a antecederam.
Foi precisamente a falta de um programa que decretou o fracasso da posição anti-Estado na Rússia e na Espanha [25].
O grupo Dyelo Truda explica o fracasso na Rússia:
caímos no hábito de atribuir a falha do movimento anarquista na Rússia em 1917-1919 à repressão estatal pelo Partido Bolchevique, o que é um erro grave. A repressão bolchevique dificultou a difusão do movimento anarquista durante a revolução, mas esse foi apenas um dos obstáculos. Em vez disso, a incompetência interna do próprio movimento anarquista foi uma das principais causas daquele fracasso, uma incompetência que emanava da vagueza e da indecisão que caracterizavam suas principais declarações políticas nos campos da organização e da tática.
O anarquismo não tinha opiniões firmes, duras e rápidas para os principais problemas da revolução social, uma opinião necessária para satisfazer as massas que carregavam a revolução. Os anarquistas reivindicavam a expropriação das fábricas, mas não tinham uma noção consistente e bem definida da nova produção e de suas estruturas. Os anarquistas defendiam o lema comunista – “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” –, mas nunca se importaram em aplicar esse princípio ao mundo real… Os anarquistas falavam muito sobre a atividade revolucionária dos próprios trabalhadores, mas eram incapazes de dirigir as massas, nem mesmo grosseiramente, para as formas que essas atividades poderiam assumir… Eles incitavam as massas a se livrar do jugo das autoridades, mas não indicavam como os ganhos da revolução poderiam ser consolidados e defendidos. Eles não tinham opiniões claras e formas de ação relativas a diversos outros problemas. Isso foi o que alienou os anarquistas das atividades das massas e os condenou à impotência social e histórica.
Mais de vinte anos de experiência e atividade revolucionária, vinte anos de esforços nas fileiras anarquistas, não resultaram em nada além de fracassos do anarquismo como movimento organizador: tudo isso nos convenceu da necessidade de uma nova organização partidária anarquista, ampla e enraizada em uma teoria, política e tática coerentes. [26]
Enquanto a Esquerda Alemã negligenciava a necessidade de um programa, denunciando todos os partidos como opressores, ou ao menos vanguardistas, a Esquerda Italiana adotava uma perspectiva diferente.
A Esquerda Italiana
Bordiga e o Biênio Vermelho [27]
A Esquerda Italiana encontrava-se em seu estágio inicial sob a tutela política de um homem: Amadeo Bordiga. Após se juntar à Federação de Juventude do PSI (Partido Socialista Italiano), Bordiga rapidamente ganhou proeminência ao se alinhar com o garoto propaganda daquela federação: Benito Mussolini. A vitalidade da Federação de Juventude foi o fator central para o crescimento do PSI: de 20.459 membros em 1912, para 47.724 em 1914. Bordiga rompeu definitivamente com Mussolini na questão do apoio à Primeira Guerra Mundial, afirmando que o apoio às guerras era uma traição aos “princípios” do marxismo. Intransigente em questões de princípio e em relação ao programa comunista, ele defendeu uma rígida análise textual de Marx. Para Bordiga,
por meio do Marxismo, compreende-se que o método delineado por Marx e tantos outros […] resulta no diagnóstico da luta de classes diária entre a burguesia e o proletariado, constituindo assim uma profecia e um programa que visa a vitória proletária [28].
Por sua ortodoxia, Bordiga colocou-se firmemente contra o revisionismo dos líderes do PSI. Ele sustentou que um novo começo, trazendo uma renovação de princípios, era necessário no partido.
Em 1918, o número de vítimas da Primeira Guerra Mundial ultrapassava 680.000 mortos e mais de um milhão de feridos. A classe trabalhadora uniu-se no PSI, conforme este se radicalizava cada vez mais. Em 1919, os números do PSI, que apenas sete anos antes totalizavam 20.459 membros, cresceu para mais de 200.000. Em 1919, conforme voltavam da guerra para suas casas, os trabalhadores encontraram-se em uma espiral de inflação e desemprego em massa, uma vez que a economia italiana lutava para ajustar-se ao fluxo de trabalhadores que retornavam.
