Gênero, Sexualidade e Política: para uma crítica psicanalítica da identidade

Por Pedro Eduardo Silva Ambra, via Leitura Flutuante n.7

Os grupos criados por um princípio de identidade, que portam um saber sobre sua constituição, mas que também resistem a uma identidade declaradamente única, resistem à identidade una produzindo diversas identidades menores. A minoria é sempre o Outro da identidade hegemônica. Nossa crítica é que a resistência à identidade é feita na língua da identidade, estes dois estão intimamente ligados.


No dia 24 de janeiro de 2012, um oficial de polícia convidado a dar uma conferência sobre segurança no campus na Universidade de York em Toronto talvez não imaginasse que suas palavras, a partir de um tema consensual, pudessem causar tanta polêmica. Disse o comissário Michael Sanguinetti em determinado momento sua apresentação: “as mulheres deveriam evitar vestir-se como vadias [Sluts] para não serem vítimas de estupro”. (DOW & WOOD, 2014). [1]

Para além  de um exemplo que diz muito sobre o que pode acontecer quando a polícia vem até a Universidade não para ouvir mas para ensinar como proceder [2], o comentário mostra como a estupro é por um lado um crime hediondo com severas punições morais – vide o tratamento de estupradores em prisões – mas, por outro, é em parte justificado por como uma mulher se veste. Há uma irracionalidade patente no argumento que parte do tipo de roupa que uma mulher veste e chega à justificação do sexo não consentido, mas não por isso menos está menos presente. Em recente pesquisa realizada pelo IPEA, 65% dos brasileiros acreditam, por exemplo, que a mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar. Em relação mais direta com o estupro, 25% das pessoas entrevistadas afirmam que mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas (IPEA, 2014).

Portanto, trata-se de uma exibição de identidade que provoca ou aumenta a possibilidade de um crime. Temos aqui a mesma racionalidade em jogo de frases do tipo “não tenho nenhum problema com gay, mas pra que ficar desmunhecando”? ou “Acho que a imigração é uma coisa boa, mas as pessoas tem que se adaptar à cultura, não ficar mantendo seus hábitos” ou “claro que mulher pode ir pra festa como qualquer homem e fazer o que quiser com o corpo. Mas pra que ficar se vestindo como piriguete?”

Ou seja, tudo aquilo que sublinha uma identidade diferente daquela tida como normal é algo cujo incômodo é justificado, assim como uma possível violência decorrente. Trata-se de um tema clássico em psicologia social, cuja maior parte dos trabalhos teve início após as catástrofes nazifascistas da primeira metade do século XX. Há aqui toda uma gama de estudos que buscam compreender como a violência à diferença pode ser tão possível, contaminante e irracional, desde pesquisas em larga escala de inspiração frankfurtiana como “A Personalidade Autoritária”, passando pelos estudos inspirados pela tradição da Escola de Chicago, como a experiência de Milgram ou dos prisão falsa em Stanford (BLASS, 2009, p. 214).

O que seria importante sublinhar aqui não diz respeito diretamente a esta posição de violência mainstream mas, antes, às modalidades de resposta que ela encontra. E mais especificamente algo que seria um eixo comum entre elas.

Meses após a declaração do policial, tomou lugar pela primeira vez a Slutwalk na mesma Toronto. Em alguns meses – que coincidiram com grande parte dos movimentos de ocupação de 2011 – protestos semelhantes foram vistos ao redor do mundo. No Brasil, a primeira “Marcha das Vadias” ocorreu em Brasília, no dia 26 de maio de 2012, sendo seguida por outros protestos em diferentes cidades. Suas reivindicações partem da constatação do estupro não como fatalidade ou estatística, mas antes como um crime ligado à assimetria de gênero, fruto de uma condescendência da sociedade a padrões machistas, que dividem as mulheres entre santas e putas, sendo as últimas sujeitas a violações diversas. Assim, um pedido geral que enlaça suas crítica é o direito da mulher usar o corpo como quiser, englobando aí questões como aborto, direito à discursos sobre sexualidade e, o mais radical, o direito a dizer “não” ao sexo.

É curioso notar como um dos motes da Marcha das Vadias é “meu corpo, minhas regras”. Se por um lado trata-se de uma proteção, por outro ela é feita a partir de um termo terceiro “regra”, que entra curiosamente na esteira da “ordem”, “controle” e etc. Porque não “meu corpo, meu desejo”? “meu corpo, minha vontade”? O que se passa aqui para que a dimensão pulsional seja negativada a partir de “regras”? Voltaremos a isso.

Seguindo, há um comercial de cerveja veiculado em 2012 que sob um manto de humor, mostra que a fantasia – nem tão fantasiosa assim – de homens caso fossem invisíveis seria arrancar a roupa de mulheres. Ao rapidamente tentar visualizar a montagem inversa, ou seja, uma mulher tentando arrancar a roupa de um homem contra sua vontade percebemos que a inversão não é tão natural assim. Fica difícil justificar o estranhamento, a não ser por meio de clichês de identidade. A questão é que estas diferenças não conseguem se livrar de uma assimetria que carrega consigo a marca da violência. Observem que a crítica ao estupro dificilmente pode ser feita a partir de reivindicações de “identidade”, ela só é frutífera a partir de reivindicações de práticas sexuais, seja da condenação do estupro, seja da possibilidade de que a prática sexual seja livre para todos.

