Por Randall Terada, via Mariborchan, traduzido por Daniel Alves Teixeira
A teórica psicanalítica e filósofa Alenka Zupančič visitou Toronto em abril de 2014 para dar uma palestra sobre sexualidade, ontologia, e o inconsciente. Junto com Slavoj Žižek e Mladen Dolar, Zupančič temestado na vanguarda de uma onda política de teoria psicanalítica infundida com filosofia, baseada no trabalho do psicanalista francês Jacques Lacan.
O seu trabalho tem tido um impacto em áreas tão diversas como a ontologia e o materialismo, ética, crítica ideológica, estudos de cinema, e as teorias sobre o sujeito. Em Ethics of the Real (2000), Zupančič usa Kant como o trampolim para estabelecer as coordenadas de uma teoria ética lacaniana que contrasta fortemente com a teoria ética de Emmanuel Levinas e a ética relacional de Judith Butler. Ela publicou sobre Nietzsche em, The Shortest Shadow: Nietzsche Philosophy of the Two(2003), Hegel e comédia, The Odd One In: On Comedy (2008a), um pequeno tratado lacaniano, Why Psychoanalysis: Three Interventions (2008b), e uma boa quantidade de intervenções teóricas incisivas em entorno da obra de Alain Badiou e Quentin Meillassoux (2004, 2011a). Após sua conversa com Lacan Toronto[1](2014), ela amigavelmente teve tempo para sentar-se com Randall Terada para uma conversa cobrindo seu trabalho mais recente.
Sexualidade e ontologia
Randall Terada: Eu gostaria de começar com a pergunta que você colocou para a sua audiência de Toronto hoje: quando Freud descobriu a sexualidade, o que isso implicou? O que imediatamente me veio à mente foram as palavras famosas de um juiz em uma questão judiciária envolvendo a pornografia: “Não sei como definir isso, mas eu sei o que é quando eu vejo” Mas esta não é de forma alguma a sua resposta. Na verdade, a sexualidade, se eu entendi você corretamente, não é uma coisa; não é qualquer tipo de positividade. Somando-se a isso, você menciona o estudo de Ofra Shalev e Enoque Yerushalmi (2009) em que foi registrado um certo grau de resistência dos terapeutas em abordar o assunto da sexualidade, em parte devido a uma crença de que a sexualidade era usada como uma cobertura ou máscara para disfarçar outras questões, “mais profundas”. Também, neste estudo, dois terapeutas entrevistados teriam dito que as questões sexuais devem ser tratadas por sexólogos e não por psicoterapeutas (p. 353). Isso me faz perguntar sobre qual é hoje precisamente o status teórico da noção freudiana da sexualidade?
Zupančič: Sim, falamos de sexualidade abertamente, nada do que se envergonhar – é bom para a nossa saúde física e mental. No entanto, com relação à descoberta de Freud do papel determinante do psico-sexual no nosso desenvolvimento, devemos nos perguntar se ele realmente foi integrado nas práticas psicanalíticas de hoje, ainda que de forma meio diluída? Eu acho que isso está longe de ser o caso.
No estudo de Shalev, os terapeutas tendem a acreditar que a sexualidade serve como uma defesa contra questões mais profundas, como a intimidade e a identidade de si. As questões sexuais são vistas como um impedimento para os objetivos de ajudar os pacientes a se ajustar ao seu entorno e aos encontros diários. A sexualidade é reduzida para o foco em encontros sexuais em vez de aspectos psico-sexuais do desenvolvimento. Sim, surpreendentemente, dois terapeutas afirmam que questões sexuais devem ser tratadas por sexólogos e não por psicoterapeutas. Um terapeuta, ao descrever um de seus pacientes, afirma: “Era como se ele estivesse pensando ‘Isso é terapia então eu possa falar sobre tudo'” (p. 354).
