Por Alexandre Pimenta
“Todos os economistas, tão logo discutem a relação existente entre capital e trabalho assalariado, entre lucro e salário, e demonstram ao trabalhador que ele não tem nenhum direito a participar das oportunidades do lucro, enfim, desejam tranquilizá-lo sobre seu papel subordinado perante o capitalista, sublinham que ele, em contraste com o capitalista, possui certa fixidez da renda mais ou menos independente das grandes aventuras do capital. Exatamente como Dom Quixote consola Sancho Pança [com a ideia] de que, embora certamente leve todas as surras, ao menos não precisa ser valente.” Marx (2011 p. 35)
Está em qualquer edição da Veja: lucrar é bom. Está no sucesso editorial Ayn Rand: o único explorado da sociedade é o capitalista. Está na nova direita que grita nas ruas: o empresário é a maior vítima do sistema. Seria o mundo que está de cabeça para baixo? A ofensiva ideológica de direita estaria parindo um monstro novo e irracional? Aos mais novos e desavisados seria bom lembrar de que um constructo ideológico de legitimação da função do capitalista, e consequentemente de seu lucro e apropriação privada, é um aspecto estruturante do próprio modo de produção capitalista, observável desde que time se tornou money – como disse o bolso do capitalista através da boca de Benjamin Franklin. E para dissecar um dos mitos mais constitutivos do capitalismo, quer seja, o direito do capitalista ao assim chamado lucro (ou apropriação do mais-valor/trabalho não-pago gerado na produção), nada melhor que voltar a Marx.
Na epígrafe vemos os personagens principais da trama: Dom Quixote, cavaleiro deslocado (aqui, mais futurista que nostálgico) que sai em busca de aventura, com suas armas e coragem – concretamente: atrás de lucro com seu capital e papel de capitalista. Do outro lado, um sujeito um tanto estranho e acomodado, que só tem seu couro para ser esfolado – concretamente: o proletário sem meios de produção, vítima do assalariamento. Aparentemente, um possui a vontade, a ação, e o mérito – eis o merecedor de todo lucro, outro nome para o preço do risco; o outro, a paralisia, a passividade, cuja recompensa é um salário fixo e rebaixado.
Nesse imaginário da sociedade burguesa, Dom Quixote chegou a tal posição pela virtude e inteligência: mais propriamente pela abstinência calculada. Fechou a boca, batalhou e aproveitou racionalmente as oportunidades. Um ethos racional e ascético peculiar que, como apontou Weber, coadunou com o protestantismo. Tendo já o capital em suas mãos vai ao mercado e lá encontra seus futuros empregados. O laço contratual entre as duas figuras jurídicas marcadas pela igualdade e liberdade são a cereja do bolo: não só da palavra do capitalista ele pode mostrar quão justa é sua posição, mas também pelas letras douradas da lei.
Marx possui ao menos dois dispositivos para desarticular esse mito: o primeiro, e mais conhecido é a revelação das marcas de “sangue e fogo” que caracterizam a chamada “acumulação primitiva”, que nada mais é que o processo concomitante de proletarização, num lado, e concentração de meios de produção noutro. (Processo constante já que o capitalismo não só produz mercadoria, ou mais-valia, mas também: “a própria relação capital, de um lado o capitalista, de outro o trabalhador assalariado”. [MARX, 1997, p. 211]). O autor mostra, n’O capital, a partir do caso inglês, o quão essa acumulação inicial se baseou na violência, no auxílio direto do Estado, e em diversas formas de desapropriação de antigos produtores. Essa via de argumentação requer reconstruções histórico-geográficas específicas da expropriação de comunidades e povoações para a construção dos atuais impérios privados que atravessam gerações na forma legal da herança.
Mas o outro dispositivo, que desdobraremos aqui, é através da análise da reprodução contínua do capital. Nesse ponto, para sua argumentação, Marx não desconsidera casos individuais de acúmulo inicial de capital por trabalho próprio: “é provável que alguma vez o capitalista se tornou possuidor de dinheiro em virtude de uma acumulação primitiva, independente de trabalho alheio não-pago” (MARX, 1997, p. 202).
No entanto, Marx busca fundamentar que, mesmo essa hipótese sendo real, a continuidade da acumulação do seu capital só será possível através do trabalho não-pago da mão-de-obra. Em um tempo mais ou menos longo, a mais-valia reinvestida no capital será superior ao seu capital inicial, fazendo que em seu capital atual não sobre “nenhum átomo de valor de seu antigo capital” (MARX, 1997, p. 203). A partir desse momento, o capitalista nada mais faz que extrair mais-trabalho alheio através de antigo trabalho alheio (na forma de valor) já expropriado. Situação semelhante a um caso de endividamento que excede as propriedades do indivíduo em questão, anulando, assim, suas posses.
Interessante citar que Harvey (2013, p. 240) vê aqui um diálogo oculto de Marx com Locke. Segundo o inglês, o direito à propriedade “cabem àqueles que criam valor” ao trabalhar com os meios de produção. Irônico e trágico é saber que não são os liberais que defendem historicamente essa tese, muito mais presente, por exemplo, no movimento camponês (“terra para quem nela trabalha”).
As duas posições da trama são tão desiguais economicamente enquanto capital e trabalho, que também não se pode falar de propriedades e rendimentos apenas quantitativamente diferentes. Para Marx (1997, p. 216), “quanto mais o capitalista houver acumulado, tanto mais poderá acumular”, ou como diz uma famosa tese de Kalecki “os trabalhadores gastam o que ganham e os capitalistas ganham o que gastam”. Ou seja, é Sancho Pança que na realidade está preso ao nível da subsistência continuamente, da abstinência e risco forçados, por sua posição nas relações de produção – ele próprio propriedade dos capitalistas “de todo o mundo”.
Obviamente a estrutura ideológica que decorre do assalariamento é muito mais profunda e complexa, fazendo da exploração algo muito mais invisível e sutil neste modo de produção que, por exemplo, no escravagismo. A compra da força de trabalho abre a possibilidade de usar essa mercadoria de tal forma a superar seu valor de troca, sem corromper o contrato ou a equivalência das trocas. Assim como o “trabalho” do capitalista na expropriação de mais-valia faz este enxergar o lucro como um “salário” para si, e mesmo a produção de bens e serviços que surge através de sua sede por acumulação de capital como “função social”.
A nosso ver, a figura ideológica do capitalista poupador é ideológica por si só, pois imaginária, e que possui a clara função de camuflar a real carga patrimonial e predatória do capital – tão distante de qualquer coisa que se possa entender por mérito.
Referências
HARVEY, David. Para entender O capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2011.
______. O capital: Crítica da Economia Política. Livro Primeiro. Tomo II. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997.
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