De abril a agosto de 1919, as rebeliões populares espalharam-se. O governo tentou reprimir desesperadamente os trabalhadores insurgentes, matando trabalhadores em Milão, Florença, Imola, Taranto, Gênova e outras cidades. Em Turim, no final de agosto, novas organizações de representantes sindicais foram formadas nas fábricas da Fiat. Por sua vez, esses representantes sindicais formaram um conselho de fábrica. Esse novo tipo de organização dos trabalhadores, pelas bases, espalhou-se rapidamente nos locais de trabalho em Turim. Por meio desses conselhos de fábrica, em 31 de outubro, os trabalhadores adotaram um programa para reestruturar os sindicatos, transformando-os em organizações de democracia proletária. Esse programa afirmou que seu propósito era “colocar em curso a realização prática da sociedade comunista.” [29] Numa reunião entre 14 e 15 de dezembro, os defensores desse novo sistema de conselhos conseguiram o apoio de todo o movimento operário em Turim. Em fevereiro de 1920, cerca de 150.000 trabalhadores conseguiram organizar um novo sistema de conselhos. Em uma conferência da União Anarcosindicalista no início de 1920, a USI (União Sindical Italiana) colocou-se firmemente ao lado dessas novas organizações, agitando fortemente a favor de sua difusão também para fora de Turim. Isso levou ao crescimento da USI, de 300.000 membros em 1919, para 800.000 no auge do movimento em setembro de 1920. [30]
Em resposta a esses movimentos, no congresso de Bolonha em 1919, o PSI aprovou um programa revolucionário [31]. No mês seguinte, recebendo 1.800.000 votos com base nesse programa, tornou-se o maior partido no parlamento italiano. [32] No entanto, apesar da adoção desse programa, o PSI encontrava-se dividido com alguns membros do partido parlamentar, como Filippo Turati, opondo-se totalmente ao programa e tentando sabotá-lo ativamente. Turati afirmou que o PSI não deveria excitar “as paixões cegas e as ilusões fatais das massas”, declarando que o parlamento estava para os conselhos de trabalhadores assim como a cidade estava para uma horda de bárbaros. Esses sentimentos resultaram em um tensionamento por parte de Bordiga, para que Turati fosse expulso do partido. Antonio Gramsci atacou Turati, acusando-o de ter “o ceticismo zombeteiro da velhice”. [33] Até Serrati, o líder centrista do partido, nesta altura atacava Turati acusando a sua política de se basear numa “ilusão infantil”. Ele escreveu que
era doloroso que um deputado socialista, daqueles em quem as massas mais acreditavam, dedicasse mais obstinação e energia à luta contra o bolchevismo do que à oposição a todas as tentativas de mistificação do socialismo vindas […] da burguesia. [34]
No entanto, isso não passava de palavras ao vento de um líder do partido, e Bordiga criticou Serrati por não ter expulsado Turati. Bordiga também tensionou pelo fim do poder parlamentar do partido (isso acabaria por minar a influência de Turati), adotando uma postura abstencionista. Ele escreveu que, “enquanto a burguesia detiver em suas mãos a riqueza e o poder, as eleições nunca farão nada além de confirmar seus privilégios.” [35]
Nos primeiros quatro meses de 1920, os italianos viveram níveis elevados de lutas, cujo pico foi em Abril. Numa fábrica da Fiat em Turim, uma assembleia geral decretou greve em protesto contra a demissão de diversos líderes sindicais. Em resposta, os patrões trancaram 80.000 trabalhadores. Em Piemonte, região da Itália cuja capital é Turim, 500.000 trabalhadores envolveram-se em uma greve geral. Houve também algumas greves ao redor de Gênova, lideradas pela USI, e em Milão alguns conselhos de trabalhadores, iguais aos de Turim, emergiram sob a influência da USI. No restante do país, sindicatos sob influência anarcossindicalista, como os sindicatos ferroviários independentes e os sindicatos de trabalhadores marítimos, acabaram por apoiar os movimentos grevistas. No entanto, apesar dos apelos do movimento de Turim ao PSI e à CGL (Confederação Geral do Trabalho) – sindicato liderado pelo partido – para que a greve se estendesse por toda a Itália, o PSI e o CGL não agiram. Trabalhando fortemente através de seu jornal l’Ordine Nuovo [36], em apoio ao movimento de conselhos, Gramsci comentou amargamente sobre a liderança do PSI:
