Por Fran Alavina
Nosso colaborador Fran Alavina reflete sobre a alienação do sentir na era do capitalismo digital.
Há alguns meses, o mundo se voltou para os atentados de Paris, como outrora se voltou para eventos semelhantes em um passado recente. São eventos políticos, e não apenas de terror, que nos impõem a urgente necessidade de se pensar as causas e condições de problemas sempre protelados, porém nunca resolvidos, ademais, na maioria das vezes, nem se quer discutidos com a seriedade e honestidade que demandam. Os ataques de Paris e outros semelhantes são acontecimentos residuais, uma vez que se somam aos de mesmo tipo já acontecidos, deixando notória a possibilidade de repetição. Tais acontecimentos vinculados ao eixo do terrorismo, justamente por serem residuais são acumulativos, se assemelhando a enredos cujo nó narrativo que adensa a trama nunca é completamente desfeito aos olhos do espectador. Muito é oferecido e falado nos meios midiáticos de alcance global, mas nunca se expõe claramente o real jogo de interesses que sustenta um “discurso comum” de expor em demasia o que se quer, para manter inalterado o que se quer ocultar. Logo, tal discurso comum, aquele midiático, opera como uma trama na qual facilmente são identificados os “protagonistas” e os “antagonistas”. Tais “papéis” funcionais do discurso não são constituídos por aqueles que ouvem, porém são dados pelos “donos dos discursos”. Nunca pelos que assistem, sempre pelos que falam.
Dessa forma, na trama narrativa midiática, novamente a religião e a cultura islâmica ocupam um lugar de protagonismo. Na maior parte dos discursos, aquele das grandes agências de notícias e redes de tv, observa-se o protagonismo do vilão. Para a confirmação desta vilania apela-se para uma aparente “obviedade”. Assim, constitui-se a narrativa de uma trama trágica e doentia para um Ocidente que se quer sadio, pois defini a si mesmo como secularizado. A profecia filosófica da “morte de Deus” parece ter se completado no Ocidente, que soube “matar Deus”, mas não a Religião, fazendo deste âmbito um nicho de mercado rentável. Daí, que o fundamentalismo religioso em sua vertente islâmica é dado sempre como um enigma perante o qual o mundo ocidental, dito “secularizado”, permanece em estado de estupefação.
Verifica-se, antes de qualquer coisa, que nos momentos que se seguem imediatmente aos ataques, todos permanecem atônitos e pasmos, pois ante o que parece incompreensível, isto é, onde o pensamento é incapaz de operar com desenvoltura, não restam senão os sentimentos, as sensações e as emoções. Antes da apresentação dos supostos elementos propícios ao entendimento do caso assistido, os eventos são sempre dados como algo a ser sentido. Eles excitam, antes de tudo. Pertencem, logo, ao campo sensível, uma vez que excedem a excitação ordinária de um mundo que se satisfaz, sempre mais, sensitivamente e emotivamente com figuras do mundo pop; séries e seus respectivos remakes infindáveis; ou, com os reality show, agora dos mais variados tipos.
Assim, as imagens dos ataques trasbordam os seus próprios limites imagéticos, posto que para aqueles que não viveram a tragédia pessoalmente, as imagens do evento torna-se o próprio evento. Os ataques serão, portanto, as imagens mostradas e vistas. Pela excitação de comoção que geram, as imagens são repetidas hiperbolicamente para que depois que estejam na retina do mundo possa se seguir o discurso uniformizador. As imagens tem a precedência sobre o discurso, tanto que os discursos nunca estão desacompanhados das imagens. Não basta noticiar, tem que se mostrar, exibir. O mundo não podendo reduzir-se totalmente à sua imagem, é subsumido univocamente em uma imagem mundialmente vista, naqueles instantes que se seguem aos ataques terroristas de grande repercussão. Em virtude da excessiva exposição das imagens, as imagens do terror e o terror das imagens são a mesma coisa.
Em um mundo secularmente acostumado a sentir pelos olhos, nossa sensibilidade manca é facilmente atraída por um tipo peculiar de excitação. Uma excitação provocada por acontecimentos não positivos, por eventos marcados pela dor e pelo horror, como foram os ataques de Paris. Sentindo sempre pelo olhar e conformando-se à tradição cristã iconográfica da dor, que fez da crucificação uma imagem perene da estilização dolorosa, a excitação pela dor, cujos agentes hoje são os mass media, invade por completo o domínio dos outros elementos que perpassam o caráter político e cultural dos ataques. Desse modo, a valência política dos acontecimentos é permeada, ou melhor, tomada de assalto, pela inflexão sensível–afetiva, ou seja, pelo campo estético: de tal modo que estético e político parecem ser uma só coisa. A expansão do campo sensível, dada por uma comoção antecipada e teleguiada, oblitera assim o entendimento das constituintes políticas-sociais mundiais que estão em jogo nos ataques como os de Paris.
No modo como foram tratados, na cobertura jornalística dos últimos ataques, se expressou, uma vez mais, o caráter estético do presente. O horizonte de sentido cada vez mais emotivo–passional–pulsional que perpassa nosso modo de ser na atualidade. Todavia, deve-se, aqui, não se confundir simploriamente estética e cosmética. Por estético entenda-se todo o âmbito afetivo, emocional, sensitivo, e não apenas as atividades e discursos que se relacionam à beleza. Em outros termos, entenda-se por estético tudo que está ou se adéqua ao domínio de nossa primaz condição sensível. Por conseguinte, um dos traços mais peculiares do presente é máxima insistência no sentir ante o pensar e o agir.