Quando a noção freudiana da sexualidade é reduzida para diferentes identidades sexuais, para práticas sexuais diferentes constituídas não sei como … como intercurso sexual ou coisas perversas que alguém faz ou não faz e usa para perseguir seu terapeuta, então sim, entendida dessa forma, pode-se quase concordar com a afirmação de que a sexualidade serve como uma defesa contra questões mais profundas e mais difíceis. A ironia é que, para Freud, a sexualidade era uma questão mais profunda e mais difícil por trás das diferentes práticas sexuais, algo inerentemente problemático e precisamente disruptivo da identidade. Não há identidade sexual; a sexualidade é a própria coisa que perturba toda a identidade. Freud disse que apenas uma parcela muito pequena das tendências sexuais insatisfeitas podem encontrar uma saída no coito ou outros atos sexuais. O ponto é que esta própria impossibilidade de satisfação sexual plena na ausência de todos os obstáculos externos é precisamente uma parte constitutiva da sexualidade inconsciente como tal; não é algo a ser preenchido por outra coisa.
Randall Terada: Sua palestra na Lacan Toronto abrange alguns temas importantes em torno da sexualidade, ontologia, e o inconsciente. Você poderia elaborar um pouco sobre estes temas?
Zupančič: Existem dois níveis em que eu abordo esta questão da sexualidade e do inconsciente. Um é tentar reintroduzir a discussão psicanalítica da sexualidade, como o sexo deve ser tratado não apenas como prática, porque muitas vezes no movimento da diferença sexual para diferença de gêneros existe algo que é perdido. Joan Copjec (2012) tem um bom argumento aqui. Há um certo questionamento ontológico que se perde na discussão contemporânea que se move um pouco rápido demais da sexualidade para performatividade de gênero e identidade de gênero em geral.
O sexual não é um domínio separado da atividade humana ou da vida humana. A sexualidade é algo que existe em si apenas como outra coisa. A sexualidade é a própria “fora-de-si”dade do ser. O que é mais perturbador na descoberta freudiana não é a ênfase na sexualidade, a ênfase em questões sujas; mais preocupante era o caráter ontologicamente incerto da própria sexualidade. Então quando eu digo que a sexualidade é constitutivamente inconsciente, eu me refiro a alguma negatividade fundamental implicada na sexualidade, mas que dá, como tal, uma estrutura para o inconsciente.
A causa de embaraço na sexualidade não é simplesmente algo que está aí, em exposição, nela mesma. Mas ao contrário, precisamente algo que não existe. Por exemplo, os contos de fadas que recitamos para explicar a sexualidade para as crianças não existem tanto para distorcer a explicação realista, mas para mascarar o fato de que não há uma explicação completamente realista. Mesmo na explicação científica mais exaustiva falta o significante que explicaria o sexual como sexual. É aqui que o curto-circuito entre o epistemológico e o ontológico ocorre. Pois este lapso epistemológico é ao mesmo tempo ontológico.
Portanto, a questão de algo que falta não diz respeito a um pedaço faltante de conhecimento sobre o sexual como uma entidade completa em si mesmo. Ela se relaciona com o sexual como não totalmente constituído em si mesmo, e, por esta razão, constitutivamente inconsciente. A sexualidade inconsciente é este curto-circuito entre os níveis epistemológico e ontológico; não é nada mais que a forma de existência da negatividade em que eles se sobrepõem. E a cultura não é simplesmente uma máscara do sexual; é uma máscara para este lapso ontológico, para algo no sexual que não é, no sentido de não totalmente constituído, não aí. Se para Freud o inconsciente é, por definição, sexual, isso não é porque ele tem sempre um conteúdo sexual, mas porque o seu lapso propriamente ontológico, esta quebra ou buraco, só é transmitido pela sexualidade.
Assim, o projeto mais ambicioso é pensar tudo isso em termos mais gerais da ontologia, o questionamento ontológico como tal, e, para procurar uma articulação diferente, a indicação que eu estou fazendo é algo como isto: Há algo no próprio ser, no ser em geral, que dita ou está em jogo, pelo menos no próprio modo no qual o ser ele mesmo aparece. Por que ele aparece como ele aparece? Em um certo nível, mais uma vez, você é realmente confrontado com a questão da relação entre ontologia e epistemologia. A aparência não é apenas uma constituição subjetiva da realidade; existe também algo na própria realidade que determina esse tipo de constituição, como se houvesse algo no nível ontológico que está envolvido na própria forma como o ser aparece.