eles passaram a tagarelar contra os sovietes e os conselhos, enquanto em Piemonte e em Turim meio milhão de trabalhadores passavam fome defendendo os conselhos que já existiam. [37]
Por fim, a greve foi derrotada. Gramsci escreveu:
a classe trabalhadora de Turim foi derrotada. Uma das condições determinantes para essa derrota […] foi a estreiteza ideológica dos líderes do movimento da classe trabalhadora italiana. Em segundo plano, faltou uma coesão revolucionária entre o proletariado italiano, que não foi capaz de forjar […] uma hierarquia sindical que refletisse seus interesses e seu espírito revolucionário. [38]
Gramsci culpou a falha do movimento pela ineficácia simultânea das lideranças do PSI e da CGT, e pela inabilidade do próprio movimento em trazer à luz uma nova liderança e intelectuais orgânicos, que poderiam agir como uma nova hierarquia.
Enquanto Gramsci via os conselhos como instituições em que a ditadura do proletariado podia ser exercida, Serrati afirmava que os conselhos não poderiam ser usados para o estopim de uma ação revolucionária [39], argumentando que “a ditadura do proletariado é a ditadura consciente do Partido Socialista.” [40] Nesse ponto, Bordiga ficou firmemente ao lado de Serrati. Ele argumentou que, ao enfatizar exclusivamente a esfera econômica e o estímulo da consciência, Gramsci esqueceu que o Estado não poderia simplesmente sumir numa revolução. [41] Bordiga estava certo nesse caso, de fato, foi isso que os anarquistas aprenderam tão tragicamente na Espanha. Ele escreveu:
corre o boato de que os conselhos de fábrica, onde estes existiram, funcionaram assumindo a gestão das oficinas, em continuidade aos seus trabalhos. Não gostaríamos que as massas trabalhadoras aderissem à ideia de que a criação de conselhos seria tudo tudo o que eles precisariam fazer para assumir o controle das fábricas e se livrar dos capitalistas. Essa seria de fato uma ilusão perigosa. A fábrica será conquistada pela classe trabalhadora – e não apenas pela mão-de-obra empregada nela, que seria um tanto fraca e não-comunista – só depois de a classe trabalhadora como um todo ter tomado o poder político. A menos que o tenha feito, a Guarda Real, a polícia militar, etc. – em outras palavras, o mecanismo de força e opressão que a burguesia tem à sua disposição, seu aparelho de poder político – cuidará para que todas as ilusões sejam dissipadas.(42)
Aqui Bordiga levanta dois problemas importantes. Em primeiro lugar, como notado, até o momento em que a classe revolucionária tomar o poder, arrancando todo o poder das mãos da burguesia, esta irá usar do Estado para esmagar a classe trabalhadora, mesmo tendo que esperar quase um ano, como fizeram na Espanha. Em segundo lugar, o comunismo não é apenas a expropriação do controle da fábrica ou do empreendimento capitalista por aqueles que trabalham nele. O comunismo não é a transformação de espaços de trabalho em cooperativas democráticas, como Bordiga observa: “a revolução não é uma questão de formas de organização.” [43] O comunismo consiste na abolição dos salários, do trabalho e da iniciativa privada, na captura de todo o capital pela classe trabalhadora como um todo, de modo que ele seja colocado para trabalhar em benefício da comunidade humana, e não do lucro. Como Bordiga também observa: “o socialismo reside inteiramente na negação revolucionária da EMPRESA capitalista, e não na entrega da empresa aos seus operários”. [44] É precisamente essa insistência na importância do conteúdo comunista, na abolição do trabalho assalariado, da economia de mercado e de sua divisão decadente do trabalho, que torna Bordiga tão interessante. No entanto, há um problema grave no entendimento de Bordiga sobre como o Estado será destruído e o conteúdo do comunismo, realizado. Para ele, “apenas um partido comunista pode e deve conduzir tamanho empreendimento.” [45]
Desde 1915, Bordiga insistia na necessidade de um partido comunista teoricamente puro. Depois da segunda onda de ascenso revolucionário em setembro de 1920, ele conseguiu o que queria.
