Por Piera Portasio
“Eu estou assustado. Me sinto meio louco. Não estou lúcido. As suposições estavam certas. Eu consigo sentir meu medo crescer. Agora é o momento da resposta. Só uma pergunta. Uma pergunta a ser respondida”
INTRODUÇÃO: o eu cindido
Uma jovem entra no carro de seu namorado Jake. Os dois vão fazer uma viagem para conhecer, pela primeira vez, os pais dele. Só um problema: ela está pensando em acabar com tudo.
A sinopse do filme poderia ser resumida de duas formas diferentes, dependendo da perspectiva tomada a respeito da história. As duas sinopses porém, na minha opinião, são a mesma; diferentes maneiras de olhar para o mesmo processo: “Uma jovem contempla o fim de uma relação durante a viagem à casa dos pais do namorado”, ou então, “Um homem de idade reflete a respeito do que sua vida poderia ter sido se tivesse se envolvido com uma jovem que nunca chegou a conhecer enquanto contempla se suicidar.”
O querer acabar com tudo seria então não duas interpretações de ações diferentes como “acabar um namoro” ou “se matar”, mas sim do mesmo processo psiquico e narrativo que vamos assistir Jake – e Lucy[1] – percorrer.
O Eu não é senhor dentro de sua própria casa, é a máxima freudiana para a qual inevitavelmente estamos sempre retornando. O Eu é cindido e portanto seu processo de vida é por si só uma guerra interna de instâncias psíquicas que se unem e se antagonizam, pulsões e repressões, Ideais que recompensam e punem.
A Jovem mulher, que visita pela primeira vez a casa do namorado, apresenta ao longo do filme diversas alterações a respeito de sua profissão, nome, história de como conheceu o namorado e mesmo de suas roupas. Ela também é incapaz de precisar ao certo quando a relação começou, ou a quanto tempo estão juntos.
Ao longo do trabalho, mantendo o espírito do filme, vou me referir a essa jovem a partir dos diversos nomes que se alteram ao longo da narrativa. São esses: Lucy, Louisa, Lucia e Ames.
Os fatos citados acima, em conjunto com o detalhe logo no início da viagem de carro, quando Lucy pensa para si mesma, mais uma vez, que está pensando em acabar com tudo e Jake a escuta, como se ela tivesse dito isso em voz alta, vai ter de ser o suficiente, por enquanto, para que eu possa argumentar que Lucy é Jake. Uma instância psíquica dele. É essa instância, porém, que escutamos e acompanhamos durante o longa e é ela a protagonista do filme. As interações de ambos, coerentemente com nosso entendimento psicanalítico, varia entre harmonizações e hostilidades, concordâncias e confrontos.
Para além disso, temos um personagem que permeia o filme do começo ao fim, a princípio parecendo desligado da história principal. Trata-se de um zelador idoso, durante sua rotina diária. A montagem do filme, porém, liga ambas linhas narrativas com frequência, tanto em termos temáticos, quanto como se um personagem de uma das histórias, ao retornar em cena, reagisse ao que havia acabado de ocorrer na anterior. Novamente preciso me adiantar para afirmar que esse zelador é Jake, já mais velho, coerentemente com a segunda sinopse que sugeri no começo desta introdução.
Para além dessas afirmações mais gerais, espero que o desenvolvimento desse trabalho seja suficiente para argumentar de que forma esses três personagens, que são o mesmo, em temporalidades e versões diferentes, e todos os acontecimentos do filme, vão nos levar para um mergulho profundo dentro da mente de um homem solitário e uma guerra entre seu Eu e seu Eu Ideal.
Abaixo descrevo as primeiras frases do filme, um monólogo de Lucy:
“Eu estou pensando em acabar com tudo. Quando este pensamento chega, ele fica. Gruda. Perdura. Domina. Não há muito o que eu possa fazer. Confie em mim. Não vai embora. Fica lá, quer goste ou não. Está lá quando eu como. Quando eu vou me deitar. Está lá quando eu durmo. Está lá quando acordo. Está lá. Sempre. Eu não tenho pensado sobre há muito tempo. A ideia é nova. Mas parece velha ao mesmo tempo. Quando começou? E se não tiver sido concebida por mim, mas plantada na minha mente? Uma ideia não proferida, pode não ser original? Talvez eu tenha sempre sabido. Sempre fosse terminar assim?”
Ela afirma ser uma ideia não original, algo da qual é impossível fugir, ou esconder de si mesmo. Uma ideia destrutiva, que parece nova, mas velha ao mesmo tempo, impossível de definir quando foi iniciada. Na verdade, ela sempre esteve ali.
Freud afirma:
“Já no nascimento o indivíduo inteiro é destinado a morrer, e talvez os seus órgãos já contenham a indicação daquilo que morrerá. Mas sempre interessa acompanhar como esse programa inato é executado, de que maneira danos ocasionais tiram proveito da predisposição”
E apesar de Lucy dizer desde o primeiro momento que “está pensando em acabar com tudo” e constantemente expressar em pensamentos suas dúvidas quanto àquela relação, além de afirmar diversas vezes uma necessidade de voltar – por motivos que variam ao longo do filme – ela ainda assim entra no carro e vai com Jake na viagem. Justificando essa atitude, ela diz:
“Acho que é curiosidade. Jake é difícil de entender. Talvez seja uma janela para suas origens. Isso de ‘a criança é o pai do homem’”.
