Por Harrison Fluss*, via Jacobin Magazine, traduzido por Daniel Alves Teixeira.
Em julho de 1820, G.W.F. Hegel e seus estudantes chegaram a Dresden para ver algumas das artes da cidade. O ano não era muito auspicioso para círculos liberais ou revolucionários.
O exército de Napoleão debandou, e o poder reacionário da Europa havia restaurado a velha ordem através da Santa Aliança. Com policiais espiões bisbilhotando por toda a parte, sentimentos positivos pela Revolução Francesa e pelos fantasmas do progresso eram raramente exibidos. Tais sentimentos foram reprimidos pela reação, e até mesmo falar favoravelmente sobre a revolução em público ou círculos oficiais poderia ser quase uma loucura. Por isso que no caso de Hegel – alguém descrito como um filósofo estadista prussiano – a cena descrita por Terry Pinkard é marcante:
“Hegel juntou amigos e colegas e ordenou o melhor champagne – Champagne Silery, o mais distinto daquele dia. Ele passou as garrafas em torno da mesa, mas “quando se tornou claro que ninguém na mesa sabia exatamente porque eles deveriam beber naquele dia em particular, Hegel se virou com uma surpresa dissimulada e em voz alta, declarou, “Este copo é para o 14 de Julho de 1789 – Para a tomada da Bastilha.”
Desnecessário dizer, esse brinde chocou os estudantes que estavam ali, entre eles Eduard Gans, que mais tarde se tornaria professor de direito de Marx. Como pode Hegel ser tão imprudente em expressar tais simpatias perigosas no auge da Restauração Europeia?
Hegel uma vez disse a seu amigo Imannuel Niethammer que ser um filósofo era ser uma um “expositus”, uma pessoa exposta. Uma vez que a Revolução Francesa descobriu que o nous, a razão, governa o mundo, Hegel, o filósofo da razão, inevitavelmente encontrar-se-ia – gostasse ele ou não como um professor de filosofia do estado Prussiano – aliado a essas forças progressivas e potencialmente rebeldes. O filósofo da Razão Absoluta teve assim consequências políticas reais.
A revolução francesa decididamente deu forma a vida e ao pensamento de Hegel. Uma das primeiras histórias que temos dos dias dos estudantes de Hegel no seminário de Tubingen é sobre como ele e seus amigos-estudantes, Holderlin e Schelling, plantaram juntos uma “árvore da liberdade” em 14 de Julho de 1793, quando o terror jacobino estava em seu auge. Eles dançaram e cantaram canções revolucionárias em torno dela, antecipando que o novo amanhecer revolucionário em breve viria para a Alemanha.
Mais ainda do que plantar um mastro revolucionário, Hegel era membro do clube jacobino em Tubingen. Essa experiência o inspirou a escrever passagens subversivas em seu “Fragmentos Históricos” coletados por Karl Rosenkranz do período de Hegel em Berna. Aqui estão alguns excertos.
“Como é perigosa a riqueza desproporcional de certos cidadãos até mesmo para a forma mais livre de constituição, e como isso é capaz de destruir a liberdade em si mesma é mostrado pela história no exemplo de Péricles de Atenas, dos patrícios de Roma, a queda dos quais a influência de Graco e outros em vão procurou retardar através de propostas de leis agrárias….
Seria um importante tópico de investigação ver quanto do estrito direito de propriedade teria de ser sacrificado em prol de uma forma durável de república. Nós talvez ainda não fizemos justiça ao sistema do sansculotismo na França na busca das fontes de sua demanda por maior igualdade na propriedade em meio a rapinagem.”
Nós também encontramos essa passagem preservada nos estudos históricos, que podem ser um caso da oratória jacobina do jovem Hegel, dirigida para um defensor reacionário do status quo confrontado com as energias revolucionárias desencadeadas do povo.
“Existe uma grande diferença entre a passividade da subordinação militar (sobre uma monarquia) e a fúria da insurreição, entre a ordem de um general e a chama do entusiasmo que a liberdade estabelece através de todas as veias do ser vivo. É essa chama sagrada que tenciona todos os nervos, é por essa chama, é para gozar dela, que eles se empenharam. Esses esforços são os gozos da liberdade, e você deseja que o povo renuncie a eles. Essas atividades, esse esforço em nome do público, esse interesse é o princípio ativo, e você deseja que o povo jogue-o ainda mais na inanição e no torpor.”
Depois do reino do Terror e da queda de Robespierre, Hegel passou para uma visão mais sombria e muitas vezes bastante crítica do Jacobinismo no fim de seu período em Berna, até a publicação de sua obra mestra, a Fenomenologia do Espírito. Mas é importante entender como Hegel entendeu o papel Jacobino como não inteiramente retrógrado, mas progressivo para o desenvolvimento da liberdade humana, ou o que Hegel chama do desenvolvimento do Espírito humano na história.
