Resenha: Menos que nada de Slavoj Zizek

Por Agon Hanza, via Stasis Journal, traduzido por Daniel Alves Teixeira

“Quando ele pede o famoso “o retorno de Marx a Hegel,” o que Žižek realmente quer dizer é a inversão da abordagem padrão do século XX de descartar Hegel (representada principalmente por Althusser). Seu projeto pode assim ser resumido a seguinte tese: O marxismo contemporâneo não deve ser fundamentado na leitura que Marx faz de Hegel, mas antes nas premissas de como Hegel leria Marx, por meio de lentes lacanianas.”


Como é sabido, o sistema filosófico de Slavoj Žižek é informado por três orientações: filosofia hegeliana, a psicanálise lacaniana e uma crítica marxista da ideologia. Embora elas não estejam simetricamente presentes em seu trabalho, Žižek propõe não só uma leitura diametralmente diferente destas tradições, mas também uma re-organização sistemática e conceptual, sua relocalização em um novo terreno filosófico. Numa análise superficial de suas obras desde O Sublime Objeto da Ideologia publicado em 1989 até seu mais recente Absolute Recoil, não se pode deixar de ver uma mudança em suas referências: Lacan tem um privilégio absoluto sobre Hegel e Marx, enquanto que de A Visão em Paralaxe em diante, Hegel ocupa essa posição. No prefácio para O Sublime Objeto da Ideologia, Žižek argumenta que:

“a única forma de “salvar Hegel” é através de Lacan, e esta leitura lacaniana de Hegel e da herança hegeliana abre uma nova abordagem da ideologia, o que nos permite compreender fenômenos ideológicos contemporâneos … sem ser vítima de qualquer tipo de armadilha “pós-modernistas” (como a ilusão que vivemos em uma condição “pós-ideológica”.) (Žižek 1989: 7).”

Para Žižek, Hegel e Lacan são inseparáveis. Vamos prosseguir com mais uma citação, de Eles não Sabem o que Fazem, uma sequência de O Sublime Objeto da Ideologia:

“Como em O Sublime Objeto da Ideologia, o espaço teórico do presente livro é moldado por três centros de gravidade: dialética hegeliana, teoria psicanalítica lacaniana, e crítica contemporânea da ideologia. Esses três círculos formam um nó borreano: cada um deles conecta os outros dois; o lugar que todos eles cercam, o “sintoma” em seu meio … Os três círculos teóricos não são, no entanto, de mesmo peso: é o seu meio-termo, a teoria de Jacques Lacan, que é, como Marx iria dizer- “a iluminação geral que banha todas a outras cores e modifica suas particularidades” (Žižek 2002: 2).”

Vamos colocá-lo em termos esquemáticos: o Lacan de Žižek é o exato oposto do Lacan presente na academia anglo-saxônica, um pós-estruturalista próximo de Derrida ou mesmo Deleuze. Para Žižek, Lacan está separado de toda tradição filosófica pós-guerra e como tal, ele está muito mais próximo de Hegel do que qualquer outro – apesar do fato de que Lacan não sabia disso. Entretanto, em seu trabalho recente isso parece mudar. Já há algum tempo e em seu projeto maior de re-ler Hegel, Žižek parece colocar Hegel no papel determinante (McGowan 2013: 31-53): tanto para uma leitura da crítica da economia política de Marx como na teoria psicanalítica de Lacan. Žižek está voltando cada vez mais à noção de pulsão de Freud para ler Hegel. Apesar de seu débito com Lacan, seu principal mestre é Hegel. É por isso que Hegel é a base em cima da qual Žižek cria seu projeto político. Mesmo antes, em seu terceiro livro “maior”, Tarrying with the Negative, ele desenvolve a reversão hegeliana de Marx. Por conseguinte, Žižek vai contra a tradicional marxista “Crítica de Marx a Hegel”. Vamos proceder desse ponto. Slavoj Žižek é frequentemente acusado de ser um charlatão, um pensador inconsistente cujos livros são somente um amontoado de conteúdo insubstancial. Não é essa a linha que todos os seus críticos constantemente repetem? Eles começam pontuando que ele não tem um sistema de filosofia, e terminam argumentando que ele constantemente falha em fazer aquilo que ele promete fazer. Uma surpresa chocante para todos esses críticos é aFenomenologia do Espírito: se um dia houve um livro que é verdadeiramente inconsistente, que cobre uma larga extensão de tópicos, da consciência, ao ceticismo, arte, religião, sem uma premissa subjacente, então esse é o livro (cf. Pinkard 2000: 256-65).   Além disso, Hegel enfrentou as mesmas críticas que Žižek. Devemos então dizer que Žižek, assim como Hegel, é um pensador assistemático cheio de contradições, e aproximar essa resenha desta direção? A resposta elementar a essas acusações é que a contradição está inscrita no próprio processo dialético de pensamento. O pensamento e/ou os processos dialéticos estão baseados, fundamentados, na contradição. Um sistema de pensamento (mas não somente ele, isso funciona da mesma maneira para sistemas políticos, etc.) está fundamentado em um Todo consistente. O Todo enquanto tal está estruturado em seus sintomas, excessos, e assim por diante. Nesse sentido, esse não é precisamente o Hegel de Žižek? Os estudos filosóficos em Hegel, particularmente no mundo anglo-saxão, têm se focado predominantemente em prover um Hegel não- ou anti-metafísico. Vamos citar um paragráfo de Menos que Nada, no qual Žižek luta contra essa leitura de Hegel.

