O Exército segundo Thomas Sankara

Por Thomas Sankara, traduzido por Edson Mendes Nunes Junior

Durante 4 anos, o Conselho Nacional da Revolução conseguiu inspirar nos burquinenses, individualmente, independente de sua situação social e profissional, o espírito de ser uma peça em um quebra-cabeça que constitui a sociedade. Os militares igualmente. Alguns meses após uma série de motins que quase derrubou a Quarta República, nos parece oportuno revisitar as páginas da história do CNR sobre a imagem que Thomas Sankara gostaria que tivéssemos dos militares. Quem melhor para falar sobre isso, senão ele mesmo? Oferecemos aos leitores extratos de discursos e entrevistas em que o presidente do CNR apresenta sua visão do Exército sob a revolução. A história é feita para tirarmos lições dela!


Sobre os golpes de Estado

É esta corrente de lutas de libertação que ganhou os quartéis e despertou nos militares o interesse na resolução das contradições enfrentadas por seu povo.

Se é verdade que, em mais de um caso, os golpes de Estado têm uma essência messiânica, espontaneísta ou voluntarista, também não deixa de ser verdade que, apesar de seus limites objetivos, eles tiveram, algumas vezes, uma contribuição positiva, partindo do sentimentalismo generoso à aliança ideológica com as massas populares.

Fonte: Discurso realizado no Congresso de SUVESS (Sindicato Único Voltaico[2] de Professores do Ensino Secundário e Superior) em 10 de dezembro de 1982. Disponível na íntegra em:  na página oficial de discursos de Thomas Sankara/

O Exército do Povo

Pela primeira vez, ocorre em Alto Volta algo fundamental, algo absolutamente novo. O povo nunca teve o poder de instaurar aqui uma democracia política. O exército sempre teve a possibilidade de tomar o poder, mas jamais desejou a democracia. Pela primeira vez, nós temos um exército que quer o poder, que quer a democracia e que quer se conectar realmente com o povo. Também pela primeira vez, nós vemos um povo que vem massivamente dar as mãos ao exército. É porque consideramos que este exército, que está no processo de ditar os destinos de Alto Volta, é o exército do povo. É por isso que saúdo também estes cartazes que falam do exército do povo…

… Você concorda que mantemos em nosso exército soldados podres? [Gritos de “Não!”]

Então, temos que caçá-los. Nós os expulsaremos.

Isto pode nos custar a vida, mas estamos lá para correr riscos. Nos estamos lá para desafiar e vocês estão lá para continuar a luta custe o que custar.

Fonte: Discurso de 26 de março de 1983 em Ouagadougou. Disponível na íntegra na página oficial de discursos de Thomas Sankara

“O exército é composto pelo povo voltaico, (…) que conhece as mesmas contradições que os outros estratos do povo voltaico.”

Primeira questão: retorno do exército aos quartéis. Você gosta disso, é seu direito. Mas entenda que para nós, não existem os revolucionários que estão nos quartéis e os que estão fora dos quartéis. Os revolucionários estão por toda parte. O exército é um componente do povo voltaico, um componente que conhece as mesmas contradições que os outros estratos do povo voltaico e nós tiramos o poder dos quartéis. Vocês repararam que nós somos o primeiro regime militar que não estabeleceu nosso quartel-general em um acampamento militar. Isso é muito significativo, melhor: nós o instalamos no Conselho da Entente. Você me entendeu.

Não se trata de os militares tomarem o poder em um dia e devolvê-lo em outro dia. Se trata de militares conviverem com o povo voltaico, sofrerem com eles, lutas com eles o tempo todo.

Portanto, não há um prazo. É claro, você pensa, tenho certeza, nos que afirmam que os militares não deveriam mais fazer política. Estes haviam encantado certos círculos voltaicos para os quais certos militares não deveriam mais fazer política. Isso é tudo que queriam dizer. A prova é que existiam militares no poder que defendiam manter outros militares em prisão domiciliar.

Entrevista realizada em 21 de Agosto de 1983 à Rádio Nacional de Burkina

Fonte: Journal Bendre

Extrato do discurso de orientação política (DOP) proferido em 2 de outubro de 1983 na rádio

É possível encontrar o discurso na íntegra na página oficial de discursos de Thomas Sankara

Conforme a doutrina de defesa da Alto Volta revolucionária, um povo consciente não pode confiar a defesa de sua pátria a um grupo de homens, independente de suas habilidades. Os povos conscientes assumem eles próprios a defesa de sua pátria. Para tanto, as nossas Forças Armadas constituem somente um destacamento mais especializado que o resto do povo para as tarefas de segurança interna e externa de Alto Volta. Da mesma forma, ainda que a saúde do povo Voltaico seja assunto do povo e de cada voltaico individualmente, existe e existirá um corpo médico mais especializado que dedicará mais tempo à questão da saúde pública.