Não vou me delongar na tentativa de sugerir que a igualdade de direitos de gênero é ainda apenas um horizonte, e não uma apocalíptica inversão de papéis como os machistas e os partidários de muitas teorias de “pós-modernidade” defendem. Recentemente alguns psicanalistas afirmaram que as participantes da marcha das vadias demandam uma posição masculina, que isso não é feminilidade e outros despropósitos. Foi dito ainda que se observa um aumento no número de “acting outs” femininos: começa a haver na clínica cada vez mais moças que nem lembram exatamente como ou se fizeram sexo e com quem, só descobrindo no dia seguinte, quando muito. Vejam a nada sutil pressuposição de gênero para alguns psicanalistas: o que aos homens é normal, signo de boemia, ou no mínimo uma fase mais agitada, quando começa a ser vivido ou permitido às mulheres é logo traduzido como “acting out”, uma saída desajustada para a angústia. Isso mostra que navegamos sobre um mar não apenas de assimetria de semblante sexual, mas de direitos.

Prosseguindo com um segundo conjunto de exemplos, ao analisarmos a direção de movimentos ou grupos que lutam pelos direitos de minorias sexuais, observaremos uma expansão seja de sua penetração na sociedade, seja da abrangência de suas reivindicações. A sigla LGB (lésbicas, gays e bissexuais), lançada em países de língua inglesa nos anos 80, ou sua versão brasileira GLS proposta por André Fischer nos anos 1990, popularizou-se rapidamente. Digno de nota é, também, o desenvolvimento posterior destas tendências. Notemos que se tais expressões forem utilizadas hoje, possivelmente serão vistas com ressalva por ativistas. Sua última reformulação é a LGBTIQQ – lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexo, queer e “questionando”. [3]

Tal aumento de categorias de gênero alcançou rapidamente sua espessura legal, ainda que geograficamente restrita. Desde agosto de 2011, por exemplo, os australianos terão direito de optar tanto pelo gênero masculino ou feminino em seu passaporte quanto pela categoria “indeterminado”. Esta decisão do governo australiano é resultado de uma polêmica iniciada quando Norrie May-Welby tornou-se a primeira pessoa “sem gênero” no país, após não ter se adaptado á cirurgia de transgenitalização, que havia lhe dotado de caracteres físicos femininos (PHIBBS, 2008).

Retornando ao caso brasileiro, recentemente houve a aprovação da legalidade da união homoafetiva, indiscutivelmente um passo importantíssimo na luta pela igualdade de direitos. Ainda que o casamento não seja permitido, trata-se de uma conquista importante que a princípio não seria pensável ou diretamente desejável, por exemplo, para gays e lésbicas nos anos de 1960 e 1970.

Observamos também a possibilidade e o aumento no número de cirurgias de transgenitalização, demandadas por pessoas que visam remover caracteres do chamado “sexo biológico” e recriar na medida do possível órgãos do sexo referente à identidade de gênero daquele sujeito. Ainda que o número destas cirurgias seja muito menor do que em geral a mídia veicula, trata-se de uma janela importantíssima uma vez que é realizada pelo SUS, ou seja, o estado reconhece aquele sofrimento de gênero como legítimo e paga por isso. Em que pese o debate atual sobre a tensão ao redor da patologização da transsexualidade que, por um lado, permite o acesso à rede pública de saúde mas, por outro, o faz ao preço de uma exclusão patologizante (ARÁN; MURTA; LIONÇO, 2009)

Mulheres de areia em tinta azul

Ao observamos estes poucos exemplos – a marcha das vadias, o aumento nas categorias GLS, a possibilidade de uma identidade oficial “no gender”, o casamento gay e as cirurgias de transgenitalização – algo nos salta aos olhos. Se considerarmos estes avanços como ecos das lutas travadas pela chamada revolução cultural dos anos de 1960 e 1970 alguns aspectos precisam ser ressaltados.

Chamo a atenção para o potencial criativo das reivindicações. Anteriormente parece ter havido um boom de demandas de liberdade, que ao contrário do que se pode supor não se restringiu à cultura gay, mas antes a uma série de práticas de uso de corpos e modalidades de grupamento afetivo ou sexual. Seja na popularização e uso de diferentes drogas, experiências musicais diversas, práticas de amor livre e comunidades poligâmicas que hoje nos parecem “coisa de ripongo”, uma distância importante parece se desenhar.

Em menos de quarenta anos esta espécie de laboratório de práticas e usos dos corpos, que poderia ter tido diferentes destinos, potencialmente rica e plural, teve como resultado pedidos de fim do estupro, casamentos, cirurgias corporais e uma demanda de rótulos. “Mas que caretas”, diriam os “ripongos” hoje de nós.

Mais uma vez, não que estas conquistas sejam irrelevantes ou conservadoras, mas o que parece central aqui é que fincaram muito fortemente suas raízes na defesa de direitos de existência enquanto grupos identificáveis. Observem, por exemplo, o que ocorreu durante o mesmo período com o Rock. Ele se espalhou, é verdade. Manteve suas características e bandas de outrora continuam na estrada. No entanto, sua influência foi muito maior do que isto. O Rock deu origem a estilos musicais diversos e, principalmente, alterou o cenário musical como um todo. Exceto, talvez, por parte da música erudita, todas as outras tiveram de responder ao rock, incorporar ou negar seus elementos, ou seja, ele produziu uma mudança geral no seu campo.