Lynn Williams descreve esse surto revolucionário:
entre os dias 01 e 04 de setembro, os metalúrgicos ocuparam fábricas por toda a península italiana. (…) As ocupações avançaram não só no coração industrial em torno de Milão, Turim e Gênova, mas também em Roma, Florença, Nápoles e Palermo, numa floresta de bandeiras vermelhas e pretas e numa fanfarra de bandas operárias. (…) Em três dias, 400.000 trabalhadores estavam nas ocupações. Conforme o movimento se espalhou para outros setores, o número total de trabalhadores subiu para mais de meio milhão. Todos se surpreenderam com a reação. [46]
Gramsci foi mais uma vez à luta, enquanto Turati e os reformistas chegaram ao ponto de aconselhar o governo a usar a força contra aqueles que ocupavam as fábricas. [47] Por fim, por conta da completa traição do PSI e da CGL contra a classe trabalhadora, a oportunidade revolucionária foi perdida. Depois disso, Bordiga aproveitou a oportunidade de levar a cabo um racha e, ameaçando sair sozinho, trouxe Gramsci consigo. No congresso de Livorno, em janeiro de 1921, o PSI rachou. Turati e os reformistas receberam 14.965 votos, 58.783 votaram com os comunistas (Bordiga e Gramsci) por uma cisão, e 98.028 votaram em Serrati, pela unidade. E assim, em 21 de janeiro, o PCI (Partido Comunista Italiano) foi fundado.
Bordiga e o Partido
O PCI não conseguiu decolar. De fato, muitos dos 58.783 que votaram por ele no PSI o abandonaram. No espaço de um ano, seu número de membros caiu para 24.638 [48].
O motivo central disso foi o final do Biênio Vermelho, entre 1919 e 1920. A oportunidade revolucionária foi perdida e muitos simplesmente deixaram de se engajar na luta de classes revolucionária. Bizarramente, isso não incomodou Bordiga ou o PCI. Bordiga escreveu:
o central para a doutrina […] não está no conceito da luta de classes, mas em seu desenvolvimento na ditadura do proletariado, exercido apenas por esta classe, numa organização única, excluindo outras classes, com uma força coerciva enérgica, sob a direção do partido.
Em outras palavras, a questão para Bordiga não estava na luta de classes, mas na pureza do programa comunista e na habilidade do partido em tomar o controle do Estado. Loren Goldner oberva que
para Bordiga, o programa era tudo, e a apresentação de números como uma receita de bilheteria não dizia nada. Em períodos de refluxo, o partido teria a tarefa de preservar o programa e avançar no trabalho possível de agitação e propaganda até a próxima virada das marés, sem se deixar diluir o programa em busca de uma popularidade passageira. [49]
Bordiga escreveu: “a partir da doutrina invariante, concluímos que a vitória revolucionária da classe trabalhadora só pode ser atingida com um partido de classe e sua ditadura” [50]. Bordiga estava completamente confortável com um partido pequeno e isolado da luta de classes. O que lhe importava era que o partido fosse plenamente comunista e defendesse o programa comunista contra quem o dissolvesse, ou o desviasse de seu caminho e de sua realização. Jacque Camatte esclareceu essa posição no início de 1961, em um artigo publicado no jornal de Bordiga, Il programma comunista:
o proletariado abandona seu programa em períodos de derrota. Esse programa é defendido apenas por uma fraca minoria. O programa-partido sempre emerge apenas reforçado pela luta. A luta de 1926 até hoje prova isso inteiramente. [51]
Em todos os partidos da Esquerda Italiana, há uma insistência semelhante em seu papel como defensores do programa comunista invariante do proletariado. Embora divergindo sobre o que seria exatamente essa doutrina/programa invariante de comunismo [52], a insistência na existência real de uma doutrina/programa atravessa todos esses partidos.