A revolução impõe às Forças Armadas nacionais três missões:

  • Ser capaz de combater todo inimigo interno e externo e participar na formação militar do resto do povo. Isso pressupõe uma elevada capacidade operacional, tornando cada militar em um combatente competente no lugar do antigo exército que era apenas uma massa de funcionários.
  • Participar da produção nacional. Assim, o novo militar deve viver e sofrer no seio do povo ao qual pertence. Acabar com exército faminto por orçamento. A partir de agora, além do manejo de armas, ele estará em campo, ele criará rebanhos de bois, ovelhas e aves. Ele vai construir e garantir o funcionamento de escolas e clínicas, manterá estradas e transportará entre as regiões por via aérea o correio, as pessoas doentes e os produtos agrícolas.
  • Formar cada militar como um militante revolucionário. Foi-se o tempo em que fingíamos a realidade da neutralidade e do apolitismo do exército, fazendo dele o baluarte do reacionarismo e garantindo interesses imperialistas!

Foi-se o tempo em que nosso exército nacional se comportava como um corpo de mercenários estrangeiros em território conquistado! Esse tempo acabou para sempre. Munidos de formação política e ideológica, nossos suboficiais e nossos oficiais engajados no processo revolucionário deixarão de ser criminosos em potencial para tornarem-se revolucionários conscientes, estando no meio do povo como um peixe na água. De ano em ano, a serviço da revolução, o exército nacional popular não dará lugar a nenhum soldado que despreze, viole ou brutalize seu povo. Um exército do povo a serviço do povo, este é o novo exército que vamos construir no lugar de um exército neocolonial, verdadeiro instrumento de opressão e repressão nas mãos da burguesia reacionária que o utiliza para dominar o povo. Tal exército, mesmo do ponto de vista de sua organização interna e de seus princípios de atuação, será fundamentalmente diferente do antigo exército. Assim, em lugar da obediência cega dos militares perante os seus chefes, dos subordinados perante os seus superiores, desenvolver-se-á uma sã disciplina que, embora rigorosa, estará fundamentada na adesão consciente dos homens e das tropas.

Ao contrário do que pensam os oficiais reacionários, movidos pelo espírito colonial, a politização do exército, sua “revolucionarização”, não significa o fim da disciplina. A disciplina em um exército politizado terá um conteúdo novo. Ela será uma disciplina revolucionária. Ou seja, uma disciplina que tira sua força do fato de que o oficial e o soldado, os diplomados e não-diplomados são iguais em dignidade humana e diferem em si apenas por suas tarefas concretas e suas respectivas responsabilidades. Armados com tal compreensão das relações entre os homens, os quadros militares devem respeitar seus homens, amá-los e tratá-los com justiça.

“O exército não deve ser um fardo para o povo”

Q: Há alguns meses você disse que um militar não politizado era um criminoso em potencial. Nesta nova etapa que vive Alto Volta, os militares vão cumprir um papel muito mais militante do que militar?

Thomas Sankara: Precisamente. Em primeiro lugar, porque o exército é uma necessidade, uma ferramenta, um instrumento contra todos os tipos de inimigos, que também podem usar esses métodos. Devemos nos opor a eles com profissionais, que saibam lutar, combater. Mas, por um lado, o exército não pode ser um fardo para o povo, em termos de orçamento, do suporte de manutenção. Por outro lado, o exército não pode ser um meio para perturbar e preocupar as massas. Pelo contrário, devemos tranquilizá-las. De fato, o exército, com todas as vantagens de que ele dispõe, deve estar na vanguarda da luta revolucionária. Tão logo, para nós, o exército voltaico, hoje, é um exército que é chamado para transformar-se fundamentalmente. Um exército que deve sair de sua estrutura neocolonial para se tornar verdadeiramente revolucionário ao lado das massas populares. Ou seja, agora, o militar não deve mais se considerar um mercenário, um empregado encarregado de realizar tarefas, tarefas repugnantes, um estranho no meio do povo, mas, ao contrário, se sentir um elemento do povo, para quem uma missão foi confiada. Isto inclui a defesa do território, a defesa dos interesses das pessoas, sua proteção e segurança. É também a participação na formação militar do povo e na resolução de seus problemas concretos, portanto, na luta pelo poder econômico. Veremos os militares nos campos, administrando fazendas agrícolas, cuidando do gado. Nossa doutrina diz que a defesa do povo só pode ser confiada ao povo. Ele não pode delegar sua defesa a outra pessoa, a um grupo, independentemente de sua habilidade técnica. O próprio povo se defende. É claro que na organização da defesa os papéis não serão os mesmos, alguns serão mais especializados nesta ou naquela área. Assim como no próprio exército. Alguns se especializam em infantaria, outros em cavalaria, outros ainda em aviação. Contudo, tudo isso só pode ser feito quando você confia no povo, e sobretudo quando tem a confiança dele.