Ao que parece, as questões de gênero e as práticas sexuais tiveram ambições e conquistas muito mais tímidas. Ainda na mesma toada musical, parece que seguimos um estilo progressivo meio autorreferente, um tanto bem comportado. Ouso dizer que nos falta a verve um tanto moleque e irracional do punk.

No entanto, esta diferença não é arbitrária. Diferentemente do Rock, as questões sexuais tendem a resistir diferentemente à ideologização: não se doma facilmente a pulsão. Se o rock se espalhou, tornou-se hegemônico e teve como resultados tanto o Black Metal quanto o Justin Bieber, isso só foi possível porque eles vendem. E, mais do que isso, porque transmitem sem muita reflexão aspectos ideológicos presentes na sociedade, seja em suas letras, seja em suas escolhas musicais. Já quando falamos do gênero, do sexo e do corpo há um real em jogo que resiste mais à apropriação ideológica. Daí que seus avanços não puderam ainda questionar uma radicalidade presente em seu momento de surgimento.

A historiadora Dagmar Herzog (2008) nem chegará a retornar aos anos 70 ao fazer uma comparação entre jovens, irá comparar a realidade dos jovens universitários dos anos 90 com a juventude hoje. De acordo com a autora:

  • Trata-se hoje de uma juventude muito mais desconfortável com sua sexualidade do que as gerações dos anos 90.
  • Ao mesmo tempo, segundo ela, o discurso que incentiva a sexualidade pós- casamento criou uma indústria de manuais de sexo cristão e de sex shops online, havendo até “vibradores cristãos” à venda.
  • De acordo com a autora, o discurso conservador se transmite não mais falando em Deus, mas sim em saúde, bem-estar psicológico e autoestima.
  • Há duas décadas, os pais encaravam sexo entre adolescentes como algo normal. Ensinavam seus filhos sobre responsabilidade, amor, mas a mudança na opinião pública levou à intimidação. As pessoas voltaram a sentir vergonha de falar sobre sexo.
  • Os conservadores hoje se sentem mais confortáveis em defender seus pontos de vista. Essa situação esteve presente na Rio+20, quando o tópico a respeito dos direitos reprodutivos das mulheres foi excluído do documento final por pressões religiosas.

A titulo de exemplo, um outro fato curioso: a abertura da novela “Mulheres de Areia” – que mostrava os seios de uma mulher – foi censurada em sua reexibição em 2011. Mais curiosa ainda foi a justificativa da própria Rede Globo para tal mudança:

Tendo como base seus Princípios e Valores, a Globo resolveu adaptar a abertura para o Vale a Pena Ver de Novo, tornando menos explícitas cenas de nudez. Embora esta abertura tenha ido ao ar com a novela em 1993, a emissora avaliou que não era compatível com os padrões morais atuais do país. (PADIGLIONE, 2011, grifo nosso)

É importante não tomar tal movimento a partir de um discurso reativo na esteira de “antes tínhamos mais liberdade que agora”. Evidentemente não se trata disso. O que parece importante ressaltar é que aquelas práticas de outrora nos permitiam pensar coisas diferentes, o lugar do sexo gozava de maior liberdade. Havia um campo de referências e potenciais experimentações mais plurais. Mas esta diminuição não é arbitrária. É antes atrelada a um movimento homólogo no que diz respeito à crítica da ideologia de forma geral.

Assim, nossas lutas no que tange os direitos sexuais, incluindo aqui também as liberdades de gênero, atualmente quase sempre se rearticulam em forma de discursos sobre a tolerância, por exemplo como o tema da parada gay de 2012 “Homofobia tem cura: educação e criminalização! – Preconceito e exclusão, fora de cogitação!”. Ou seja, temos aqui um paradigma de lutas de direito baseado no reconhecimento da diferença, que deveria ter seu eco jurídico justo, visando garantir a coexistência das diferentes identidades.

Presente já nos escritos de juventude do jovem Hegel em Jena, a temática do reconhecimento não é nova. Retomada pelo filósofo Axel Honneth, considerado como a “terceira geração” da Teoria Crítica da escola de Frankfut, a teoria do reconhecimento baseia-se na ideia de um horizonte político de um estado de direito que garanta reconhecimento no campo jurídico, no campo da solidariedade e no campo do amor4.

A grande questão aqui é que este horizonte ignora que há modalidades de mal-estar, há modos de subjetividade que não necessariamente se traduzem nos termos de um grande estado de bem-estar social jurídico, solidário e de amor. O que não é necessariamente resolvido a partir de um elogio da negatividade, tal como a crítica de Paulo Arantes à tese central do “Grande Hotel Abismo”, último livro de Vladimir Safatle, demonstra: sua ideia [Vladimir] é que o estado seja um grande gestor de indeterminações? Seria isso suficiente?

De toda forma, seja pela exclusão de variáveis econômicas, seja por basear seu sistema em identidades individuais fixas, delimitadas e defensáveis, Honneth não fornece um modelo que permita pensar um funcionamento social diferente do que o mundo ocidental – especialmente na Europa – vem experienciando nos últimos vinte anos.

Qualquer coisa proposta fora de uma chave conhecida é rapidamente descrita como ou “socialista ditatorial” ou “utópica”. Para isso basta olharmos a onda de críticas dirigidas aos movimentos de ocupação de 2010 e 2011. De forma geral, o problema destes jovens acampados era “não terem uma identidade”, “não formarem um partido”, “não terem uma pauta definida”. Ora, mas como ter uma pauta definida sendo que uma das principais críticas é justamente uma racionalidade que pensa a modificação social por meio de encaminhamentos de pautas definidas?