No entanto, como muitos observaram bem, o comunismo “não consiste fundamentalmente na adoção de um conjunto de princípios, linhas e posições.” [53] Como Marx observa:
para nós, o comunismo não é um estado de coisas que deve ser instaurado, um ideal ao qual a realidade deverá se ajustar. Chamamos de comunismo o movimento real que abole o estado presente das coisas. As condições desse movimento partem dos pressupostos atualmente existentes. [54]
Mesmo Engels observa que:
o comunismo não é uma doutrina, mas um movimento; não parte de princípios, mas de fatos. O ponto de partida dos comunistas não se baseia nessa ou naquela filosofia, mas em todo o curso da história precedente e, especificamente, em seus resultados concretos nos países civilizados no momento presente (…) Na medida em que o comunismo é uma teoria, é a expressão teórica da posição do proletariado em sua luta, uma soma teórica das condições de libertação do proletariado. [55]
Sem dúvida, o simples fato de que o anarquismo/comunismo não é um ideal a ser realizado ou um conjunto de princípios, mas sim um movimento real, é tão óbvio que pode parecer estranho ter que enfatizar isso. Os anarquistas entenderam isso há muito tempo, como observa o grupo Dyelo Truda: “o anarquismo não é uma bela fantasia, nem uma noção abstrata de filosofia, mas um movimento das massas trabalhadoras.” [56]
Mas qual é o “o movimento real que abole o estado presente das coisas”? Obviamente, a resposta é a luta de classes.
Conclusão
Enquanto a esquerda italiana insistia num programa comunista que deveria ser realizado pelo partido para a classe trabalhadora, a Esquerda Alemã-Holandesa insistia que a classe não precisava de um partido ou um programa; de fato, estes seriam um obstáculo à classe trabalhadora na realização do comunismo.
Na Esquerda Italiana, o programa comunista encontra-se separado da classe trabalhadora. Na Esquerda Alemã-Holandesa, há exatamente o mesmo. A diferença é que a Esquerda Italiana insiste na defesa do programa comunista contra impurezas, enquanto a Esquerda Alemã insiste na defesa da classe trabalhadora. Certamente a solução é unir a classe trabalhadora e o comunismo, concluindo que “a classe trabalhadora é o sujeito do comunismo”. Essa é a posição adotada pela maioria dos comunistas de esquerda hoje.
No entanto, o primeiro problema dessa posição é que a classe trabalhadora não é um sujeito comunista. O comunismo nem sempre está desde já compreendido na classe trabalhadora. Devemos nos lembrar que a classe trabalhadora não é comunista, mas ela é capaz de produzir o comunismo. A classe trabalhadora não nos interessa por aquilo que ela é, mas sim por aquilo que ela pode fazer (e, obviamente, porque somos parte dela).
Em segundo lugar, como Guy Debord observa: “a história não tem objeto distinto daquilo que se passa nela”. [57] Hoje o comunismo renasce não como a possibilidade de um futuro a ser realizado, não é um futuro real que trabalhamos para alcançar. O projeto comunista não é teleológico. Em termos mais simples, a ideia de que a história se desenvolve até um fim fixo, o comunismo, é completamente errada. O comunismo é algo que emerge e se desenvolve nas lutas do presente. O comunismo não é algo que pode ser defendido ou descoberto, mas é algo que emerge da luta de classes. Portanto, tudo que podemos fazer é engajar-nos na luta de classes e tentar avançar as coisas, tentando transformar a classe que tem o potencial de criar o comunismo na classe que de fato crie o comunismo.
O trabalho dos comunistas não é defender os “interesses” (isto é, o programa comunista) da classe trabalhadora de se corromperem, como muitos comunistas de esquerda acreditam. Primeiramente, porque não há programa a se defender. Em segundo lugar, porque a classe trabalhadora não tem interesses fora da luta, isto é, não há interesses permanentes que podem ser defendidos.