Destituição subjetiva
Randall Terada: Em seu livro Ethics of the Real, você faz uma proposição convincente de uma interpretação da lei moral de Kant baseada no registro do real. Meu entendimento é que uma subjetividade ética é aquela que passou ou “ultrapassou” uma radical dessubjetivação, como quando você indica, por exemplo, a “passagem através do ponto impossível do não-ser de si mesmo … onde parece que se pode dizer de si mesmo apenas ‘eu não sou’ ” (p. 32). Isto tem sido chamado por alguns comentadores lacanianos “destituição subjetiva” e surgiu em várias formas, em particular no contexto de identificar o estado teórico preciso do objeto lacaniano. Para exemplificar, Žižek menciona os traumatizados nos campos de concentração nazistas, a figura de Sethe no livro de Toni Morrison “O Amado”, e, claro, o seu tratamento do caráter de Sygne de Coufontaine e Antígona em seu Ethics of the Real. Embora extremamente variadas, o que todos elas têm em comum é uma redução a esse momento cartesiano preciso da loucura, a perda da identidade substancial de si, de sua própria substância, a perda do mais precioso cerne de sua individualidade. Este momento se encontra entre a natureza e a cultura; não é nem a natureza nem a cultura mas antes um momento necessário que deve acontecer se um sujeito deve emergir. Você cita aqui a afirmação de Kant que “um homem para se tornar não apenas legalmente mas moralmente um bom homem requer uma espécie de renascimento, uma criação ex nihilo” (Kant, 1960, pp. 42-43). O que é “destituição subjetiva” e talvez você poderia também falar um pouco de suas diferenças com Alain Badiou relativos à formação de uma “subjetividade ética”?
Zupančič: A destituição subjetiva aponta para a descontinuidade no sujeito. O sujeito emerge nesta dimensão ética. É precisamente através da figura de Synge de Coufontaine que eu fui capaz de pensar através disto. É essa ideia de que a destituição subjetiva é induzida por algum tipo de evento, e é através disso que algum tipo de dimensão de algo que não era simplesmente parte da configuração antes, agora é presente. Há uma escolha que se torna possível e que não estava lá antes. Então, quando se fala de dessubjetivação ou destituição subjetiva, não devemos cometer o erro de pensar em começar com um sujeito e então você tem todo um movimento para destituir ele e então você é deixado com o quê? Isto é um erro. A destituição subjetiva precede a subjetividade. Você não começa com o sujeito e então vai através dele desmantelando-o. Não é como se, não importa o que seja a subjetividade, ela esteja lá representando a destituição. A noção de sujeito está relacionada com essa negatividade radical, mas não é como se nós tivéssemos que destituir o sujeito, como se fôssemos pessoas e então nós tivéssemos que destituir nós mesmos.
Pegue Deleuze: Para ele o sujeito tem de ser relacionado com algo afirmativo, e então ele pode dar a impressão de que a negatividade é ruim, um “não” para tudo. Mas a negatividade de que estou falando e que me esforçando para articular é uma negatividade que, como tal, é a base de algo. Não é como se em primeiro lugar nós nos livrássemos de algo. Pelo contrário, é através dessa negatividade radical que algo aparece. Não é uma escolha: ou você é negativo, você diz não, ou você é afirmativo, você diz sim. Esta é uma maneira ruim de colocá-lo. O sujeito não é simplesmente negativo ou positivo; ela só pode aparecer ou ter lugar através desta negatividade radical. Não se pode separar os dois.
A destituição é sobre um excedente que sai desta negatividade. É precisamente o ponto mesmo em que alguma novidade emerge através dessa destituição, como uma nova possibilidade. A censura política que se dá é esse criticismo: “Ok, mas o que vamos fazer com isso?” Mas não se supõe que isso deva ser uma receita: não é ok, vamos agora destituir o sujeito. É sempre après coup; é sempre depois. Quando você vê os traços do sujeito, você o segue porque você pode ter certeza de que algo já aconteceu ali. Outro erro é que algumas pessoas pensam que esta destituição é uma espécie de adoração do último sacrifício que se pode fazer de si mesmo. Mas isso é equivocado; a temporalidade disto está torcida. Deve-se precisamente não tomá-la como um tipo de receita ou prescrição, mas sim como um retrato do que acontece quando algo acontece.