Conta Žižek (2011), filósofo esloveno,

“Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as suas correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os amigos: “Vamos combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa”. Depois de um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita em azul: “Tudo é uma maravilha por aqui: os estoques estão cheios, a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance – a única coisa que não temos é tinta vermelha.” E essa situação, não é a mesma que vivemos até hoje? Temos toda a liberdade que desejamos – a única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos livres” porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos” etc. etc. – são termos FALSOS que mistificam nossa percepção da situação em vez de permitir que pensemos nela.”

É possível entender que há um debate no campo da filosofia e da teoria social sobre o papel totalizante da ideologia. Mas o que isto tem a ver com gênero, com o sexo e com o corpo?

A questão é que talvez nossos avanços de liberdade neste campo estejam cada vez mais sendo escritos com tinta azul. Mas não qualquer tinta azul. Uma tinta azul que já nos protegeu e continua protegendo que impede massacres, atos de violência, que garante a existência de grupos. Esta é a tinta azul da identidade. Com ela, quase todas as conquistas e horizontes das questões de gênero podem ser hoje descritos.

Esta cisão entre experiências e identidades no campo político é tão evidente que, por exemplo, há hoje inclusive duas bandeiras distintas do que antes chamávamos movimento gay. Uma é a bandeira do movimento LGB, outra é a bandeira do movimento trans*. Tal diferença é feita justamente pela compreensão de que um grupo é definido por sua orientação sexual e outro por sua identidade de gênero e, em alguma medida, suas lutas não seriam as mesmas. Mesma ideia é aplicada às violências perpetradas contra estes sujeitos: o que antes era sublinhado sob a alcunha de homofobia, hoje é homo-lesbo-transfobia. Seria, de fato, distinta a motivação da violência dirigida a gays e a transexuais? Nomear e diferenciar as diferenças entre violências que repudiamos não é, em alguma medida, legitimá-la, uma vez que se utiliza da mesma gramática de nomeações sucessivas que escolhemos, justamente, para proteger as populações por elas afetadas? Parece que para trazer inteligibilidade seja para o que enxergo em mim, seja para o que suponho no outro, dispomos apenas da criação de novas identidades que se acumulam benjaminianamente, como ruínas do progresso aos pés do anjo da história.

O que parece central aqui é que um segundo conjunto de reivindicações dos movimentos culturais do século passado parece pouco a pouco ser esquecido. Trata-se daquele conjunto das práticas sexuais. Ou seja, para que um conjunto de práticas seja permitido ele tem de ser redescrito em termos de identidade. Curioso é notar como o velho Freud dava um valor nada negligenciável às práticas e fantasias sexuais, ao passo que ligava a identificação a uma constituição subjetiva geral, e não sublinhava a possibilidade de “identidades”.

Atualmente as práticas sexuais parecem encontrar sua expressão em comunidades. E aqui o papel da internet é fundamental. Em uma rápida busca no google é fácil encontrar uma enormidade de comunidades das mais diversas e pitorescas práticas sexuais. Mas o que se passa com elas?

Tomemos, por exemplo, as práticas sado-masoquistas. Elas são extremamente elogiadas por Foucault, vistas com um grande potencial libertador no sentido de promover contribuições culturais importantes. Elas sublinham o caráter fantástico da erotização do corpo, mostrando de fato como é possível libertar-se de uma sexualidade que, no fundo, ainda estaria ligada à reprodução, à heteronormatividade compulsória – declarada ou não. Sugere Foucault que este tipo de movimento teria um papel importantíssimo para uma retomada do prazer, onde atualmente só falamos de desejo. É a isso que Foucault chamava “cultura gay” (HALPERIN, 2010, p. 136) Não uma nicho fechado, ou uma obras de arte que fizessem referência à temáticas gays. Tratava-se, antes, de outras formas de usar o corpo, formas que, diriam respeito as possibilidades subjetivas para todos, e não de indivíduos específicos rotulados como sado-masoquistas. A ideia era que as possibilidades da prática mostrariam a fragilidade ou no mínimo a mutação e historicidade daquilo tido como identidades.

No entanto, até estas práticas identitarizaram-se. O movimento BDSM conta hoje com uma complexa rede de regras, denominações e modos de funcionamentos que parecem diminuir o caráter universal e contestador das práticas SM, transformando os praticantes em S, M, vanillas e até aqueles indefinidos, que praticam ambas de switchers. Palavra aliás muito curiosa, que resume a força de uma tendência à localização identitária das práticas. Há em algumas subdivisões inclusive cerimônias que mimetizam um casamento entre os membros. Ou seja, ao invés de dar à sociedade contribuições e possibilidades de outras relações com o sexo, este movimento parece copiá-la, recriar em seu interior exatamente um modelo de funcionamento que era antes alvo de críticas.

Defender práticas, por outro lado, é defender a todos. Pois aí garante-se o direito que todos possam delas usufruir. Já defender identidades, não necessariamente. Trata-se de um movimento análogo à existência do habeas corpus, da obrigatoriedade do julgamento e até mesmo da presunção da culpa: 90% da população nunca irá utilizá-los, mas sua existência é necessário em um horizonte democrático de liberdade. E como prática, não como identidade, pois visaríamos aí no campo do direito e das lutas sociais escapar da aposta na ontologia, criticada por diversos pensadores – De Heidegger a Lacan, passando por Derrida e Deluze – ao longo do próprio século XX.