“A estratégia hegeliana predominante que está surgindo como reação a essa imagem assustadora de Hegel, o Idealista Absoluto, oferece uma imagem “esvaziada” de Hegel, livre de comprometimentos ontológico-metafísicos, reduzido a uma teoria geral do discurso, das possibilidades de argumentação. Essa abordagem é mais bem exemplificada pelos chamados hegelianos de Pittsburgh (Brandom, McDowell) e também é defendida por Robert Pippin, para quem o propósito da tese de Hegel sobre o Espírito enquanto “verdade” da Natureza”.  

Ele continua:

“Essa imagem “esvaziada” de Hegel não é o bastante, a ruptura pós-hegeliana deve ser abordada em termos mais diretos. Sim, há uma ruptura, mas Hegel é nela o “mediador em desaparição” entre seu “antes” e seu “depois”, entre a metafísica tradicional e o pensamento pós-metafísico dos séculos XIX e XX. Ou seja, algo acontece em Hegel, um grande avanço para uma dimensão única do pensamento, que é obliterada, tornada invisível em sua verdadeira dimensão pelo pensamento pós-metafísico”.

A pergunta que temos de fazer é, portanto, simples: por que Žižek precisa de Hegel? E qual é o Hegel que extraímos na obra de Žižek? Em um nível elementar, o Hegel de Žižek é o Hegel anti-esvaziado, como desenvolvido de forma mais consistente por Pippin, cujo objetivo é defender a filosofia burguesa. Como resultado deste, nós temos ambos, tanto uma Hegel ontologicamente como politicamente esvaziado, que teorizou o Estado burguês e seus efeitos.

Quando ele pede o famoso “retorno de Marx a Hegel,” o que Žižek realmente quer dizer é a inversão da abordagem padrão do século XX de descartar Hegel (representada principalmente por Althusser). Seu projeto pode assim ser resumido a seguinte tese: O marxismo contemporâneo não deve ser fundamentado na leitura que Marx faz de Hegel, mas antes nas premissas de como Hegel leria Marx, por meio de lentes lacanianas.

Como funciona a filosofia de Hegel? A filosofia intervém quando e onde a figura de consciência envelheceu. Nas palavras de Hegel:

“O que o conceito ensina mostra-o a história com a mesma necessidade: é somente quando o atual alcançou a maturidade que o ideal se ergue em face do real e reconstrói esse mundo real, que ele apreendeu em sua substância, na forma de um império de ideias. Quando a filosofia pinta cinza sobre cinza, uma forma de vida envelheceu, e ela não pode ser rejuvenescida, mas apenas reconhecida, pelo cinza sobre cinza da filosofia; a coruja de Minerva começa seu voo somente com o início do crepúsculo” (Hegel 1991:23)

Mais uma vez, se seguirmos Žižek nós podemos argumentar contra Tese 11 de Marx, de acordo com a qual, ao longo da história da filosofia, os filósofos têm apenas interpretado o mundo; ocupando a posição da bela alma, recusando-se a se engajar nele e assim transformá-lo. Não é exatamente o oposto verdadeiro? A exceção de Hegel, todos os outros filósofos tinham um plano mestre de uma forma ideal de organização social: desde Platão em diante, cada filósofo escreveu ou teve sua República. O único que não tem um tal projeto, e para quem a crítica de Marx é predominantemente dirigida, é Hegel! Hegel é o filósofo que não olha particularmente para o futuro: lembremos seus comentários sobre os Estados Unidos e a Rússia, onde (de uma perspectiva do século XVIII), ele diz que apesar de ser muito cedo para falar, o futuro está com eles.

A posição mais anti-hegeliana seria ver sua conceituação do Estado como um Estado fechado, racional. Se nada mais, seu Estado é aberto a todas as contingências, eventos inesperados, reversões, e assim por diante. É precisamente esta abertura que concede a Žižek a possibilidade de repensar o comunismo em termos hegelianos.


Nota do tradutor: Para maiores desenvolvimentos das ideias apresentadas nesta resenha, ver o texto de Gabriel Tupinambá publicado na Revista Analytica

Bibliografia

Hamza, Agon (2015). “Going to One’s Ground: Žižek’s Dialectical Materialism.” InSlavoj Žižek and Dialectical Materialism, eds. Agon Hamza and Frank Ruda, 163– 75. New York: Palgrave.

Hegel, G. W. F. (1991). Elements of the Philosophy of Right. Ed. Allen B. Wood, trans. H. B. Nisbet. Oxford: Oxford University Press

Johnston, Adrian (2012). “Where to Start?: Robert Pippin, Slavoj Žižek, and the True Beginning(s) of Hegel’s System.” Crisis and Critique 1.3: 371–418.

McGowan, Todd (2013). “Hegel as a Marxist: Žižek’s revision of German Idealism.” In Žižek Now: Current Perspectives in Žižek Studies, eds. Jamil Khader and Molly Anne Rothenberg, 31–54. Cambridge: Polity.

Pippin, Robert (2012–13). “Back to Hegel?” Meditations 26.1–2:7–29.http://www.mediationsjournal. org/articles/back-to-hegel.

Žižek, Slavoj (1989). The Sublime Object of Ideology. London: Verso.

Žižek, Slavoj (2002). For They Know Not What They Do: Enjoyment as a Political Factor. London: Verso.

 Žižek, Slavoj (2012). Less Than Nothing: Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism. London: Verso.

Žižek, Slavoj (2014). Absolute Recoil: Towards a New Foundation of Dialectical Materialism. London: Verso.

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