Quantos podem ousar encorajar as pessoas dessa maneira? Eles não são muitos. Aqueles que são os inimigos do povo preferem contar com um exército, com um grupo de homens da sociedade que consolidam seu regime, seu poder. Eles recusam armas ao povo e os mantêm sob controle. Não é o nosso caso. Não temos medo de treinar o ovo militarmente. Porque ele confia em nós e nós confiamos nele. O povo sabe que nós lutamos contra os mesmos inimigos que ele, que estamos com ele, que estamos nele.

O exército neocolonial que fazia do militar uma parte privilegiada da sociedade, este exército acabou. E isso vai até a luta contra o elitismo. Somos contra a formação elitista do militar que tem a impressão que sua posição social o coloca acima do povo. Também somos contra as atitudes pequeno-burguesas do exército que acredita que o militar deve ser considerado ou tratado melhor que os outros e não tem os mesmos deveres. Somos contra isso.

Entrevista feita por Saïd Ould-Khelifa, publicada no semanário Revolução, nº 196, em 2 de dezembro de 1983, p. 58 à 61.

O povo monopoliza suas armas, e os guardiões do exército vão até o povo, o que é apenas um retorno justo de sua parte para suas origens recuperadas.

É esta a popular doutrina de defesa que nos permite alinhar hoje um dos mais maciços exércitos e, sobretudo, um dos mais mobilizados e combativos de África, e isto sem afetar o nosso orçamento.  

Fonte: Discurso em 4 de agosto de 1984.

“O agente revolucionário de segurança não se confundirá com o soldado bárbaro, repressor e desumano de ontem”

Do lado militar, o descuido, o gosto pela facilidade viciosa, o pretexto da falta de meios, devem dar lugar a um espírito ainda insuficientemente espartano, apesar dos saltos dados na conquista de um maior valor operacional.

Ás forças militares e paramilitares da ordem, é importante salientar com insistência que o agente de segurança revolucionário não se confundirá com o soldado bárbaro, repressor e desumano de ontem. Pelo contrário, a cortesia, a gentileza, a prestatividade e um toque de modéstia demarcam o afastamento de uma imagem repulsiva de nossas forças de segurança pública sem em nada afetar sua firmeza e vigilância.

Fonte: Discurso em 4 de agosto de 1985

“Nossos soldados devem, mais do que nunca, armar-se com disciplina, disciplina revolucionária”.

É por isso que algumas reflexões me parecem necessárias. Parece-me necessário, de início, falar da disciplina em nossas forças armadas populares. As forças armadas populares de Burkina Faso, se forem corajosas, se forem merecedoras em todos os campos de batalha que atuarem, sejam militares ou de produção, devem ter em mente que o exército está a serviço do povo. O exército deve defender e proteger o povo. É por isso que nossos soldados devem, mais do que nunca, armar-se com disciplina, disciplina revolucionária, para aceitar as instruções e ordens que lhe são dadas, entendendo-as como uma das necessidades de endurecimento e organização em benefício do nosso povo. Contudo, os dirigentes devem igualmente ter o espírito para demonstrar competência técnica, mas também e sobretudo, aliada a esta competência técnica, a consciência política revolucionária que permitirá aos homens segui-los indubitavelmente e sem qualquer reserva.

É também a cortesia e o papel essencial das forças de segurança. Ano passado, neste mesmo lugar, mencionei esta questão da cortesia nas forças armadas, nas forças de segurança. Fiz questão de convidar nossas forças de segurança para dar ao nosso povo e seus amigos toda a atenção necessária.

Mas hoje, devo convidá-los a partir para a ação, a serem mais firmes, pois infelizmente em nossas fileiras, nas fileiras de nossas forças de segurança, ainda existem homens, camaleões, que conseguiram manter um disfarce enganoso, roubar a propriedade do povo, os privilégios e estatutos do povo, para aterrorizar e explorar o povo, aterrorizar e explorar os amigos do nosso povo. Estes terão que ser combatidos, terão de ser, indubitavelmente, expulsos de nossas fileiras. Porque são inimigos do povo.

Fonte: Discurso em 4 de agosto de 1986.


Referências

[1] https://www.thomassankara.net/larmee-selon-thomas-sankara/

[2] Referente à antiga República de Alto Volta.

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