Do ponto de vista da ideologia, a diferença reside que as práticas podem ser esguias, performativas, potencialmente perigosas. Elas guardam em si possibilidades de mudanças não previstas, ou não necessariamente descritas em termos identitários. “Quem não balança sua barraca à noite não está fazendo seu papel na revolução”, disse um ativista em uma das assembleias do Ocupa Sampa, movimento de ocupação que tomou espaço no Vale do Anhangabaú em São Paulo em 2011. Se por um lado elas podem carregar a ideia da desmoralização do movimento, de um pretexto de jovens para a baderna, essas palavras pontuam também que a fronteira entre o íntimo e o político é por vezes tênue e quando representa perigo para o discurso dominante é aumentada ao extremo. Estas palavras nos lembram também que o corpo hoje é mais do que o palco, é na esteira foucaultiana a encarnação dos limites ideológicos de nosso tempo.

Pensemos no corpo dos vampiros da Saga Crepúsculo. Ao contrário da longa tradição vampírica que remonta mais diretamente ao Romantismo, o vampiro Edward, por exemplo, é bonito, charmoso, brilha ao sol. Nojo ou asco é a última palavra que pode ser associada a esta nova vertente de vampiros. Observem que com isso a sexualidade é igualmente colocada de lado. Ou melhor, ela é reinserida apenas no contexto matrimonial, aqui com a sobreposição metafórica entre a mordida do vampiro e o ato sexual: uma das grandes tensões ao longo da história é justamente a impossibilidade da protagonista transar com seu vampiro encantado antes do casamento. Retomando a questão da barraca, há uma passagem em um dos livros na qual vampiro e lobisomem partilham quase que amigavelmente a mesma barraca com a apática protagonista Bella. Surpreendentemente a tensão da montagem não é sexual, mas antes é uma tensão de “quem será o escolhido de Bella, quem será seu Marido” E não quem irá conhecer Bella no sentido bíblico. O ato sexual neste caso – como parece cada vez mais se tornar a tendência – é tido como um epifenômeno, uma consequência, uma prova de algo e não um motor produtor, criativo ou mesmo disruptivo. É nesse contexto que fica possível e até justificada a existência do grupo de jovens assexuados, não ligados à igreja ou streightheads, simplesmente assexuados. Observem a diferença da barraca do crepúsculo para a barraca de Brockback Mountain, onde é a prática que parece dar as cartas e a intrusão de definições identitárias parece estrangeira.

Assim, diferentemente das práticas, as identidades podem ser apreendidas, regradas. O que retomo como crítica é que as grandes reivindicações do nosso tempo parecem ser ligadas apenas a dividir identidades, melhor descrevê-las. Observem que o que se passa com o movimento gay. Nascido de uma crítica à fixidez de costumes e visando dar voz ao que sempre aconteceu, trazer à luz (inclusive do direito) formas de vida humanas que eram colocadas de lado, hoje foca grande parte das suas lutas em diversas frentes que, como a hidra de Hércules, parecem multiplicar-se a cada avanço. Assim como o movimento LGBTIQQ se esforça para melhor categorizar e defender cada uma destas identidades sexuais, o Manual Estatístico dos Transtornos Mentais, DSM, realiza o mesmo esforço no sentido de definir cada afecção mental como entidade própria, idêntica a si e descritível. Assim observem que dois movimentos tão diferentes, politicamente opostos, estão igualmente imersos numa racionalidade classificatória que hoje tomamos como quase natural.

Acho que é neste ponto que a psicanálise pode introduzir contribuições significativas para o debate a respeito do gênero e suas questões.

Uma crítica histérica da razão servil

É importante não deixar de sublinhar uma das importantes contribuições freudianas para o feminismo, que por vezes é ignorada tanto por este quanto pela psicanálise. Trata-se de um curioso materialismo em Freud, referente à posição social e intelectual da mulher no contexto vitoriano. Para Freud o fato das mulheres apresentarem à época uma inibição intelectual inferior a observada nos homens não diria respeito à sua natureza feminina, à questão da maternidade muito menos à diferenças anatômicas. Esta assimetria de inteligência – que de fato era observada, construída e reforçada – seria a partir da visão freudiana um resultado da hipocrisia com a qual a matéria sexual era tratada. Assim, as mulheres privadas de um conhecimento acerca do próprio corpo, da relação sexual e de práticas relativamente tão plurais quanto as masculinas, desenvolveriam uma inibição, observada em seu retraimento civilizatório.

Observem que está é uma crítica dupla. Trata-se aqui tanto de criticar uma falsa moral masculina, montada sobre uma assimetria de posições que goza das possibilidades tanto de uma vida íntegra quanto de uma vida mundana; quanto de mostrar que essa assimetria de posições não é natural, mas antes uma construção que antecipa a inversão foucaultiana entre saber e poder. Ou seja, não se trata como intuitivamente poderíamos pensar de um acúmulo de saber de um grupo que teria como resultado um posterior acúmulo de poder superior ao outro. Pelo contrário, a questão gira em torno de uma assimetria de poder entre os sexos que irá resultar em uma assimetria de saberes.