Randall Terada: Sim, eu concordo. A destituição subjetiva não é uma provação sacrificial, como se descêssemos a este lugar com velas e altares e um baixo coro murmurando. Não, antes, a destituição subjetiva é somente revelada retroativamente, e, como tal, o momento pode aparecer como um mediador evanescente para o nascimento de um novo sujeito. Então o preciso momento temporal quando o sujeito surgiu é virtualmente impossível de definir porque as coordenadas simbólicas foram tão alteradas que dizer, “eu tive de fazer tal e tal por causa de tal e tal …” agora se torna ou uma montagem racionalista, ou um romântico apartado, ou simplesmente um sem-sentido dentro de uma estrutura simbólica radicalmente reconfigurada. Neste ponto, no que diz respeito aos seus respectivos pontos de vista sobre o assunto, o que você acha que são as principais diferenças entre Lacan e Badiou?
Zupančič: O sujeito de Badiou é conceituado como algo posterior ao Evento. Uma coisa é que, em primeiro lugar, para Lacan, a subjetividade não é simplesmente essa coisa pós-evental, mas também está relacionada com a realidade enquanto tal, como o ponto de seu impasse sintomático. Por exemplo, em Badiou, primeiro você tem esta realidade banal onde não há nada realmente interessante, a existência animal humana, nada acontece, mas com Lacan você tem uma imagem muito diferente da realidade. Para Lacan, o que é crucial é que esta realidade banal já é atravessada por todos os tipos de antagonismos, por todos os tipos de impasses. A realidade social é antagônica e há fendas e divisões, e o sujeito não é simplesmente um tipo de resposta subjetiva patológica mas é um ponto sintomático onde esse antagonismo, seja ele social ou de familiar, está realmente presente como uma figura subjetiva com seus próprios sintomas. Os sintomas com que a psicanálise trabalha são certos antagonismos que estruturam o campo do ser em geral; os sintomas não são simplesmente algum tipo de patologia subjetiva, mas têm uma dimensão objetiva, um antagonismo que é constitutivo do momento histórico.
Esta noção de sujeito não pode ser reduzida à figura do animal humano porque o que ele carrega é esta ligação com essa negatividade ou loucura que é suprimida para que as coisas funcionem.
É óbvio que, para Lacan, quando você fala da realidade cotidiana e seus problemas – antagonismos internos, lutas, etc. – nós não podemos pensar isso sem a noção de sujeito no sentido mais forte da palavra. Não é apenas uma resposta subjetiva à injustiça, mas a forma como esta injustiça existe para a realidade na qual ela aparece.
Randall Terada: Por exemplo, uma premissa fundamental de uma ontologia inspirada por Lacan é que a realidade é atravessada por um antagonismo fundamental; a realidade é dividida, não-toda. E como esse antagonismo social fica representado ou “aparece” se resume a uma luta hegemônica. Žižek et al (2000) cita um exemplo da Antropologia Estrutural de Levi-Strauss sobre os Winnebago, uma das tribos dos Grandes Lagos, divididos em dois grupos: aqueles “acima” e aqueles “abaixo”. Quando lhes pediram para desenhar a planta da sua vila, eles deram duas descrições diferentes. Žižek, em seguida, argumenta que as duas percepções da planta são simplesmente dois esforços mutuamente exclusivos para lidar com esse antagonismo traumático, e representa uma tentativa por parte de cada grupo para curar esta “ferida” através da imposição de uma estrutura simbólica equilibrada capturada em seus respectivos planos (p. 112).
Imperativo categórico de Kant e negatividade ontológica
Randall Terada: Eu gostaria de passar para a sua recente palestra na Villanova University (2013), que foi baseada na lei moral de Kant, e onde você introduziu um conceito chamado o não-realizado. Eu entendo que isso seja sobre ontologia, mais especificamente o que não é nem ser nem não-ser. Se eu lhe entendi, você está dizendo que o imperativo de Kant, “Faça o seu dever”, não implica nenhuma razão superior; a escolha de uma alternativa não existe fora do imperativo categórico, e este fato é que tende a ser esquecido quando faço o que eu acredito que é meu dever. Por exemplo, o imperativo categórico de Kant não é um instrumento que usamos para julgar entre alternativas possíveis e que nos ajude a escolher o mais ético. Ao contrário “Faça o seu dever” significa que há apenas uma escolha, e essa escolha é absolutamente necessária. Estou certo em dizer que existe uma aqui uma conexão entre liberdade e necessidade absoluta que você está tentando fazer?
