Por Elcemir Paço Cunha, via Revista do NIEP-Marx
Tornou-se comum a afirmação de que haveria em Marx uma “concepção restrita” do Estado, entendido estritamente como “aparelho de repressão”, isto é, como face coercitiva de um instrumento de classe. No presente artigo são apresentados alguns dos argumentos centrais dessa tese a partir de diferentes autores ligados às correntes gramscianas. Sugere-se que Engels e Lenin tenham propagado mais claramente essa tese do Estado-coerção identificando-a com Marx. Ao combater essa tese, o artigo procura mostrar que, em Marx, é possível encontrar, entre outras coisas (e.g. dívida pública), um movimento real da forma política extraído dos casos concretos de entificação do capitalismo (via clássica e prussiana), comportando diferentes modos de atuação do Estado sincrético.
I.
Já ficou demonstrado, em outro lugar (Paço Cunha, 2014), a insuficiência de uma imputação a Marx de uma “concepção restrita” (ou mesmo “ampliada”) do Estado. Por uma série de razões, vimo-nos obrigados a estender as considerações a respeito para evidenciar os traços decisivos das análises de Marx atinentes aos casos concretos da Inglaterra, França e Alemanha.
O preconceito já muito difundido de que, para Marx, o Estado resumir-se-ia à repressão como instrumento nas mãos da classe dominante encontra ecos por todos os lados. É preciso identificar, logo de partida, que os mais importantes propagadores desse inadvertido resumo foram Engels e Lenin, a despeito de todas as demais contribuições e do respeito que necessariamente daí resulta. Mas fazer a crítica, é bom que se diga, não é índice de desmerecimento dos autores (desses ora em tela e dos demais a seguir), mas colocar em movimento o único caminho possível do avanço do marxismo: a autocrítica. Ora, não podemos dar de ombros para o problema. É certo que nem Engels ou Lenin poderiam ser inteiramente acusados de uma defesa tão unilateral, mas foram divulgadores importantes e com reputação suficiente para fixar uma apreensão do Estado exclusivamente como repressão.
Engels, por exemplo, como era muito comum fazer em seus textos, alegava seus próprios achados, muitos deles importantíssimos, como se fossem do próprio Marx. É algo recorrente no modo de exposição de Engels, onde podemos ler que o Estado é uma “força especial de repressão” (1989, p. 321). Lenin usava de recurso apenas semelhante: tinha sempre os lineamentos de Engels de A origem da família, da propriedade privada e do Estado em tela para, em seguida e sem mediações, explicar que, “segundo Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra, é a criação de uma ‘ordem’ que legaliza e consolida esta opressão, moderando o conflito das classes” (1988a, p. 226). Ou ainda, seguindo o mesmo padrão: o “Estado é um aparelho de aplicação sistemática da violência” (1980, p. 179). É importante fazer ressalvas. Enquanto Engels (1990, p. 392) considerou também o Estado “como o primeiro poder ideológico” ou, ainda, destacou a existência dos “meios de distribuição políticos, impostos, assistência aos pobres” (Engels, 2012, pp. 12-13), Lenin não deixou de enfatizar a questão decisiva do hábito (1988a, p. 255) ou de destacar a mediação política na formação das consciências revolucionárias (1988b, p. 55ss.).
Mesmo com as ressalvas feitas, encontramos ecos de uma suposta limitação de Marx no aspecto repressivo do Estado em muitas correntes do próprio marxismo. Mandel (1971, p. 19), por exemplo, enfatiza que, “em suma, todas as funções do aparato do Estado são reduzidas a isso: vigilância e controle da vida da sociedade de acordo com os interesses da classe dominante”. Claro que aqui também cabem ressalvas, ao deixar indicada a existência das “concessões feitas aos explorados” (idem). Noutro lugar, Mandel (1976, p. 475) explicou que “a função repressiva de fazer valer o domínio da classe dominante pela coerção (exército, política, direito, sistema penal) foi a dimensão do Estado mais detalhadamente examinada no marxismo clássico”, englobando, aparentemente, Marx, Engels e Lenin conjuntamente, de modo que as “funções integrativas” do Estado por mediação da “ideologia da classe dominante” (idem) só seriam enfatizadas depois, por Lukács e Gramsci.