O trabalho dos comunistas é agarrar-se aos trancos e barrancos da luta real, tal como ela ocorre, com todas as suas contradições. Temos que ser ativos na luta de classes, defendendo o anarquismo-comunismo com unhas e dentes. Onde quer que o antagonismo de classe surja, como revolucionários, devemos estar lá promovendo a causa revolucionária.
Quando Marx escreve que o comunismo é “o movimento real” não um ideal, quando Engels escreve que o comunismo é a expressão do “proletariado em luta” e não uma doutrina, quando o grupo Dyelo Truda escreve que o anarquismo é um “movimento social” e não uma filosofia, eles estão falando sério. Nos interessa a luta de classes como ela é, e não como ela poderia ser.
Em nossa análise histórica, procuramos pela luta de classes, mas não devemos procurá-la como um movimento independente, separado ou autônomo em relação ao capital e às ideologias capitalistas. A luta de classes sempre nos interessa apenas como um movimento que existe no interior do capitalismo e das formas anteriores à sociedade de classes.
A luta de classes emerge das contradições do capital. Se os efeitos do capital encontram-se em todos os lugares, então da mesma forma suas contradições também encontram-se em todos os lugares. Dito de outra forma, o sujeito revolucionário emerge da contradição entre as necessidades e os desejos das pessoas e os limites que lhes são impostos pelo capitalismo.
Nossas políticas devem partir sempre deste ponto: da contradição que vivemos diariamente entre nossas necessidades e desejos, que vemos serem possíveis, e as restrições que o capital nos impõe, ao operar de acordo com uma lógica alienante que nos força a abandonar nossas necessidades, desejos e sonhos, para trabalharmos conforme suas ordens. Nossas políticas revolucionárias devem partir sempre da resistência da classe trabalhadora contra essa experiência, devemos intervir não para afirmar ou defender o “comunismo” ou a “classe trabalhadora” de suas impurezas, como formas ideais, mas sim na busca pela rota que nos indique, de forma mais rápida e menos dolorosa, onde estamos e para onde queremos seguir.
Lista de siglas
AAUD: União Geral dos Trabalhadores Alemães (Allgemeine Arbeiter-Union Deutschlands).
AAUD-E: União Geral dos Trabalhadores – Organização Unitária (Allgemeine Arbeiter-Union – Einheitsorganisation).
CGL: Confederação Geral do Trabalho (Confederazione Generale del Lavoro).
FAUD: União Livre de Trabalhadores da Alemanha (Freie Arbeiter Union Deutschlands)
GIK: Grupo Holandês de Comunistas Internacionais (Groepen van Internationale Communisten)
IWW: Operários Industriais do Mundo (Industrial Workers of the World)
KAPD: Partido Comunista dos Trabalhadores Alemães (Kommunistische Arbeiterpartei Deutschlands).
KPD: Partido Comunista Alemão (Kommunistische Partei Deutschlands).
PCI: Partido Comunista Italiano (Partito Comunista Italiano).
PSI: Partido Socialista Italiano (Partito Socialista Italiano).
SPD: Partido Social-Democrata da Alemanha (Sozialdemokratische Partei Deutschlands).
UCAdI: União Anarquista Comunista da Itália (Unione Comunista Anarchica d’Italia).
USI: União Sindical Italiana (Unione Sindacale Italiana)
Notas
[1] Utilizamos o termo “ditadura do proletariado” para nos referir essencialmente às instituições por meio das quais os explorados e excluídos provocam uma mudança revolucionária na estrutura da sociedade. Não nos referimos necessariamente à ditadura de um partido.
[2] Lenin, V. I. ”Esquerdismo – doença infantil do comunismo”.
[3] Veja a influência da FAUD [União Livre de Trabalhadores da Alemanha] na esquerda holandesa-alemã e da IWW [Trabalhadores Industriais do Mundo] na esquerda italiana.
[4] A “derrotada” revolução italiana de 1919-1920, em inglês: Two Red Years [em português, o chamado biênio vermelho, ou em italiano: il biennio rosso].