Ou seja, uma tentativa de, através de um vislumbre de sua origem, entender por que as coisas estão acabando ou vão acabar assim, como, afinal esse “programa inato é executado, de que maneira danos ocasionais tiram proveito da predisposição”.
PARTE I: Ideal de eu, eu ideal
Um diálogo logo no início da viagem de carro de Lucy e Jake deixa claro o que ela representa psiquicamente para ele. Ele conta de um poema que afirma significar muito para ele, dizendo que o autor escreveu uma série de poemas para uma mulher chamada Lucy. “Como eu”, Lucy responde, e Jake continua: “Uma mulher linda e idealizada que morre jovem.” e a tranquiliza finalizando “A comparação só vai até o nome. E que você é ideal, é claro.”
Jake afirma claramente, logo de início, que Lucy é seu ideal. Não é à toa, portanto, que aspectos de vida e personalidade dela se alteram, pois estão respondendo às necessidades, desejos e diferentes interesses de Jake. Em seguida, quando Lucy expressa pela primeira vez – a primeira de muitas – uma preocupação sobre sua necessidade de voltar cedo, ela diz que é para terminar um artigo que ela explica de maneira geral. Ele, apesar da complexidade do tema, complementa o raciocínio dela. “Ponto para Jake”, ele diz, orgulhoso do interesse que tem pela tese da namorada, mas trata-se de um dos muitos indícios das projeções dos interesses do próprio Jake nela, já que pouco depois, Lucy é colocada como uma poetisa e Jake insiste para que ela recite um de seus poemas. Assim que ela termina, Jake fala que parece que o poema tinha sido escrito sobre ele. Aqui sinto uma das primeiras tensões entre eles, um incômodo em Lucy pelo fato de Jake se apropriar de certa forma da sua obra, tornando-a dele.
O poema, porém, não foi escrito por nenhum dos dois. Ele não é nem mesmo uma obra escrita para o filme. Trata-se de uma poesia de uma autora chamada Eva H.D. Ela é colocada nessa cena como de autoria de Lucy coerentemente com o desejo de quem Jake quer que Lucy seja para que, assim, ele possa sentir-se, como seu namorado, igualmente digno de valor. Mais tarde isso ficará mais claro, quando Lucy encontrar o livro de Eva H.D, contendo o exato mesmo poema recitado por ela, na casa de Jake.
Como estamos falando da criação de um ideal, vou retornar a essa ideia que primeiro apareceu em Freud em Introdução ao Narcisismo. Nesse texto Freud estabelece o investimento libidinal como originalmente no Eu e que depois é transferido, em parte, para objetos. O desenvolvimento do Eu consiste num distanciamento do narcisismo primário original. Tal distanciamento ocorre através do deslocamento da libido para um ideal do Eu imposto de fora, e a satisfação, através do cumprimento desse ideal. Ao mesmo tempo, o Eu enviou os investimentos libidinais aos objeto e dessa forma se empobrece em favor desses investimentos, se enriquecendo novamente mediante as satisfações ligadas aos objetos, assim como pelo cumprimento do Ideal.
Segundo Freud:
“O amor objetal completo, segundo o tipo “de apoio”, é de fato característico do homem. Exibe a notória superestimação sexual, que provavelmente deriva do narcisismo original da criança, e corresponde assim a uma transposição do mesmo para o objeto sexual.”
E então:
“Um breve sumário dos caminhos para a escolha de objeto pode concluir estas observações incipientes. Uma pessoa ama:
1) Conforme o tipo narcísico:
-
-
- a) o que ela mesma é (a si mesma),
- b) o que ela mesma foi,
- c) o que ela mesma gostaria de ser,
- d) a pessoa que foi parte dela mesma.
-
Então a pessoa ama, em conformidade com o tipo da escolha narcísica de objeto, aquilo que já foi e que perdeu, ou o que possui os méritos que jamais teve”
Tudo isso já permite uma compreensão ampla a respeito da posição de Lucy em Jake. Ele a ama segundo o tipo narcísico, no qual ela é ao mesmo tempo o que ele gostaria de ter sido, o que acredita que ela é, e o que ele acreditou ser. Jake criou esse ideal e depositou nela. Apesar disso, sabemos pela análise até o momento que a personagem que acompanhamos não é uma mulher real em separado de Jake.
Eventualmente chegaremos em um momento em que isso será melhor explicado, mas até então vou afirmar apenas que entendemos na psicanálise que o ID abandona seus objetos sobre a condição da introjeção.
Diz Freud:
“Em nosso aparelho psíquico reconhecemos sobretudo um expediente para
lidar com excitações que de outro modo seriam sentidas como penosas ou de efeito patogênico. A elaboração psíquica ajuda extraordinariamente no desvio interno de excitações que não são capazes de uma direta descarga externa, ou para as quais isso não seria desejável no momento. Mas no princípio é indiferente, para uma tal elaboração interna, se ela ocorre em objetos reais ou imaginários. A diferença mostra-se apenas depois, quando o voltar-se da libido para objetos irreais (introversão) conduz a um represamento da libido.”