A crítica de Hegel ao Terror era mais salutar para os Jacobinos do que os créditos que a escola tradicional concede. De acordo com alguns, Hegel tomou uma posição contrarrevolucionária, similar aquela de Edmund Burke. Contra essa visão reducionista, temos de revistar os escritos de Hegel em Jena e leituras de 1805-1806. Hegel é claro nesses trabalhos em afirmar que para a ideia da liberdade se tornar carne, o Espírito precisa de força para criar as condições da liberdade. Como ele coloca em seu Wastebook Aphorisms de Jena: “Através da consciência (racional) o espírito intervém na ordem do mundo. Essa é a ferramenta infinita do Espírito, e também suas baionetas, canhões, e corpos.”
Hegel pensava que o Espírito – a atividade dos seres humanos se tornando conscientes de sua liberdade – tinha de atualizar a si mesma na história. Mas nem todas as condições para sua atualização estão maduras. Isso é, nem todas as condições são revolucionárias. Quando o assunto em questão está maduro, existe um imperativo para manifestar os interesses do Espírito como um fato histórico objetivo.
A liberdade do povo está, para Hegel, encarnada na unidade racional do povo. Mas a liberdade universal não vem do nada. Ela tem de “recolher-se nessa unidade.” Ela tem primeiro que constituir-se em si mesma “como uma vontade universal, fora da vontade dos indivíduos.”
Porém, a vontade do povo nem sempre é transparente para si mesma. Em outras palavras, para usar a linguagem de Hegel, talvez ela seja pega em “sua imediaticidade”. A criação desse estado pressupõe portanto a superação de sua imediaticidade, e historicamente isso é triunfar através da guerra ou da ditadura revolucionária. Hegel justifica então em suas leituras de Jena as medidas de emergência tomadas pela França revolucionária em meio às ameaças domésticas e internacionais que esta enfrentava.
Foi, para Hegel, o terrível medo dos revolucionários franceses que “sustentou o estado e a totalidade, no geral”. Em vez de exercício caprichoso e arbitrário do poder despótico, a ditadura revolucionária francesa foi o que Hegel chamou de “pura dominação assustadora”. Ou, nas inflexíveis palavras de Robespierre e Saint Just: Terror. Para Hegel essa dominação transitória era “necessária e justa”, visto que “ela constitui e mantém o estado como esse indivíduo real.”
Contudo, a tirania jacobina cedo se tornou supérflua de acordo com Hegel: ela perde sua ligação com as necessidades do seu tempo e se torna terrorista no mau sentido, transformando-se em um terror desarticulado da necessidade histórica. A consideração de Hegel aqui está de acordo com a lógica especulativa da revolução em Fenomenologia do Espírito: que os aspectos voluntaristas do regime jacobino se tornaram uma noite de suspeita e morte.
Mas seria um erro pensar que a crítica da Hegel vem da Direita. Hegel reconhece a necessidade do momento de “Liberdade e Terror Absoluto” na Fenomenologia como parte do desenvolvimento da liberdade humana e isso é importante para ver como Hegel entende a necessidade de Robespierre ele mesmo.
Uma vez que o povo é defendido da contrarrevolução, e o necessário – porém progressista – tirano institui um processo educativo para o povo, sua existência é substituída pelo domínio da lei. “Através da obediência (à vontade racional), a lei em si mesma não é mais uma força alienígena, mas antes a vontade universal conhecida.”
O povo pode achar a tirania odiosa ou moralmente repugnante, mas a verdadeira razão pela qual a tirania é derrubada não é porque ela seja má, mas porque ela não era mais necessária para o desenvolvimento da liberdade humana. De acordo com Hegel, Robespierre caiu não porque ele era mal, mas “porque a necessidade o havia deixado, e então ele foi derrotado pela força”. Em uma passagem bastante enigmática, Hegel declara que “o necessário (a queda do tirano) acontece – mas cada porção da necessidade é geralmente atribuída somente aos indivíduos. Um é o acusador e defensor, o outro um juiz, o terceiro um carrasco, mas são todos necessários”.
Em defesa de uma tirania racional, é importante notar o telos emancipatório que Hegel atribui a ela. Seu exercício se destina a ser temporário, ajudando a sustentar e proteger as forças e tendências progressistas. Portanto, a propagada oposição entre ditadura e liberdade se dissolve, já que o primeiro ajuda a fomentar o último.