[5] O grupo Aufheben reconhece “o momento da verdade nas versões da luta de classes do anarquismo, das esquerdas alemã e italiana e de outras tendências” (libcom.org).
[6] “Ultra-esquerdismo” é um sinônimo ridículo para o comunismo de esquerda. Embora o termo “ultra-esquerdismo” seja normalmente usado de forma pejorativa, não o é neste caso, uma vez que o grupo Aufheben se considera, até certo ponto, parte desta tendência.
[7] Aufheben #11, Communist Theory — Beyond the Ultra-Left? (www.geocities.com).
[8] Na maioria dos países onde havia um partido alinhado com a Terceira Internacional, havia também uma tendência comunista de esquerda. Além da Esquerda Alemã-Holandesa e da italiana, as tendências mais significativas do comunismo de esquerda estavam na Rússia e na Grã-Bretanha.
[9] Dauvé, G. Note on Pannekoek and Bordiga (libcom.org).
[10] Aufheben #11, From Operaismo to Autonomist Marxism (www.geocities.com).
[11] Aufheben #8, Left Communism and the Russian Revolution (www.geocities.com).
[12] Grupo de Comunistas Internacionais (GIK), organização holandesa, conferir “Origins of the Movement for Workers’ Councils in Germany” (libcom.org).
[13] Ibid.
[14] Os comunistas de esquerda holandeses estabeleceram uma distinção entre as organizações locais de trabalho como a AAUD, a IWW e o movimento britânico de delegados sindicais (the British Shop Stewards movement) e “sindicatos” (“Trade Unions”).
[15] Vale notar que, simultaneamente a esse sindicato anarcossindicalista, o FAUD (Sindicato dos Trabalhadores Livres da Alemanha) tinha cerca de 200.000 membros. Os membros da AAUD e da FAUD frequentemente se sobrepunham. Ibid.
[16] Appell, J., Autobiography of Jan Appel (libcom.org).
[17] Gorter, H., Open Letter to Comrade Lenin, Antagonism Press, pp. 16–26. [Em português, “Carta aberta ao camarada Lênin”, tradução disponível no blog Crítica Desapiedada].
[18] É importante notar que a Esquerda Alemã-Holandesa não rejeitou a organização por local de trabalho, mas sim os sindicatos reformistas que existiam na Alemanha. Sobre isso, Gorter escreveu que “é apenas no início da revolução, quando o proletariado se transforma de membro da sociedade capitalista no aniquilador dessa sociedade, que o sindicato entra em oposição ao proletariado” – Open Letter p. 28.
[19] Dauvé, G. Leninism and the Ultra Left, em Eclipse and Re-Emergence of the Communist Movement, p. 48.
[20] Dyelo Truda Group, Reply to Anarchism’s Confusionists (www.nestormakhno.info/english/confus.htm).
[21] Dauvé, G. Leninism and the Ultra Left, em Eclipse and Re-Emergence of the Communist Movement, p. 48.
[22] Pannekoek, A., Party and Class, em Bordiga Vs. Pannekoek, Antagonism Press, p.31
[23] Se Pannekoek define o partido como “um agrupamento de acordo com pontos de vista e concepções”, a interpretação de Dauvé parece justa.
[24] Com isso, queremos dizer que a classe trabalhadora deve se emancipar através do uso de suas instituições autónomas de poder social (sovietes, conselhos, etc.) e não através do processo representacional de um partido que toma o controle do Estado “para” a classe trabalhadora..
[25] Sobre a derrota da revolução alemã, conferir Towards a Fresh Revolution, pelo grupo Friends of Durruti, e The revolutionary message of the ‘Friends of Durruti’, por George Fontenis.
[26] Grupo Dyelo Truda, Reply to Anarchism’s Confusionists hp://www.nestormakhno.info/english/confus.htm
[27] Para um relato excelente sobre o esquecido e ignorado envolvimento anarquista nesse período da história italiana, conferir Dadà, A. Class War, Reaction & the Italian Anarchists, Studies for a Libertarian Alternative.
[28] Davidson, A. The Theory and Practice of Italian Communism: Vol. I, Merlin Press p.78
[29] Wetzel, T. Italy 1920, Zabalaza Books, p. 6.