No começo então a fantasia, aquela relação ser ou não imaginaria, é indiferente, em uma tentativa do aparelho psíquico de evitar uma sensação penosa. Depois, porém, a diferença é revelada, quando o retorno da líbido para objetos irreais, de maneira introvertida, retorna ao eu.
Para tentar compreender melhor essa complexa dinâmica, recorri a um vídeo do psicanalista Christian Dunker para separar melhor a ideia de Eu Ideal e Ideal de eu.
Segundo ele, o Eu Ideal é uma instância que remete aquilo que gostaríamos de ter sido, o que esperavam de nós. Um lugar do Eu como objeto para o outro. Trata-se de uma instância imaginária. O Ideal de eu por outro lado, ele afirma ser uma substituição simbólica desse narcisismo primário. E é a partir dele que montamos as nossas figuras de admiração, necessárias para a nossa maneira de amar.
Dunker afirma:
“A nossa tendência neurótica é tentar, em momentos de crise principalmente, fazer com que o Ideal de Eu se satisfaça com o Eu Ideal, que se acasale com o Eu Ideal.”
O Ideal de eu não se alcança, pois é um horizonte pelo qual nós nos orientamos. O Eu ideal é o que recorremos perante o desamparo, a sensação do que, se tivéssemos sido capazes de ser, nosso desespero cessária.
Acho que precisamos retornar ao filme para entender de que forma essas duas instâncias estão agindo, mas a princípio eu levantaria a hipótese de que em sua crise, Jake está na maior parte do tempo tentando fundir seu Ideal de Eu com o Eu Ideal.
Voltando para Freud:
“Esse expediente tem particular importância para o neurótico, que devido a seus investimentos de objeto excessivos está empobrecido no Eu e incapaz de cumprir seu ideal do Eu. Busca então o caminho de volta ao narcisismo, após o seu esbanjamento de libido nos objetos, escolhendo um ideal sexual conforme o tipo narcísico, que possua os méritos para ele inatingíveis. Isso é a cura pelo amor, que via de regra ele prefere à cura analítica.”
A diferença que eu pude compreender é que, enquanto o Eu Ideal é aquilo que os outros esperam de nós e que tentamos realizar para amenizar nossa angústia, o Ideal do Eu é aquilo que nós mesmos esperamos de nós como horizonte regulativo, ambos constituídos a partir de influências externas. Jake usa Lucy como ambos, para amenizar sua angústia quanto a frustração do que não pode ser a partir da figura de uma mulher “Ideal”, se permitindo encontrar no Ideal de Eu representado por ela, um Eu Ideal de si mesmo.
Uma cena específica deixa essa dinâmica muito clara, mas gostaria de não me adiantar a ela ainda, para me permitir fazer um parênteses a respeito desse tema com o próprio cinema.
Parentêses 1: o Ideal Hollywoodiano
Durante a viagem de carro, depois de um pequeno desentendimento entre os dois, Jake tenta quebrar o gelo, afirmando que acha que talvez assista filmes demais. Lucy responde: “todos vemos, é um problema social”. Jake, então, se conforma: “Encho meu cérebro de mentira para passar o tempo”.
Kaufman, diretor e roteirista do filme, vai utilizar-se de metalinguagem de da própria influência fílmica na construção da psique e do universo de seus personagens e brilhantemente misturar as crises familiares, pessoais, sociais e amorosas – e nossa perspectiva psicanalítica a respeito disso – com o efeito e influência que o cinema tem em todas essas coisas.
Logo antes de chegar finalmente à casa dos pais de Jake, Lucy e ele conversam a respeito da necessidade de viver de organismos e ideias.[2]
Durante a conversa, Lucy conclui:
“Até idéias ruins e falsas de filmes querem viver. Elas crescem no nosso cérebro, substituindo idéias reais. É isso que as torna perigosas”.
Vamos retornar para o personagem do zelador, que ao longo de todo filme até então aparece realizando atividades cotidianas como ouvir rádio, tirar o lixo, ver TV, ir para um colégio onde faz suas tarefas como zelador. Durante a pausa do trabalho ele assiste uma comédia romântica clichê. A cena mostrada é a catarse final do filme (tão óbvia que não precisaríamos ter assistido mais nada para saber do que se trata a história): é a cena do grande ato, do momento em que o mocinho prova para a mocinha, através de um gesto grandioso, que ele a ama.
Nesse momento, é interessante citar um trecho de “O escritor e a fantasia” de Freud:
“A meu ver todo prazer estético que o escritor nos propicia tem o caráter de um prazer preliminar desse tipo, e autêntica fruição da obra literária vem da libertação de tensões em nossa psique”.
É isso o que chamam em narrativa de catarse. Aquela libertação da nossa psique que é impedida pelo Superego na vida real. Em qualquer tipo de realidade material, a cena romântica em que o mocinho invade o trabalho da mulher por quem está apaixonado, grita a todos os pulmões que a ama e – apesar de fazê-la ser demitida – ganha seu coração, não é apenas absurda, mas também abusiva e cheia de consequências sociais negativas.
Só que essas fantasias não só moldam Jake, da infância à velhice, como criam uma frustração gravíssima. Nesse sentido, o diretor está dizendo exatamente que essa fantasia Hollywoodiana, de que seu desejo reprimido pode trazer um prazer imediato na catarse da obra, por outro lado cria uma infelicidade na realidade material. A catarse fílmica da comédia romântica pode dar uma vazão à libido, mas inválida ao mesmo tempo uma vivência social e comunitária, tratando-a como inferior à Ideias fílmicas inatingíveis.