Os jacobinos podem ser vistos como a expressão de um movimento histórico real para superar a irracionalidade do feudalismo. Eles se ligaram ao poder popular para obter seu poder, ajudando a moldar essas forças em retorno. Hegel reconheceu a necessidade de métodos revolucionários plebeus também no caso dos irmãos Graco em sua luta contra os patrícios romanos. E ainda que Hegel nunca tenha escrito explicitamente sobre a revolução do Haiti, Hegel reconhecia positivamente a “república livre e cristã” do Haiti, estabelecida através de uma revolta escrava negra Jacobina.
Hegel reconheceu em seu último ensaio sobre a Lei de Reforma Inglesa que a constituição jacobina de 1793 era o documento mais democrático que o mundo já tinha visto. Mas ele permanecia somente um pedaço de papel. Comparado com as sublimes ideias e com a retórica dos jacobinos democráticos, os interesses da revolução tiveram que se desenvolver de um modo mais prosaico.
Entretanto, com o advento do bonapartismo, essa prosa foi escrita através da ditadura e da guerra. Hegel pode ter criticado os Jacobinos por seus excessos, e como esses excessos cresceram como resultado de sua falta de eficácia histórica. Mas no momento que escreveu a Fenomenologia do Espírito, Hegel estava apoiando os exércitos de Bonaparte enquanto eles rasgavam através da Europa. Quando Hegel escreveu propagandas pró-bonapartistas como editor de um jornal em Bamberg, ele era – para usar uma expressão leninista – um derrotista revolucionário. Ele queria que seu governo local perde-se e fosse reformado pelos franceses.
A Fenomenologia do Espírito foi um manifesto pós-jacobino e bonapartista anunciando a alvorada de uma era nova e racional com o imperador na linha de frente. Em uma carta para Neithammer de 1808, Hegel afirma que a vontade dos céus está encarnada na vontade do imperador, uma vez que Napoleão era, para Hegel, o único agente disponível no momento para levar a cabo as ideias da revolução. Nos olhos alemães de Hegel Napoleão foi capaz – pelo menos durante algum tempo – de transformar a revolução permanente de Robespierre em uma guerra permanente de exportação da revolução. No jornal para o qual Hegel escreveu em Bamberg, ele apoiou concretamente a exportação revolucionária na Confederação do Reno de Bonaparte.
Depois de Waterloo, Hegel teve de conservar seu bonapartismos ante a prosa ainda mais seca do estado prussiano – um estado que Hegel criticou seja aberta ou dissimuladamente por muitas vezes. Mas é importante entender a justificação parcial do Jacobinismo na ênfase que ele dá ao reconhecimento da necessidade histórica como parte integrante da odisseia do Espírito. Esse tipo de entendimento dialético do Jacobinismo: criticar o voluntarismo de sua política, mas também apreciar criticamente seus aspectos positivos, foi mais tarde desenvolvida por Marx.
O que se poderia chamar de espírito Jacobino de Hegel não estava perdido nos pensadores políticos radicais que seguiram na sua esteira. Bruno Bauer, outrora mentor de Marx, compreendeu quando era um jovem hegeliano que a essência do pensamento de Hegel é Jacobino. Bauer escreveu, parte em tom de brincadeira, mas também um pouco a sério como “ (Os hegelianos) não são alemães, eles são revolucionários franceses … Não é por nada que esse povo admira a Revolução Francesa e estuda sua história – eles iriam imita-los. Entre eles, quem sabe se Dantons, Robespierres, e Marats já não estão em mãos.”
Friedrich Nietzsche, o arqui-inimigo filosófico da Revolução Francesa, ou o que ele chamava de “a última grande revolta escrava” da humanidade, entendia Hegel como seu herdeiro filosófico. Ele notou que havia tanto sprit francês em Hegel que era difícil chama-lo de um verdadeiro alemão; ele revelou o segredo da política hegeliana como o “egoísmo das massas”. Para Nietzsche, essa expressão filosófica do plebeísmo podia somente terminar em revolução e socialismo.
O que esses pensadores retém é o que o próprio Marx compreendeu: a essência da dialética de Hegel é crítica e revolucionária. A velha toupeira de Marx que cavou seu caminho em direção à luz de um mundo emancipado também é uma criatura hegeliana. Como Hegel coloca em suas palestras sobre a filosofia da história, a toupeira do mundo-espírito “escava bem.”
Hoje, no dia da Bastilha, vamos dar um brinde para Hegel: o filósofo da Revolução Francesa.
* Harrison Fluss é doutorando em filosofia na Stony Brook university e editor correspondente para a Historical Materialism.
1 comentário em “Hegel e a Queda da Bastilha”
textos espetaculares; parabenizo a equipe que os seleciona e desejo que continuem em tal desiderato….