Resumidamente, poderíamos propor que Freud não tinha como foco de interesse o que hoje consideramos como gênero ou mesmo identidade sexual. Nos parece que suas reflexões dão mais ênfase às possibilidades de escolhas objetais sendo que as identificações nos casos de homossexualidade, por exemplo, se dão sempre em função de identificações inconscientes. Eis sua preocupação, o que hoje ainda nos parece bastante atual. Seja por não ter se deparado com a questão da transexualidade, seja por considerar a identidade sexual consciente como coincidente à anatomia, é fato que a questão social da época dizia muito mais respeito aos costumes e práticas do que, propriamente, as construções – imaginárias dirá Lacan – acerca de si. Por outro lado, uma ausência de reflexões neste sentido mostra também o quanto, para a psicanálise, a identidade de gênero poderia ser um conceito dispensável, pois o que estaria em jogo é sempre o inconsciente.

Desta forma uma aporia começa a armar-se. Temos, por um lado, uma sociedade que funciona de forma bastante eficaz a partir de uma bipartição de sexos complementares, que apenas vez por outra apresenta “pequenas questões”, como a homossexualidade à época de Freud e, talvez, como a transexualidade em nossa época atual. Individualmente, esta diferença é da mesma forma clara: as pessoas sabem-se homens e mulheres não há dúvidas, não há alterações ao longo da vida. E, o mais importante, essa dualidade é coincidente com a realidade biológica, com a diferença anatômica dos sexos.

No entanto, por outro lado temos o inconsciente. A partir desse modelo explicativo observamos uma inversão de tudo aquilo que seria fenomenologicamente descrito, nos afastamos de um detalhamento das experiências conscientes – como o estruturalismo de Titchener e a psicologia de Wundt. Tratar-se-ia então de encontrar uma verdade por meio daquilo que é esquecido, deixado de lado: os sonhos, os lapsos, os atos falhos, os sintomas, etc.. Tal como a própria história da medicina demonstra, as descobertas são efetuadas a partir do estudo aprofundado daquilo que escapa ao esperado, e é dessa forma que uma construção do normal se efetua.

Ora, isto funcionaria também em relação às diferenças sexuais. Freud diz explicitamente já nos “três ensaios” que mesmo o interesse do homem pela mulher como o da mulher pelo homem não seriam dados, mas antes uma questão que requer esclarecimento. É claro que hoje nossa crítica poderia apontar que muito mais do que uma questão de escolha objetal, a questão que de fato requer esclarecimento é a questão de identidade.

Mas não cobremos de Freud o que Freud não nos pode dar. Ainda que não diretamente, a grande contribuição do pai da psicanálise nesse sentido foi sugerir que grande parte de nosso funcionamento psíquico é estruturalmente não acessível à consciência. Exceto por desenvolvimentos iniciais, não se trataria para Freud de trazer a tona conteúdos inconscientes para a consciência, já que se trataria de um sistema inconsciente. E é nessa chave que podemos ler em boa parte das questões de gênero em Freud. Pois seja na histeria, na perversão ou na psicose é sempre um conflito travado na fronteira do sexo e do gênero que causará o sofrimento psicológico.

Mas para encaminharmos essas discussões para uma conclusão, algumas formulações de Lacan nos parecem frutíferas. Sua mais conhecida proposta teórica a respeito das diferenças sexuais foi apresentada no seminário XX, as fórmulas da sexuação. No entanto, queria propor para vocês um caminho diferente para pensar o sexo e o gênero talvez mais a serviço do que foi até agora apresentado. Se diagnosticamos um excesso identitário nas questões que circundam o gênero e percebemos que o polo das práticas pode igualmente ser traduzido ou fagocitado pelo primeiro, propomos que há um caminho terceiro em Lacan, a saber, a teoria dos discursos.5

Apesar de pouco citado, há um modelo discursivo de gênero em Lacan, resumido na passagem “o homem e a mulher são efeitos de discurso” (AMBRA, 2013). Observem que os definindo como efeitos, a questão identitária torna-se inapreensível como tal. Entendam os discursos aqui não necessariamente na acepção foucaultiana junto ao poder, mas como modalidades distintas de laço social, formas de posicionar-se frente ao outro que por sua vez constituirão o sujeito e não o inverso.

Lacan irá postular a existência de quatro discursos radicais: o do mestre, o da histérica, o universitário e o discurso do analista. Para nossos propósitos, vou me focar apenas em dois deles.

Tomemos o discurso do Mestre. Baseado na dialética do Senhor e do Escravo Hegeliana, é um discurso que define o modo de produção capitalista e, dirá Lacan, que analogamente produz também o sujeito moderno.

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Não vou explicar o discurso completamente, mas pretendo demonstrar como a lógica atual de gestão do sexo funciona a partir deste princípio, a partir do discurso do Mestre.

Assim, temos um S1 – o significante mestre – na posição de agente. O significante mestre nesta posição é aquele que coordenará toda a produção a partir de sua palavra e ordem únicas. Aqui não há, por exemplo, justificativa para a ordem, para a dominação. O significante mestre só se autoriza de si mesmo. Gostaria de convidar vocês a pensar que atualmente, no caso do sexo, esta posição seria ocupada pelo princípio uno da identidade. Um princípio não encarnado, mas um modo de funcionamento que tende a orquestrar a realidade social a partir da lógica dos objetos idênticos a si, dentro da lógica do 1, do Falo, dirão alguns. Assim, entendam a aspiração à identidade como agente, como mestre de uma tônica moderna em relação ao sexo.