Zupančič: Eu concordo, o dever kantiano não significa que tudo já está preparado para você como parte da realidade, e você só tem que descobrir o que é certo, com o imperativo categórico de Kant apontando na direção certa. Não, ele é antes algo que abre ou introduz algo que não está ainda lá; neste sentido ele introduz um novo elemento. Ou, talvez mais precisamente, ele divide a realidade de uma maneira nova, que permite algo mais do que a soma usual de seus elementos. Pode-se repensar Kant desta forma em vez de tomar o imperativo categórico como uma espécie de receita para a ação, que não é o melhor Kant. Se se reduz Kant a isso, perde-se uma dimensão importante. Eu uso o termo “não-realizado” em grande parte no mesmo sentido que Lacan (1998) usa-o quando, no Seminário XI, ele fala sobre o inconsciente pertencer à ordem do não-realizado. “Não-realizado” não implica algo que está à espera de ser realizado, mas antes refere-se a uma negatividade sustentando tudo o que acontece (ou é realizado). Não é algo ainda não nascido, que vai nascer em algum momento mais tarde, por exemplo, uma vez que você está em análise. Pelo contrário, é que algo que acontece ontologicamente antes que algo surja como ser enquanto ser. Isso é, precisamos de alguma forma circunscrever ou pensar a própria negatividade que está profundamente envolvida na estruturação da ordem positiva do ser.
Eu então voltei para Kant através dessa perspectiva de como pensar o imperativo categórico em relação a esta negatividade ontológica, sugerindo que nós entendamos o imperativo ético como apenas isso, o lugar estrutural e mantenedor dessa própria negatividade. O ponto de partida de Kant é que o imperativo categórico não se baseia em qualquer instância superior (como Deus), nem qualquer tipo de Bem pré-estabelecido. Não há nada “acima” dele. Em nossas reflexões pós-modernas, nós tendemos a ler isso como uma relativização – Deus está morto, então tudo é permitido e todos podem ter sua ética pessoal. Mas o que eu acho que é revolucionário sobre Kant, e o idealismo alemão em geral, é que ele coloca neste ponto o próprio nascimento do absoluto (um novo absoluto), em que o necessário e o contingente não são mais opostos. O imperativo categórico é absoluto precisamente porque não se baseia em qualquer coisa diferente de si mesmo. Isto implica, no entanto, que somos responsáveis não só por nossas ações, mas acima de tudo sobre o que nos referimos como sendo nosso dever. Nós não podemos nos esconder atrás de nosso dever e dizer: “Eu sinto muito, eu só estava cumprindo meu dever.”
Separação
Randall Terada: Voltando à sua palestra na Lacan Toronto (2014), você faz uma brincadeira engenhosa com a palavra “umbigo”. Em primeiro lugar, você aponta que os artistas do início do Renascimento enfrentaram a questão de saber se eles deviam retratar Adão e Eva com ou sem umbigos. Se Adão foi criado à imagem de Deus, retratando-o com um umbigo significava que Deus tinha um umbigo. Os artistas simplesmente evitaram a questão desenhando folhas de figueira para encobrir não só os órgãos sexuais, mas também os umbigos. Esta é uma ilustração perfeita do seu argumento, artistas encobrindo uma ambiguidade profunda concernente ao sexual, como você diz, “cobrindo-se algo que não é e também é inseparável disso” (2014). Você também menciona, na obra de Freud, sua referência ao umbigo do sonho. E também se poderia tirar uma referência aos significantes enigmáticos de Laplanche (1999). Você poderia elaborar aqui esta profunda ambiguidade e sua relação com a psicanálise?