Mas existem outros lugares em que aquelas ressalvas tendem a desaparecer por completo em nome de uma fixação mais unilateral. É mais comum, não por acaso, entre autores que transitam pela ciência política. Rosenberg (1986, p. 200), entre outros impropérios, escreveu que “Marx considerava o Estado como meio de coerção nas mãos da classe dominante”. Vemos algo parecido, mas abrandado, em Texier (2005, p. 72ss.), cuja leitura mostra um Gramsci como um tipo de boia salva-vidas indiscutível em meio às deficiências alegadamente identificadas em Marx e Engels com relação à atuação do Estado. Seguindo essa tradição de tomar Gramsci como mediação para alegar deficiência de uma teoria política em Marx, Jessop (2009, pp. 114-115) aponta haver uma “reorientação na teoria marxista” em razão das limitações dos “clássicos do marxismo” no século XIX. Ou ainda, de modo mais direto, Liguori (2007, p. 21) não deixa dúvidas ao afirmar que a “atenção de Gramsci se dirige sobretudo aos ‘aparelhos hegemônicos’ […], aparelhos que se somam aos ‘aparelhos coercitivos’, típicos do Estado stricto sensu, do Estado oitocentista, ao qual se dirigira a atenção de Marx e também de Lenin”. Um “novo conceito de Estado” destacar-se-ia, tendo por critério os “aparelhos coercitivos” atribuídos exclusivamente ao Estado no século XIX, o que permite sustentar um limite analítico de Marx, superado por aquele “novo conceito” de Gramsci.
Com Poulantzas (1980), a recusa de um caráter instrumental e repressivo do Estado nas mãos da classe dominante toma uma forma bastante acabada. Ele pôde passar por Gramsci e mostrar avanço em relação à má compreensão estacionada no binômio repressão-ideologia. Sem cair na armadilha da tese do Estado-coerção em Marx que aqui se delineia, livra-se do percalço por uma aproximação com o dirigente político italiano e não em razão de um correto entendimento das próprias aquisições marxianas a este respeito. Trata-se, no entanto, de uma honrosa exceção.
Mas a regra é outra: na aproximação com as ideias gramscianas, indicações estranhas ao próprio Gramsci são lançadas contra Marx – como veremos em instantes. É o caso de Coutinho, autor brasileiro que mais desenvolve a tese do Estado-coerção em Marx, atribuindo a ele uma “concepção restrita” de Estado se comparada à uma “concepção ampliada” identificada em Gramsci. Sem volteios, o argumento de Coutinho explicita-se pelo entendimento de que “Gramsci irá promover um desenvolvimento original de alguns dos conceitos básicos de Marx, Engels e Lenin” (2012, p. 83). A superioridade de Gramsci estaria numa “elevação” a partir “da ideia de que todo Estado é um Estado de classe, ideia essencial na teoria política de Marx e de Lenin”, almejando evidenciar os “modos pelos quais esse caráter classista se explicita nas sociedades mais complexas do ‘Ocidente’ do século XX”. Quer dizer, entender o Estado “não mais apenas através dos aparelhos repressivos do Estado, mas de uma articulação entre tais aparelhos e os ‘aparelhos privados de hegemonia’, isto é, entre sociedade política e a sociedade civil” (ibidem, p. 87). Ao examinarem “a estrutura do Estado”, explica Coutinho, “Marx, Engels e Lenin” estacionaram na “repressão” porque identificaram no “monopólio legal e/ou de fato da coerção e da violência” aquele “modo principal através do qual o Estado em geral faz valer sua natureza de classe”. Em suma, aglutinando Marx, Engels e Lenin, sustenta que “tendencialmente, identificam o Estado – a máquina estatal – com o conjunto de seus aparelhos repressivos” (ibidem, p. 124), pois “é a sociedade política (ou o Estado-coerção) o momento do fenômeno estatal que recebeu a atenção prioritária dos clássicos, enquanto as novas determinações descobertas por Gramsci concentram-se no que ele chama de sociedade civil” (ibidem, p. 128).
Podemos completar a argumentação de Coutinho a esse respeito com a análise que o autor brasileiro desenvolve tendo por território exclusivo o Manifesto do Partido Comunista. Depois de citar as famosas passagens sobre do Estado como meio de opressão de uma classe sobre a outra e de que o poder Executivo é o comitê para cuidar dos negócios da burguesia, escreveu também que “Marx e Engels não são suficientemente explícitos, […] mas ao falarem em ‘poder organizado para a opressão’ e ao insistirem na natureza burocrática do pessoal do Estado, indicam que a materialidade institucional do Estado se limita – ou se expressa preponderantemente – nos aparelhos repressivos e burocrático-executivos” (Coutinho, 1996, p. 20). E, em seguida, o arremate: “Está assim formulada a essência da concepção ‘restrita’ do Estado: essa seria a expressão direta e imediata do domínio de classe (‘comitê executivo’), exercido através da coerção (‘poder de opressão’)” (ibidem, p. 20).