Este significante mestre da identidade por si só não define muita coisa. É preciso que as outras posições também estejam preenchidas. No lugar do Outro, ocupado pelo saber, S2, é a posição onde inicialmente seria encontrada a subjetividade do escravo hegeliano. Aí, este Outro, ainda que na posição de passividade, é um detentor de um saber. Em algum grau, o significante mestre depende dele. É o escravo que tem, contraditoriamente, seu senhor nas mãos pois o senhor depende do reconhecimento do escravo.

Aqui é onde podemos encontrar em nosso exercício aquilo que é expresso pelo movimento de minorias sexuais. Os grupos criados por um princípio de identidade, que portam um saber sobre sua constituição, mas que também resistem a uma identidade declaradamente única, resistem à identidade una produzindo diversas identidades menores. A minoria é sempre o Outro da identidade hegemônica. Nossa crítica é que a resistência à identidade é feita na língua da identidade, estes dois estão intimamente ligados.

No lugar reservado à produção temos o objeto a. Aqui já estamos sob a barra, e esta distinção topológica é importante, denota alienação, mostra recalque o inconsciente em

operação. Definido por Lacan como homólogo à mais-valia, o objeto a, é aquilo que será produzido pela relação entre senhor e escravo, mas que tem como característica o fato curioso de não ser apropriada nem pelo trabalhador, nem pelo capitalista. Pensem aqui é o lucro reinvestido na empresa, ou do ponto de vista clínico a angústia, um fragmento de real que resiste à apropriação, resiste à significação.

Quanto às questões de gênero, convido vocês a pensarem essa produção que escapa tanto ao significante mestre identitário quanto às resistências identitária, a partir do que Butler circunscreve como abjeto. Abjeto é o sexo ininteligível, algo que não consegue ser traduzido em termos compartilháveis, comuns. E por este motivo, em um mundo desenhado em tinta azul, regido por um princípio de unitarização, ele se torna um corpo excluível, matável. Butler radicalizará, propondo que o abjeto é tão radicalmente excluído que nem pode ser descrito como “fora” de uma ordem ou de um espaço, simplesmente porque ele não chega a ser enxergado, reconhecido como tal. Aqui estamos próximos ao que Giorgio Agamben sublinha como Homo Sacer, excluído de qualquer possibilidade de inclusão da Pólis.

Convido vocês a pensarem em figuras que em algum grau ocupam hoje este espaço. Travestis sem qualquer ligação com movimentos sociais, exploradas diariamente, sem perspectiva modificação. Não estamos aqui falando de drag-queens que desfilam na parada gay, transformistas que cantam no programa do Sílvio Santos. Falamos das travestis soropositivas em estado terminal, daquelas estupradas por policiais militares, aquelas cuja aplicação de silicone industrial feita nos anos 80 já desfigurou completamente suas fisionomias e silhueta. Estes corpos abjetos, corpos que não contam, são a produção socialmente recalcada de uma sociedade identitária. O central aqui é mostrar que independente de um possível reconhecimento destas identidades e de uma inserção social, a lógica proveniente do discurso do mestre, de nomeação, irá sempre e necessariamente produzir a abjeção, independentemente de quem imaginariamente venha a ocupar este espaço.

Por fim, há o lugar da verdade. Lacan coloca o Sujeito Barrado ocupando este lugar no discurso do mestre, uma vez que é este sujeito dividido, este sujeito do inconsciente que irá, no fundo, povoar os pesadelos do mestre. A produção incessante que funda e é continuamente refundada pelo discurso do mestre baseia-se na sistemática negação de que o mestre é também ele mesmo um sujeito dividido e alienado do seu desejo. De que no fundo a identidade não lhe assiste de forma alguma. Em nosso caso, trata-se da postulação freudiana de que o inconsciente desconhece as diferenças sexuais. O princípio da identidade sexual está posto em cima de uma verdade que a qualquer momento pode vir a tona, a verdade de que o desejo é desejo do Outro e esse outro não tem sexo, desmontando qualquer tentativa de definição de identidade sexual, escolha objetal e mesmo de corpo. Podemos aqui radicalizar a máxima freudiana de que no inconsciente não há princípio da contradição ao dizer que isso acontece porque no inconsciente o que não há é o princípio de afirmação, no que concerne às definições sexuais. O inconsciente é de tal forma logicamente montado sobre uma gramática do sexo que não deixa espaço para uma semântica da identidade, essa uma produção consciente, uma forma de organizar um caos da maneira mais ordeira possível.

Para concluir, gostaria de apontar que um outro modelo de discurso seria possível. Que esta não é a única forma de gerirmos nossas identidades, corpos e desejos. É aqui que entra o discurso da histérica.

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Proponho que uma sexualidade outra poderia ser possível, para além da aporia que hoje se apresenta entre identidades e práticas, a partir de um característico questionamento histérico.

Assim, o sujeito do inconsciente que era antes recalcado no discurso do mestre passa agora a dar as cartas. Temos a radicalidade da gramática sexual na posição de agente, na posição de maestro da estrutura. Uma divisão a céu aberto que não estará preocupada em rótulos, nomeações, definições. Pelo contrário, o sujeito inconsciente na posição de agente será aquele que “escravizará” a identidade, que desafiará toda a tentativa de instauração de modalidades únicas de gozo, de usos de corpos e de definições. No contexto clínico, esse discurso explicará o movimento comum na histeria que é a destituição do saber do mestre. Assim, adverte Lacan que o analista nunca poderá deixar ser apanhado neste discurso, pois a histérica irá constituir um mestre para depois questioná-lo e, por fim, derrubá-lo.