Zupančič: No que diz respeito à análise, ela não é só sobre interpretar, decifrar os “verdadeiros” significados; a interpretação também tem que produzir o seu próprio limite, isso é dizer, cercar e localizar os pontos essenciais que constituem o umbigo sem sentido do campo de significado, ou do campo do Outro, e induzir uma separação aqui. Esta separação implica, para colocá-lo simplesmente, que o sujeito não vai encontrar a resposta para o que ele é no Outro (nem em si mesmo), mas só é susceptível de achá-lo ou encontrá-lo na forma de um remanescente indivisível de suas ações em relação com o Outro. Nesta configuração, o Outro não aparece mais como o outro de uma mensagem enigmática (como por Laplanche). Agora, neste momento, a opacidade do campo do Outro já não “interpela” o sujeito para encontrar seus possíveis significados, mas deve incitar o engajamento do sujeito em seu próprio destino como sempre-já social, isto é, como sempre-já em curso no campo do Outro e irredutivelmente conectado a ele. O momento crucial da “separação” envolvido na psicanálise deve ser entendido neste sentido: não como uma simples separação do Outro, de todas as estruturas simbólicas e da mediação social do ser do sujeito, mas como a separação do Outro do objeto que dirige sua estrutura (Zupančič, 2008b). Estou pensando aqui do que Lacan diz, por exemplo, no Seminário XX (1999), quando afirma que “o objetivo do meu ensino é … dissociar a e A …. É aqui que uma cisão ou descolamento ainda precisa ser efetuada “(p. 83). Se esta “separação” não ocorre, o outro continua a funcionar como um completo, um Outro não-barrado, como o campo de necessidade, (auto-)contendo sua própria razão. Considerando que a cisão operando aqui separa o outro de sua causa, colocando esta última fora tanto do reino do sujeito como fora do reino do Outro, isto é, colocando-a no ponto de sua interseção impossível.
Randall Terada: Outra diferença crucial de Laplanche é que que sua noção de um significante enigmático desliza muito facilmente em uma versão de ética relacional – o enigma do Outro – com a qual você está em desacordo.
Zupančič: Há toda uma escola de reflexão ética contemporânea, inspirada mais ou menos diretamente por Emmanuel Levinas, que tem como ponto central precisamente a afirmação (e fortificação) do enigma do Outro. Nesta ética, o sujeito é confrontado, ou tem de ser confrontado com o enigma do Outro – uma demanda em relação ao qual o sujeito é absolutamente responsável. A psicanálise traz à tona o fato de que a constituição do enigma do Outro, a elevação do último para o lugar de uma demanda enigmática infinita é a contrapartida exata da repressão (primordial). Entretanto, reconhecer a necessidade da repressão na constituição do sujeito não é o mesmo que promover a repressão ao posto da mais alta máxima ética. Que é exatamente o que uma ética levinasiana faz. A ética com base no Outro como o locus de uma infinita e enigmática demanda/mensagem é uma ética que eleva a repressão ao nível de um princípio ético. Neste sentido, isso é definitivamente estranho para a ética da psicanálise. Esta lógica de infinitamente suplementar a falta no Outro, que tem o efeito de intensificar a Demanda do Outro, é o que traz a ética levinasiana perigosamente perto do que Freud descreve como o ciclo vicioso do superego.[2]
Um homem entra em um restaurante…
Randall Terada: Em resposta aos teóricos da performatividade de gênero, você faz a alegação de que não existe identidade sexual per se. Pelo contrário, a sexualidade é a própria coisa que perturba toda identidade. E eu acho que o seu recurso a uma piada de Ernst Lubitsch toma este ponto muito bem. Uma boa introdução a esta piada pode ser feita a partir de seu Sexual Difference and Ontology (2012a):
“A psicanálise não é a ciência da sexualidade. Ele não nos diz o que o sexo é realmente; ela nos diz que não há ‘realidade’ do sexo. Mas essa não-existência não é o mesmo que, digamos, a inexistência de um unicórnio. É uma não-existência no real que, paradoxalmente, deixa vestígios no real. É um vazio que registra no real. É um nada, ou negatividade, com consequências.”
E a piada: “Um cara entra em um restaurante e diz para o garçom, ‘Café sem creme, por favor.’ O garçom responde: “Me perdoe senhor, mas estamos sem creme. Poderia ser sem leite?”