Lucy, durante a viagem de “volta” (não pode ser exatamente chamado dessa forma) da casa dos pais menciona “A sociedade do espetáculo” de Guy Debord. Ela cita a obra: “O espetáculo não pode ser visto como um mero truque visual produzido por tecnologias de mídias de massas . É uma visão de mundo que foi materializada”.
Jake responde, concordando, que é uma visão de mundo que infecta nosso cérebro. Um mundo pré interpretado para nós.
Nesse momento, apesar de ser Lucy quem está conversando com Jake, a atriz que a interpreta é trocada pela mesma que atua na comédia romântica assistida pelo Jake-Zelador.
Na comédia romântica:
No carro:
Dessa forma, o filme mostra de maneira incontestável a extrema influência da ideia Hollywoodiana nos nossos Ideais de Eu. A indústria cultural institui severas exigências, cujo não comprimento é punido com grande angústia.
PARTE II – Uma janela para suas origens
Chegando na casa rural, enquanto eles esperam que os pais de Jake apareçam, ele oferece a Lucy um par de pantufas, afirmando que aquela casa, por ser velha, é fria. Ao perceber que não tem outro par para ele, ela recusa, mas ele insiste dizendo “Que tipo de cavalheiro eu seria?”. Jake expressa através de sua relação com ela um Eu Ideal, uma necessidade de ser o tipo de homem que se sacrifica pela sua mulher, uma ideia de que, se ele for essa pessoa, é digna de amor e pode, assim, superar a própria angústia. Ele sentir frio para que ela se aqueça é uma parte importante dessa necessidade, é o sacrifício feito para que ele possa sentir-se heróico. Lucy, agradecidamente, aceita
Os pais de Jake demoram a aparecer. Enquanto isso Lucy nota uma porta cheia de arranhões e questiona a seu respeito. Trata-se do porão da casa. Brincando um com o outro – gostaria de notar rapidamente que a relação de Jake e Lucy ao longo do filme tem também seus momentos de diversão, trocas e parcerias, ou seja, de uma trégua entre esse “eu cindido” – Lucy então faz uma piada a respeito de filmes de terror e a participação do porão nesse tipo de obra, no que Jake responde, brincando: “Shhhhh. Ele está escondido lá”. Lucy fica desconcertada e aparentemente assustada: “Ele quem?”, ela pergunta. Em breve ela, e nós, vamos descobrir.
Eles sentam para jantar com os pais de Jake, que agora se referem à protagonista como Louise. Sua profissão também mudou: agora ela é uma pintora.
A mãe de Jake pergunta como os dois se conheceram, e Louise narra uma história de uma noite de jogos. Ela diz que Jake lhe interessava, mas não lhe dizia nada, no que o pai de Jake corrige a história: “Achei que vocês estavam falando sobre Brezhnev”, uma afirmação expressa por Louise pouco antes. A história se revela como mal contada, com falhas, buracos na narrativa.
Nesse momento a câmera para em cada um dos personagens. Todos eles confusos, perplexos, quase feridos. Como se naquele momento algum tipo de farsa estivesse para ser exposta. Lucy-Louise consegue desfazer o mal estar, tentando explicar a situação. O incômodo, porém, continua. A sensação é de que algo começa a ser rompido. Ela encerra a história, mas uma súbita melancolia toma conta da cena.
Quieta, no canto, isolada do resto dos personagens pelo quadro, ela se pergunta quanto tempo faz que tudo aconteceu.
Depois do jantar, Louise anda pela sala da casa, olhando para fotos na parede. Ela repara em uma delas, perplexa, e pergunta para Jake: “Quem é esse?”. Ele responde: “Você não consegue saber? Sou eu”
Louise encara a imagem intensamente. A criança na foto poderia, de fato, ser qualquer um dos dois. Ela pensa: “Sou eu. Não era eu?”
Mais uma vez algum tipo de dinâmica, até então funcional, começa a ser rompida. Louise está questionando sua própria existência, mas sua surpresa é interrompida pela chegada da sobremesa, trazida pela mãe de Jake. Momentos como esse para mim revelam a insistência do sintoma. A resistência em ser rompido.
O tempo agora, que já se alterava de maneira caótica e não linear, passa cada vez mais rápido e implacavelmente. Os pais de Jake já não são os mesmos do jantar, eles parecem mais velhos, mais cansados, a mãe desenvolveu algum tipo de problema auditivo em que frequentemente ouve murmúrios, e o pai de Jake chega a dizer que costumava gostar de como ela era engraçada, mas que a idade mudou isso. Além disso, o nome da jovem mudou novamente e agora é Lúcia. Sua nova profissão é que ela estuda gerontologia. Isso faz sentido para as necessidades de Jake naquele momento, considerando que seus pais estão envelhecendo. Seu Ideal agora precisa ser alguém que possa ajudá-lo a cuidar dos pais, que possa estar presente durante o processo do envelhecimento deles.
Acho que seria interessante retomar algumas das profissões que são atribuídas a Lucy ao longo do filme, e de que forma isso se relaciona às necessidades e interesses de Jake:
- Estudante de física quântica: interesse que Jake demonstra desde o começo do filme, querendo mostrar para ela seu conhecimento a respeito. Mais tarde, inclusive, vemos vários livros a respeito no quarto de Jake.