A ordem econômica estabelecida se apropriou desta nossa condição primaz. Desde há muito, manipula desejos, agora passou a se reproduzir na extorsão de nossos sentimentos e sensações. Se antes queriam pensar e agir por nós, hoje querem sentir por nós. Estamos como que fadados a sermos expropriados de nós mesmos. As emoções e sensações são cada vez mais midiatizadas, por isso menos interiorizadas. Cada vez mais é usurpado um dos últimos redutos da constituição do liame comum: o do sentir compartilhado. A atomização do sentir, a excitação narcísica que se compraz nos contemporâneos reflexos de si, as selfies, parece abandonar seu caráter individualista apenas nos casos de grandes tragédias, que podem ser aumentadas ou diminuídas ao bel–prazer dos “donos do discurso”, segundo a vontade dos impérios hegemônicos midiáticos.
Como se verificou no caso dos últimos atentados de Paris, antes que fosse oferecido um pensamento pronto, primeiro foi necessário inundar o campo sensível-afetivo. Tal foi feito para que o discurso inteligível pronto, que se segue a comoção provocada pela exibição ostensiva das imagens, possa ser mais passivamente recebido, uma vez que a mente ainda encontrava-se turvada pelos efeitos de uma excitação excessiva. Contudo, há mais tragédias dentro de tragédia maiores, não é apenas o pensamento que se oferece já pronto, também a forma do sentir é dada antecipadamente. Nos termos do pensador Mario Perniola, trata-se de uma sensologia. Isto é, as emoções e a comoção geral que os sujeitos expressaram não são elaboradas por eles mesmos.
Os mass media oferecem o conteúdo do “pensar”. Não para o pensar no sentido forte e digno do termo, pois pensamento é atividade, e o que eles, os mass media, oferecerem é a passividade do já pensado. Logo não há propriamente pensar, mas sim conteúdo mental elaborado por outro. Não há propriamente espectador no sentido clássico do termo, mas tão somente receptor. Posto que o conteúdo mental é recebido passivamente, não pode haver atividade autêntica, mas um estado de letargia. Cumpre-se assim a realização da paralisia do pensamento e da ação, isto é, a usurpação da autodeterminação do domínio do conhecer (gnosiológico) e do fazer (ético-moral-político). Porém, uma vez chegada às redes sociais e à virtualidade informacional, a usurpação avança sobre o domínio do sentir. Portanto, invade o campo estético de nossa existência.
A babel mass midiática incide agora, como nunca antes, violentamente sobre nossas emoções, afetos, sentimentos, sensações, paixões, desejos, sobre o sentir em seu sentido mais amplo: rouba-nos então a sensibilidade. Se já furtavam a capacidade de pensar e a orientação das ações, agora nos furtam o que sentimos. Sentem por nós e nos dão o já sentido.
Daí que imediatamente após os ataques em Paris, nas redes sociais cessaram-se as selfies da felicidade obrigatória para se multiplicarem os perfis condoídos. A sensibilização geral se expressou rapidamente na formulação express da comoção: “Somos todos (…)”. Para a sensibilidade atual, que se quer sempre excitada, parece não haver modo mais expressivo de declarar solidariedade afetiva do que a penúria do sentir disfarçada de sentimento comum. Porém, como a imagem detém a precedência, o discurso vem acompanhado de um perfil nas cores do país para o qual a comoção se dirige. Assim, já é dado, como um modelo fast–food, ou seja, como um produto instantâneo ao alcance de todos, um modo de expressão já elaborado do sentimento. Logo, se tem uma expressão afetiva impessoal. Ora, como só podemos medir a intensidade de uma emoção ou sensação pela expressão da mesma, é forçoso concluir não o óbvio, isto é, a comoção geral, mas sim que aqueles que aderiram ao perfil padrão da comoção se satisfaziam em expressar um modelo já dado. Satisfaziam-se, pois, com um sentir antecipado: um sentir não elaborado, porém já dado pronto para o consumo instantâneo, um sentir alienado.
Os perfis da comoção padrão satisfaziam-se com a usurpação de sua própria sensibilidade, em outros termos, expressavam, ainda que inconscientemente, a insensibilidade de que estavam acometidos, pois onde reside a diferença entre não sentir e deixar que outros sintam por nós? Este modelo express de comoção, que revela o roubo massivo de nossa sensibilidade, se coaduna com a repulsa do luto que se deveria seguir a toda dor. A comoção padrão faz da solidariedade com a dor alheia uma obrigação social-estética. Quando o nível de excitação começa a baixar, as selfies voltam a proliferar, os perfis terão de volta as cores do hedonismo difuso do capitalismo estético. Voltam a tona os sorrisos uniformizados, as alegrias ostentadas, aquela felicidade exibicionista que só tem sentido se for exibida e encenada com ar de espontaneidade. A dor da comoção passará a ser mais um post na linha do tempo, rememorado no fim do ano: não pelo dono do perfil, mas pela administradora da rede social.
Assim, se, por um lado, os ataques terroristas expressam a guerra contra o terror que não deu certo, bem como nos mostram as horrendas vicissitudes as quais o capital expõe o mundo; por outro lado, tão tragicamente quanto o terror, nos dão a certeza de nossa crescente incapacidade de sentir, da penúria de nossa sensibilidade. Isto é, de uma alienação do sentir que se segue da alienação do pensar. Certeza de uma insensibilidade patente, pois nossos sentidos são cada vez mais extraviados; nossa relação sensível direta com o mundo passou a ser mediada pelos mass media; nossa capacidade de comoção, indignação e solidariedade comum aos que sofrem tornou-se não apenas seletiva, mas friamente impessoal. Não somente escolhem por nós sobre qual tragédia se deve chorar, mas também a intensidade e a expressão do sentir. Cabe, pois, não esquecer que não se trata de questões exteriores ao político, pois autômatos estéticos são também autômatos políticos.