No entanto, em nosso contexto, se um questionamento histérico das identidades radicalizar-se, poderíamos, por exemplo observar a concretização do sonho foucaultiano de uma sociedade menos disciplinar. Os movimentos contestatórios parariam de ver a justiça atual como uma aliada para começar a vê-la como uma inimiga, nos moldes clássicos de uma revolução.

Seguindo nosso modelo, a produção seria agora todo o conjunto de pequenas identidades que detêm o saber, atualmente consideradas como resistência. Neste segundo modelo elas estariam recalcadas evidentemente não por proibições mas porque seus saberes e definições não mais estariam a serviço de um discurso. Tornar-se-iam identidades vazias, fantasmas mudos. Não pensem que seria impossível imaginar um futuro em que as palavras: homossexual, heterossexual ou mesmo homem e mulher sejam cascas de pouco valor, desprovidas de significado. Tomas Laqueur (1998) demonstra a partir de estudos históricos como o sexo feminino pode ser considerado uma invenção ocidental do século XVIII. O que havia anteriormente era um modelo de sexo único, com corpos iguais, apenas invertidos devido a diferenças de calor entre eles. Mais do que isso, o corpo no contexto pré- iluminista era de acordo com o autor apenas um epifenômeno, um eco da real diferença que seria de posição, uma diferença social.

Por fim, estes que hoje apresentam-se como excluídos, como uma produção que ninguém assume, avatares do sofrimento e do resto que o discurso do mestre produz seriam em nosso segundo modelo a verdade. E aqui retomamos a importância do trabalho de Butler que faz justamente isso, que lê a partir destes corpos abjetos a verdade do sujeito hoje, a verdade de uma cultura. Em nossa proposição são esses fenômenos que merecem a atenção, pois neles toda as modalidades de exclusão se unem.6

Se à época vitoriana a divisão das mulheres histéricas carregava esta verdade, hoje é necessário dar toda a voz aos corpos abjetos não para incluí-los em nosso admirável mundo novo do reconhecimento, mas para que a partir deles seja possível uma desconstrução do paradigma da identidade que colonizou nossa imaginação. É hora de darmos toda a tinta vermelha para aqueles que podem utilizá-la, e ajudar a nos livrar de um daltonismo identitário. Quem sabe desta forma será possível resgatar formas de vida abertas às possibilidades que as práticas sexuais trazem de descobertas, usos e limites do corpo, sem que para isso seja necessário seu rótulo, sua organização, sua dominação?


Notas

1 Este artigo é fruto de uma conferência realizada a convite da comissão organizadora da Semana de Psicologia da USP em agosto de 2012.

2 À época da conferência que deu origem a este artigo, a USP acabara de firmar um convênio com a Polícia Militar, autorizando a entrada da PM no campus e o treinamento da guarda universitária.

3 Parte destas reflexões foram possíveis e formuladas por nós dentro de uma discussão empreendida no grupo Histeria e Gênero, ligado ao Laboratório de Teoria Social Filosofia e Psicanálise (LATESFIP). A este respeito, há um texto em preparação cujo destino será formar um capítulo do livro Patologias do Social, organizado pelo referido laboratório que busca localizar o uso social de categorias clínicas oriundas da psiquiatria e psicanálise.

4 Honneth inclui, curiosamente, o amor como um direito social.

5 Para um maior esclarecimento a respeito de tal teoria, remetemos o leitor ao Seminário XVII de Lacan, o avesso da psicanálise.

6 Será convidativa uma proposição na qual o melhor modelo para se pensar uma crítica radical da identidade seria o discurso do analista. Para além de uma saturação deste tipo de argumento quando se trata de debates sobre a teoria dos discursos lacanianos, em nossa montagem o discurso do analista traria algumas problemáticas que gostaríamos de evitar. Por exemplo, ao elevar os sujeitos que ocupam posição de abjeto à posição de agentes, ou propriamente falando de semblantes, muito rapidamente seria possível haver uma hipóstase identitária e portanto normativa das lutas sociais. Em nosso entender, para este campo, só o discurso histérico sustentaria o tipo de crítica dinâmica necessário aos dilemas contemporâneos.


Referências

AMBRA, P.E.S. A noção de homem em Lacan: uma leitura das fórmulas da sexuação a partir da história da masculinidade no Ocidente. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

ARÁN, M.; MURTA, D.; LIONÇO, T. Transexualidade e saúde pública no Brasil. Ciência e saúde coletiva, v. 14, n. 4, p. 1141-1149, 2009.

BLASS, T. Obedience to Authority: Current Perspectives on the Milgram Paradigm. Mahwah: Psychology Press, 2000.

DOW, B. J.; WOOD, J. T. Repeating History and Learning From It: What Can SlutWalks Teach Us About Feminism?, Women’s Studies in Communication, 2014, 22-43.

HALPERIN, D. M. “Becoming Homossexual”: Michel Foucault on the Future of Gay Culture Revista Eco-Pós, 2010, v. 13, n. 3, p. 136-154.

HERZOG, D. Sex in crisis: The new sexual revolution and the future of American politics. New York: Basic Books, 2008.

IPEA Errata da pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres”, 2014, in: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21971&cat id=10&Itemid=9 Acessado em 15/06/2014 às 10:20.

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