- Poeta: representa interesse de Jake por livros e em especial por um poema em específico que ele lhe pede para recitar dizendo que acha que ela “escreveu para ele”
- Pintora: a mãe de Jake, durante o jantar, revela que o filho costumava pintar e que “ele se esforçava muito”
- Garçonete: essa profissão é diretamente ligada à comédia romântica assistida pelo Zelador-Jake, uma fantasia romântica fílmica a respeito de como ficaram juntos. Ele também chega a contar para o pai que foi essa a história de como se conheceram, contradizendo completamente a história narrada no jantar.
- Gerontologia: no momento em que os pais de Jake estão ficando cada vez mais velhos, convenientemente os estudos e interesses de Lucy estão ligados ao problema do envelhecimento.
Fica cada vez mais claro que Jake (e Lucy), nunca deixaram a casa, a temporalidade vira, semelhantemente a uma sessão de análise, uma mistura de passado e presente, em que ambos se mesclam.
Voltando à narrativa fílmica, Lucy se depara, subitamente, sozinha na casa e, em busca de Jake, sobe até seu quarto. Lá é revelado parte do material a partir do qual ela foi construída em seu imaginário; livros de interesse a respeito de física quântica, por exemplo. O mais impactante, porém, é o livro onde se lê o poema que ela lhe recitou no começo da viagem
“(…)
Você volta pra casa, com seus dons mutantes,
para uma casa de ossos.
Tudo o que você vê agora,
tudo: osso.”
Quando Lucy desce do quarto e chega na sala, Jake está cuidando da sua mãe idosa e moribunda. Ele a alimenta, enquanto Lucy os observa. A mãe de Jake então diz, num monólogo:
“Jake sempre foi um bom garoto. Diligente. Ele ganhou um broche. Talvez não tenha o talento natural dos outros alunos, mas ele se esforçou tanto. E isso é ainda mais impressionante.” (…) “Mas para se sair tão bem quanto Jake sem nenhum talento ou habilidades especiais. Isso é muito mais impressionante.”
Essa condescendência, principalmente vinda de sua mãe, enquanto Jake se sacrifica libidinalmente em prol de uma atitude moralmente superior, deve inevitavelmente acumular contra si uma altíssima carga de agressividade.
Freud diz:
“Aqui, como sempre no âmbito da libido, o indivíduo se revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi desfrutada. Ele não quer se privar da perfeição narcísica de sua infância, e se não pôde mantê-la, perturbado por admoestações durante seu desenvolvimento e tendo seu juízo despertado, procura readquiri-la na forma nova do Ideal do Eu.”
Lucy então precisa cumprir seu papel de instância observadora, que reconhece os valores que Jake não tem reconhecido. Ela afirma, subitamente carinhosa e maternal “Estou impressionada pelo seu cuidado com sua mãe”, ela diz, “É raro. Costumamos mandar nossos idosos para o asilo. É de admirar o filho dedicado que você é”, e Jake responde: “Fico feliz de ouvir você dizer isso. Eu me sinto melhor. Às vezes parece que ninguém vê as coisas boas que a gente faz. Como se você estivesse sozinho”.
Na próxima cena, porém, Lucy começa a contestar esse papel. Kaufman filma Lucy enquanto ela desce repetidamente a escada da casa – representando o fato de que ela não consegue sair de lá, presa em um ciclo vicioso -, ela repete uma série de frases – destaco apenas algumas, que considero as mais essenciais para a compreensão do que estou chamando aqui de uma tentativa de se rebelar do Ideal sobre a função atribuída a ele. Descendo ás escadas repetidamente, Lucy pensa consigo mesma:
“Nem sei mais quem eu sou nessa história toda”
“Onde eu termino e o Jake começa?”
“Jake precisa me ver como alguém que o vê”
“Ele precisa ser visto, e precisa ser visto com aprovação”
“Como se fosse meu propósito nisto, na vida”
“Ele precisa me ver como alguém cuja aprovação dele é validada”
“Porque eu sou aprovada por outros”
Esse lugar, o lugar da Lucy, Luísa, Ames do Eu Ideal do Jake é um lugar torturante e impossível. Ela precisa ser para ele uma validação de quem ele é. Ela precisa ser o Ideal de Eu dele para que ele possa se sentir um Eu Ideal. Trata-se de uma dialética narcísica-amorosa. Ele precisa dessa validação para acreditar que pode ser um ser desejante e objeto de desejo e para isso introjeta um objeto de desejo fantasioso.
Novamente a temporalidade de Kaufman nos prega peças e nos revela em cena, depois de termos visto sua mãe quase morta, uma versão dela extremamente jovem. Essa mãe jovem pede para Lucy levar uma roupa de bêbe para a máquina de lavar, que fica no porão.
Vamos lembrar do que Jake disse quando o porão foi mencionado pela primeira vez: “Shhhhh. Ele está escondido lá”.
O que tem, afinal, no porão da casa dos pais de Jake? A cena é realizada, esteticamente, quase como uma cena de terror. A tensão é de que algo perigoso ali será descoberto. O porão tem esse significado cinematográfico histórico porque é lá onde guardamos aquilo com o qual não queremos lidar, ou ver, ou acessar, nosso lugar reprimido.