Zupančič: A sexualidade é esse creme cujo não-ser não reduz ele a um mero nada. É um nada que anda por aí, traz problemas, e deixa vestígios. Eu acho que o que normalmente é perdido pelo pensamento na discussão ontológica não é um ser que é deixado de fora, mas um tipo singular de nada ou negatividade em função da qual o café sem creme não é o mesmo que o café sem leite. Ela tem (ou pode ter) uma positiva, embora espectral, qualidade, que pode ser formulada em termos precisos de “com-sem (creme)”, como irredutível a ambas as alternativas (creme/não creme).
Eu entendo Hegel como dizendo que a negação é parte da identidade positiva de um objeto. Um objeto não é apenas o que é; você tem que incluir o que não é. É uma não existência no real que, paradoxalmente, deixa vestígios no real. É um vazio que registra no real. É um nada, ou negatividade, com consequências. E é precisamente este “não há”, este não-ser, que no entanto tem consequências reais, que se perde na tradução quando nós passamos de sexo ao gênero. (ver Zupančič, 2012a).
O ser e o impasse ontológico da sexualidade
Randall Terada: Não só do sexo ao genêro, mas esse com-sem eu acredito que tem definido um núcleo temático em seu trabalho atual. A fim de tornar este ponto, eu preciso primeiro voltar para uma conferência de 2011 em Berlim com você mesma, Mladen Dolar e Slavoj Žižek (a “Troika”, como Žižek chama seu grupo), em que foi colocada uma forte ênfase em um tema muito abstrato relacionado à noção de “ser” e como o ser é normalmente e intuitivamente pensado como Um, isso é, unificado, todo, sem lacuna. Fez-se menção a Parmênides, por um lado e Alain Badiou, por outro. O ponto em que fui explorado era o seu forte desacordo com qualquer ontologia que começasse a partir do Um. No modo como eu entendo este debate, você afirma que o ser é ontologicamente incompleto, e essa incompletude ontológica significa que o Um vem em segundo lugar. O Um é uma operação, Žižek (2012) afirma:
“Para mim e para Alenka, é claro que há nenhum Um original, mas esta ausência está inscrita na multiplicidade desde o início. Isso não significa que “Nós somos múltiplos dane-se o Um” Isso significa que o Um como ausência já está aqui. Ontologicamente o nível zero é um Um barrado, não há Um. Há multiplicidade porque o Um não pode ser Um.”
A multiplicidade acontece porque o Um não se pode ser Um. Há uma fratura inerente no ser que não é nem ser nem não-ser, um tipo de com-sem. E é esta fratura inerente no ser, ou a fratura no Um, que é o real lacaniano. Talvez uma outra maneira de anunciar esta é a seu texto sobre o Verneinung de Freud, ou negação (2012b). O famoso momento no sonho quando o analisando retruca: “Você pergunta quem a pessoa no sonho poderia ser. Não é minha mãe. “Sua análise deste momento mostra que é simples demais ficar dentro do simples binário mãe ou não-mãe. Como você afirma
“Nós estamos lidando aqui precisamente com algo como, “isso é não não-mãe,” e essa dupla negação circunscreve algo que o torna irredutível a simplesmente “mãe” (ou a sua ausência). “Isso é não não-mãe” não é o mesmo que “(isso é) mãe”, uma diferença que é crucial para a psicanálise, uma vez que o inconsciente é para ser situado precisamente neste estranha, frágil dimensão.”[3]
Novamente estamos lidando aqui com uma dimensão do com-sem. Se queremos compreender o inconsciente, precisamos entender este princípio da negação, que não é simplesmente o oposto da afirmação. E se não me engano, este com-sem poderia ser tomado como o componente chave em que sua ontologia repousa; em outras palavras, isso que representa o que deve ser subtraído do ser para que o ser enquanto ser emerja. E então é por isso que não podemos começar pelo Um; é por isso que nós devemos começar em menos que Um. Outra maneira de colocar isso é com relação à diferença sexual. E isso nos leva de volta para sua discussão na Lacan Toronto. Se eu entendi você, o não-todo do ser significa que não há um dois simples dos sexos?
Zupančič: Os sexos não são dois de qualquer maneira significativa. A sexualidade não se enquadra em duas partes; ela não constitui um Um. Ela está presa entre “não é mais um” e “ainda não dois (ou mais).” Eu diria que gira em torno do fato de que “o outro sexo não existe” (e isto quer dizer que a diferença não é ontologizável), porém há mais que um (que é também a dizer, “mais do que uns múltiplos”).