[30] Wetzel, T. Italy 1920, p. 9.
[31] Esse programa, dentre outras coisas, foi o que tornou o PSI um membro da Comintern.
[32] Davidson p. 91
[33] Davidson, A. The Theory and Practice of Italian Communism: Vol. I, p. 92.
[34] Ibid.
[35] Ibid.
[36] Vale notar que, apesar da afirmação frequentemente repetida de que l’Ordine Nouvo era o órgão do movimento dos conselhos de fábrica, essa é uma simplificação grosseira. Considere o fato de que em 1920, enquanto l’Ordine Nouvo era um jornal semanal com tiragem inferior a 5.000 exemplares, o anarquista Umanitá Nova tinha uma tiragem diária de 50.000 exemplares.
[37] Wetzel, T. Italy 1920, p. 10.
[38] Davidson, A. The Theory and Practice of Italian Communism: Vol. I, p. 95.
[39] Davidson, A. The Theory and Practice of Italian Communism: Vol. I, p. 95.
[40] Introduction to “Gramsci’s Prison Notebooks”, International Publishers, p.xxxiv
[41] Os anarquistas da UCAdI (União Anarquista Comunista da Itália) também estavam cientes disso, afirmando em abril de 1919: “devemos lembrar que a destruição da sociedade capitalista e autoritária só é possível por meios revolucionários, e que o uso da greve geral e do movimento operário não nos deve fazer esquecer os métodos mais diretos de luta contra a violência estatal e burguesa e o poder extremo.” Citação de Dadà, A. Class War, Reaction & the Italian Anarchist, p. 15.
[42] Bordiga, A., Seize power or seize the factory? (www.marxists.org).
[43] Bordiga, A., Party and Class, em Bordiga Vs. Pannekoek, Antagonism Press, p. 43
[44] Bordiga, A. Proprieté et capita. Citado em Lip and the Self-Managed Counter Revolution by Negation, Repressed Distribution, p. 50
[45] Bordiga, A., Seize power or seize the factory? (www.marxists.org).
[46] Quoted in Wetzel, T. Italy 1920, pp.11–12
[47] Davidson, A. ‘The Theory and Practice of Italian Communism: Vol. I’, p.96
[48] Davidson, A. ‘The Theory and Practice of Italian Communism: Vol. I’, p.103
[49] Goldner, L., ‘Communism is the Material Human Community: Amadeo Bordiga Today’, (home.earthlink.net).
[50] Bordiga, A. Considerations on the party’s organic activity when the general situation is historically unfavourable (www.marxists.org) [Em português, “Considerações sobre a atividade orgânica do partido quando a situação geral é desfavorável historicamente”, tradução disponível no blog Proelium Finale].
[51] Camatte, J., Origin and Function of the Party Form (www.geocities.com).
[52] Em 1952, a Esquerda Italiana dividiu-se: de um lado, ficaram Bordiga e aqueles em torno do Il Programma Comunista, do outro, Damen e aqueles em torno da Battaglia Comunista. Damen opôs-se ao trabalho nos sindicatos, ao mesmo tempo que apoiava a atividade parlamentar, também se opôs aos movimentos de libertação absolutamente nacional, enquanto Bordiga ficou do outro lado desses debates. Os quatro Partidos Comunistas Internacionais descendem todos de Bordiga, enquanto a Corrente Comunista Internacional e o Bureau Internacional do Partido Revolucionário descendem do lado de Damen.
[53] Aufheben #11, Communist Theory — Beyond the Ultra-Left? (www.geocities.com).
[54] Engels, F, & Marx, K. German Ideology em Collected Works: Vol. 5, p. 49.
[55] Engels, F. The Communists and Karl Heinzen, Second Article (www.marxists.org).
[56] Dyelo Truda Group, Organizational Platform of the General Union of Anarchists – Draft, (www.anarkismo.net).
[57] Debord, G, Society of the spectacle, Paragraph 74. [Em português, “Sociedade do espetáculo”, publicado pela editora Contraponto].