Lá dentro, Lucy encontra dentro da máquina de lavar as roupas do Jake-Zelador, o que revela que ele nunca foi embora daquela casa. A necessidade de ser o filho que ficou, que esteve com os pais doentes, manteve ele naquela casa eternamente. É por isso que apesar de todos os momentos que Lucy afirma precisar ir embora, novas desculpas e alterações temporais aparecem para impedir que isso aconteça.
Em seguida Lucy descobre, no quarto ao lado, quadros, pinturas e posters que revelam que sua própria arte, aqueles quadros que ela mostrou para os pais de Jake no jantar, não são originais. São quadros coerentes com o que ela explicou fazer como artista para os pais de Jake. Explorando-os, inclusive, ela descobre a assinatura de Jake neles.
“Nada é mais raro em qualquer homem”, diz Emerson, “do que um ato próprio”, ela pensa. Suas obras nunca existiram. Elas sempre foram projeções de Jake. Isso é um comentário sobre como todos somos formados pelas nossas impressões de mundo, influências. Para ela, porém, é pior: ela não é ela mesma, como ela parecia acreditar até então, mas sim uma criação idealizada de Jake.
Para além disso, é um comentário do diretor sobre o filme, sobre as referências inúmeras que ele contém, e é extremamente irônico que quando a Lucy encerra a cena seu pensamento é: “A maioria das pessoas são outras pessoas. Seus pensamentos são as opiniões de outras pessoas. Suas vidas um mimetismo. Suas paixões, uma citação”, isso é uma citação de Oscar Wilde.”
Parênteses 2: Uma mulher sob influência[3]
Finalmente Jake e Lucy entram no carro para – teoricamente – voltar. Durante a viagem, eles têm uma discussão a respeito do filme “Uma mulher sob influência” de John Cassavetes. Vou tentar aqui não cair na tentação de explicar esse filme, e sim elaborar o que eles falam a respeito dele. Acredito que Charlie Kaufman consegue misturar muito bem tanto a discussão em termos formais quanto o conteúdo e, ao mesmo tempo, usar a temática do filme para trabalhar o que está em jogo na cena. Por outro lado, como acredito que para que uma obra se baste em si ela precisa que suas referências sejam agregadoras, porém não necessárias de terem sido assistidas para a compreensão do conteúdo, pretendo me manter no que está sendo dito no filme, independentemente se o espectador assistiu a referência ou não.
O que está em jogo aqui é que Jake afirma que “Uma mulher sob influência” é um filme incrível e Lucy não tem certeza se concorda. Vamos tentar entender seus argumentos.
Nesse momento, mais uma vez, ela mudou de profissão, ou, melhor dizendo, tema de pesquisa, e diz que assistiu o filme diversas vezes para um artigo. Ela é uma especialista em cinema.
O que acontece na cena é que Jake parece se identificar com a protagonista do filme, chamada Mabel, dizendo que ela é injustiçada. Lucy, por outro lado, percebe que o problema do sofrimento de Mabel é que ela está sempre tentando agradar todo mundo. Gena Rowlands, a atriz que interpreta Mabel, parece nunca sair do personagem, o que é o suficiente para Oscars e aplausos, mas é exaustivo. Na minha interpretação, Lucy está percebendo e expressando cada vez mais como o papel de precisar cumprir uma meta ideal é torturante e exige demais do Eu. Jake, por outro lado, está focado na necessidade de receber do diretor (Cassavetes? Do próprio Kaufman? De nós como espectadores?) generosidade e compreensão.
O que é interessante é que Lucy o contesta, o põe em cheque. Ela cada vez mais se rebela contra o papel de fantasia ideal de Jake, não deixando fácil para ele ser quem ele quer. Ainda que muitas vezes ela aceita essa posição, cada vez mais se rebela contra ela.
Jake assume que foi ludibriado, e expressa completamente sua frustração. Ele queria a compaixão que Cassavetes parece mostrar por Mabel, mas que Lucy considera condescendente. Após a discussão ele entra em uma espécie de colapso. O ideal parece parar de barrar o conforto para o Eu. O diálogo que se segue é o seguinte:
Jake: Parece que não tem jeito.
Lucy: O que?
Jake: Tudo. Se sentir velho. Seu corpo se vai, sua audição, sua visão. Você não consegue ver. Você é invisível. E você faz tantas curvas erradas. Toda a mentira.
Lucy: O que é toda a mentira?
Jake: Eu não sei. Que vai melhorar. Que nunca é tarde demais. Que Deus tem um plano para você. Que a idade é só um número.
Lucy: Cala a boca
Jake: Que é sempre mais escuro antes de amanhecer. Que todo mal traz a porra de algo bom. Que tem alguém para todo mundo.
Jake finalmente se desfaz por um momento de suas defesas. Daquilo que foi levado a acreditar que lhe traria conforto. Lucy então começa a imitar a personagem de Mabel enquanto repete coisas que o marido de Mabel fala para ela durante o filme, como “Cala a boca” ou “Sente-se”. Para mim, Jake novamente volta a projetar em Lucy o que precisa ver de reconhecimento sobre si mesmo. Como sabemos, o sintoma tende a persistir. Mas é uma cena dúbia: ela imita a personagem com quem ele se identifica, mas o faz com ironia, quase como se mostrando para ele que ela é a personagem sendo silenciada, e não ele.