Randall Terada: Sim, se a diferença sexual fosse ontologizável, teríamos algo como Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus, não teríamos?
Zupančič: Precisamente. E a minha reivindicação é que, além disso, se simplesmente substituímos dois com uma multiplicidade (e afirmar que há mais de dois sexos), nós não saímos desta mesma lógica de ontologização. Nós afirmamos que existem muitos sexos, e perdemos o próprio impasse ontológico envolvido na sexualidade. O que nos traz de volta para o ponto que mencionei anteriormente, em relação à conferência em Berlim. Não é simplesmente que nós pensamos que a ontologia não pode começar com Um (este ponto não é muito controverso), é que nós também achamos que não se pode simplesmente começar com “multiplicidade”, concebida como uma espécie de neutralidade inicial. Este é o verdadeiro cerne deste debate. Eu acredito que a alternativa entre Um e o múltiplo é uma alternativa errada. Não podemos continuar aqui em detalhes sobre este argumento, mas a idéia básica é esta: a ontologia começa, não com Um e não com a multiplicidade, mas com um “menos Um ” (fala Lacan sobre “l’un en moins” no Seminário XX de 1999, p.129). A multiplicidade já é uma consequência deste paradoxal menos Um, que não é, mas estrutura o campo do que é. Neste sentido a multiplicidade nunca é simplesmente neutra, mas incitada por essa negatividade original, e, portanto antagônica. O modo como essa negatividade estruturadora (ou impossibilidade ontológica como inseparável da ontologia) existe no mundo está na forma de um dois impossível, isto é, na forma da diferença sexual que não pode ser ontologizada, posta em termos de diferença entre dois seres, duas entidades ontológicas. A diferença sexual no sentido estritamente lacaniano do termo é a maneira em que o menos Um, como negatividade estruturando o reino do ser, começa a ser formulada dentro desse próprio ser como seu ponto de impossibilidade paradoxal. O meu ponto não é: existem apenas dois sexos, mas antes: há apenas a divisão, o antagonismo. O antagonismo não é simplesmente antagonismo entre duas coisas, mas também, e mais fundamentalmente, o que estrutura o campo em que estas coisas aparecem. Você mencionou o exemplo de Slavoj a partir da Antropologia Estrutural de Lévi-Strauss Antropologia Estrutural, que também é um exemplo perfeito deste ponto difícil, contra-intuitivo, segundo o qual o antagonismo de alguma forma precede os (dois) lados do antagonismo. Se os dois grupos da aldeia desenham dois mapas completamente diferentes da aldeia, a resposta é não fazer um passeio de helicóptero e tentar olhar por cima como a vila parece “objetivamente.” A ponto é, como disse Slavoj, reconhecer que as duas percepções da planta são simplesmente dois esforços mutuamente exclusivos para lidar com esse antagonismo traumático, e eles representam uma tentativa de cada grupo para curar esta “ferida” através da imposição de uma estrutura simbólica equilibrada capturada em seus respectivos planos de base. De forma similar, as narrativas sobre o que é “masculino” e que é “feminino” são precisamente tentativas de lidar com este tipo de antagonismo traumático colocando-o como uma diferença entre dois tipos de ser. É por isso que não é suficiente descartar a “masculinidade” e a “feminilidade” como construções simbólicas (que elas certamente são), mas também se deve reconhecer o real (o antagonismo) que impulsiona, motiva essas construções.
Randall Terada: Alenka, obrigado por disponibilizar este tempo para falar comigo hoje.
[1] Lacan Toronto é um grupo diversificado de acadêmicos, estudantes, analistas, terapeutas e conselheiros que se reúnem regularmente em Toronto para estudar e discutir a obra de Jacques Lacan. Eles frequentemente convidam oradores para abordar questões teóricas e clínicas contemporâneas a partir de uma perspectiva lacaniana.
[2] Para uma longa discussão de ambos Laplanche e Levinas, consulte Zupančič (2008a, b).
[3] Veja Zupančič (2011b, 2012b) para uma análise bem fundamentada e incisiva do Verneinung (negação) de Freud.