Não é a toa que, apesar dessa cena potente, a sugestão que ele faz em seguida é que ambos parem na estrada para tomar uma sobremesa num “Tulsey Town” – um lugar da cidade dele que parece parado no tempo, cujas vendedoras representam mulheres que lhe desprezavam durante a juventude e que ele insiste em se manter distantante enquanto Lucy interage com elas. É mais uma maneira de Jake se recusar a continuar a viagem “para casa”. A essa altura, apesar da insistência constante de Lucy ao longo do filme, fica claro que não existirá nenhum tipo de volta para um futuro que nunca existiu; apenas paradas em lugares do passado.
PARTE III – Acabar com tudo
“Lucy: Talvez devêssemos voltar para casa
Jake: Para a fazenda?
Lucy: Não! Para a cidade!”
Jake decide que precisa se livrar da sobremesa que tinha acabado de comprar, ou não conseguiria tirar isso da cabeça. Agora ele chama Lucy de Ames, e pela primeira vez ela se questiona se esse é mesmo seu nome. Enquanto não se livra dos potes de sorvete, ele se torna subitamente agressivo. Gostaria de ressaltar rapidamente que essa agressividade é exibida em alguns momentos do filme, e elas são sempre súbitas, fora de controle, e em seguida interrompidas. Entendemos em Freud que a agressividade é uma característica humana que reprimimos em prol de uma vivência social, através do Super Ego. Jake, que apesar de durante todo filme parecer cumprir os requisitos sociais e que, mesmo assim, não atinge felicidade ou amor, inevitavelmente tem surtos de ódio descontrolados que, porém, não permite virem completamente à tona, ainda sob a influência das normas pelas quais foi formado.
Isso acontece porque ainda existe algum funcionamento no seu sintoma. E momentos de combinação entre suas expectativas e sua vivência, mesmo que fantasiosas. O maior dos exemplos para mim é quando Jake leva Lucy para seu colégio, com a desculpa de jogar fora o pote de sorvete que o incomoda. Os dois estão em conflito, ela está incomodada, ela reafirma que passou a noite toda pedindo para ir embora e ele não escutava. Eu gostaria de ter o espaço para analisar a conversa, mas por motivos de resumo vamos colocar simplesmente que ela afirma claramente que se sente coagida a estar ali e ele finalmente pede desculpas. Esse pedido de desculpas a faz retornar ao lugar contra o qual ela estava lutando e vemos um momento raro do filme em que eles demonstram afeto e se beijam.
Um corte súbito, porém, revela que um olhar – o do Zelador – os espiona. A falha do sintoma não permite, portanto, que eles retornem ao lugar ideal inicial. É tarde demais. A crise foi iniciada, assim como o clímax do filme.
Jake entra na escola na desculpa de procurar quem “os espionou” – ele mesmo – chamando-o de pervertido. Jake está se desfazendo do seu Eu Ideal. Nesse momento, ele está lutando contra aquela parte de si que ele despreza, com aquilo que quer recusar aceitar sobre si mesmo.
Em narrativa clássica consideramos o vilão de um filme não necessariamente aquele que vai fazer mal – esse conceito, bem sabemos, é extremamente relativo -, mas sim aquele que impede a realização do desejo do protagonista. Em psicanálise percebemos o tempo todo que o EU, suas instâncias psíquicas, é aquela mesma que frequentemente impede a realização de seus próprios desejos. Você mesmo é, portanto, seu próprio vilão.
Lucy, enquanto isso, largada sozinha, sai do carro e entra no colégio. No caminho ela se depara com Jake-Zelador. Esse é o encontro do Jake atual com a fantasia criada por ele.
Lucy pergunta-lhe então se ele viu seu namorado, a quem ela está procurando. Quando ele a questiona como ele é, ela responde, em um monólogo confuso:
“É difícil descrever pessoas. Foi há tanto tempo que eu mal me lembro. Quer dizer. Nós nem conversamos, essa é a verdade. Nem sei se eu registrei, tinha muita gente. Eu estava lá com a minha amiga… fomos comemorar nosso aniversário, paramos para tomar um drink, e um cara ficou olhando para mim. É um incômodo. O risco ocupacional de ser uma mulher. Não pode nem tomar um drink. Sempre te olham. Ele era um ESQUISITÃO. Sabe?”(…) “Enfim, não consigo, não consigo me lembrar da aparência dele. Por que eu lembraria? Não aconteceu nada. Acho que foi só uma das milhares de não interações na minha vida. É como me pedir para descrever um mosquito que me picou em uma noite 40 anos atrás.”
Gostaria de retomar por um momento algumas colocações da primeira parte deste trabalho, quando afirmei que uma cena deixaria muito clara a introjeção do objeto da libido por Jake que, incapaz de cumprir seu ideal de eu, busca uma cura pelo amor, ao invés da cura analítica.
Já entendemos que Lucy – ou qualquer que seja o nome dessa jovem – era uma fantasia de Jake. Agora temos sua história (ou parte dela): uma garota que Jake nunca conheceu que fantasiou para amenizar sua angústia quanto a frustração do que não pode ser como Eu Ideal.
Lucy, por sua vez, que gradualmente se rebela contra a sua posição na psique de Jake, agora retorna por um único momento o aspecto do que teve de real e então se entende como uma fantasia. Compreensivelmente, parece confusa, e no final do monólogo repete o questionamento: “Não viu ninguém que se encaixe nessa descrição?”, de certa forma ainda buscando-o. Afinal, ambos fazem parte um do outro.
O zelador então lhe oferece as mesmas pantufas que Jake lhe deu quando chegaram à casa dos seus pais. Dessa vez, porém, ela recusa: “Não. São seus”. Reafirmando, assim, o seu desejo de não ocupar mais o lugar ao qual foi convocada até então.
Para mim, essa é uma cena de superação, para ambos. Analítica, se me for permitido o termo. Esse rompimento, porém, que ocorre no contexto do filme, de um Ideal que se rebela e se recusa a continuar naquele lugar, tem a consequência de “acabar com tudo”.
Lucy e Jake encontram-se, então, em lados opostos do corredor vazio da escola. Atrás deles, dois dançarinos aparecem e começaremos a apresentar uma bela coreografia.
A cena coreografada é o ideal romântico que carregamos em nós, que almejamos, que nos move e nos encanta e que, em última instância, nos engana a respeito da realidade. Ela é uma homenagem ao cinema e também a Jake, um romântico apaixonado por musicais que nunca pode viver essa fantasia idealizada, ao mesmo tempo que uma critica.
Os dançarinos “Jake e Lucy ideais” dançam com afinidade atingindo um clímax num casamento. É quando um homem vestido como o zelador interrompe o romance, roubando Lucy de forma vilanesca. Os dois homens – o mocinho e o vilão – coreografam uma batalha que se encerra com a vitória do vilão esfaqueando o mocinho e vitoriosamente conseguindo a garota para si.
Isso, é claro, é mais um impulso agressivo nunca realizado. Freud afirma que a renûncia à agressividade é muito maior que a da libido, e seu custo é extremamente alto. A tragédia de Jake é que a abstenção virtuosa que ele aplicou durante a vida – o cuidado com os pais e a renúncia à libido sexual, não é recompensada com a certeza do amor. De certa forma, acho lindo que esse esforço seja feito, mesmo contrário ao instinto. E é especialmente significativo exatamente porque exige tanto.
Jake-Zelador também, tem permitido um momento de aceitação, quando deixa que Lucy recuse suas pantufas, o abrace e se despeça dele. Ele abdica assim do ideal fantasioso que permitia uma ideia de si mesmo que lhe mantinha vivo.
Tentando encerrar esse trabalho da forma mais otimista que consigo, penso que é exatamente por não vir de maneira fácil ou gratuitamente e sim a grande custo, que é ainda mais digno o Eros que nos une. Kaufman (talvez, quem sabe, permitindo a Jake o que este acredita que Cassavetes permitiu a Mabel) também lhe forneceu um momento de gentileza e reconhecimento, na cena final, para ele e para nós, espectadores. Um momento de catarse que um filme pode proporcionar.
Trata-se do devaneio do Jake-Zelador, que está morrendo dentro do carro e se imagina em um palco, cantando uma música do musical que ele havia mencionado no começo do filme.
A música que ele canta, do musical “Oklahoma!” é a música do vilão do filme, de forma que não é permitido ao personagem uma redenção completa, uma posição idealizada de mocinho, mas é também um momento de vulnerabilidade. No final, ele abdica do seu Ideal de Eu, absorve para si a agressividade, e acaba com tudo. Talvez, para o Superego, na psique, a intenção e a ação possam ser a mesma coisa. Mas, materialmente, na vida e em narrativa, o que você faz define quem você é, mesmo que a graves custas da sua felicidade. Por isso acredito que Kaufman lhe permitiu, naqueles últimos instantes de devaneio antes da morte, um momento de aplauso das pessoas que lhe marcaram – vemos na platéia uma versão mais velha de Lucy, de seu pai, das garotas do colégio e, no palco, com ele, sua mãe. Uma vida medíocre, encenada de forma cinematográfica, antes do fim.
A frase que permeia o filme, possivelmente dita pelo Jake-Zelador, nunca é respondida:
“Eu estou assustado. Me sinto meio louco. Não estou lúcido. As suposições estavam certas. Eu consigo sentir meu medo crescer. Agora é o momento da resposta. Só uma pergunta. Uma pergunta a ser respondida”
Qual, afinal, é a pergunta a ser respondida? Quando acabar com tudo? Quando abdicar do Ideal? Quando se permitir morrer? Quando se permitir viver? Eu aceitaria de bom grado abrir essa questão para discussão.
Notas
[1] Pretendo sempre me referir a essa personagem em negrito exatamente pelo seu nome mudar ao longo da narrativa, com a intenção de deixar o trabalho menos confuso.
[2] Isso está inclusive dentro do tema geral do filme de “acabar com tudo”, a ideia destrutiva que não se sabe quando começou e permeia a mente dos personagens (que talvez possamos colocar como pulsão de morte?).
[3] Trata-se, para quem quiser saber por curiosidade, de um filme sobre uma mulher de classe média baixa americana, fragilizada mental e emocionalmente. O diretor do filme, Cassavetes, foi casado com a atriz Gena Rowlands, cuja atuação foi amplamente elogiada.