As ressalvas que o autor brasileiro apresenta, com o “não são suficientemente explícitos”, “preponderantemente”, ou antes, com o “modo principal”, “tendencialmente” etc., chamando a atenção “para o fato de que a concepção ‘restrita’ do Estado e o paradigma ‘explosivo’ do processo revolucionário foram superados, pelo menos parcialmente, nas obras mais tardias de Marx” (ibidem, p. 26), possuem um caráter protocolar para quem só parece ter examinado de fato o Manifesto. Aquelas alegações, que as ressalvas não abrandam, possuem uma base comum, pois, como nos informou Coutinho, “estão certamente em Marx os elementos para a construção de uma teoria da política, mas não há um tratamento sistematicamente elaborado dessa esfera do ser social, similar à teoria do modo de produção, tal como essa nos é apresentada, por exemplo, em O capital” (ibidem, p. 81). Tratava-se de encontrar uma “teorização autônoma do político” que não poderia mesmo ser encontrada em Marx. Que fique claro, a despeito de identificarmos em Coutinho uma forma mais acabada do argumento sobre a existência de uma tese do Estado-coerção em Marx, esse preconceito corta toda a história do marxismo.
Aliás, precisa ficar clara a posição de Gramsci a este respeito, de uma “concepção restrita” do Estado tangente a Marx. Buci-Glucksmann, por exemplo, mostra que os adversários do dirigente italiano não eram outros senão o “economicismo” e o “maximalismo”. Um dos argumentos centrais é que a “ampliação do Estado é uma tese antieconomicista, que questiona o economicismo liberal e o economicismo maximalista”, isto é, a “recusa de uma concepção instrumentalista do Estado, manobrado por uma ‘classe sujeito’” (1980, p. 149).
Tomando o próprio Gramsci do período anterior aos Cadernos do cárcere, é possível identificar juízos bastante estranhos, como a imputação a Marx de “incrustações positivistas” (Gramsci, 1976, pp. 161-162) ou, de modo ainda mais duro, sugerir que o autor de Trier fosse dado a metáforas “grosseiras e violentas” (Gramsci, 1973, p. 86). Mas, nos Cadernos propriamente ditos, a polêmica de Gramsci contra uma apreensão limitada à coerção não se direciona a Marx, mas a Lassalle! Segundo o dirigente italiano, Lassalle teria se restringido à concepção de um “Estado cujas funções limitam-se à tutela da ordem pública e do respeito às leis”, isto é, um “Estado-veilleur de nuit” ou “Stato-carabiniere”, cuja existência se deu apenas como “hipótese-limite, no papel” (Gramsci, 1989, p. 148; 1977a, p. 2302, Q26, §6). Mas é decisivo que Gramsci tenha reconhecido que “a expressão ‘guarda noturno’ para definir o Estado liberal é de Lassalle, isto é, de um estadista dogmático e não dialético”. É ainda mais significativo que tenha anotado marginalmente a importância de se “examinar bem a doutrina de Lassalle sobre este ponto e sobre o Estado em geral, em contraste com o marxismo” (1989, p. 150; 1977b, p. 764). Quer dizer, o próprio Gramsci atribuía tal entendimento a um tipo de avaliação dogmática, não dialética. Uma avaliação correta da realidade, dialética, só poderia ser encontrada no próprio marxismo. Marx estaria excluído desse grupo?
A questão é essa: o que se ignora do “novo materialismo” (Marx) com essas imputações nada dialéticas, de uma fixação num único momento do movimento da realidade concreta? O problema precisa ser posto adequadamente em relação a pelo menos duas posições importantes para a compreensão do movimento da forma política. Tais posições estão amalgamadas de tal forma que apenas na exposição científica é possível dissolvê-las. A primeira diz respeito à incessante busca de Marx por reproduzir a lógica imanente às próprias coisas. Um dos traços decisivos do “novo materialismo” é determinar o movimento de mudança e transformação da própria realidade concreta. Isso nos leva à segunda posição: seria absolutamente estranho a Marx, portanto, qualquer fixação de legalidades sem as interferências das contingências históricas. Quando Marx, por exemplo, ao fazer distinção entre as circunstâncias presentes nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Holanda comparadas aos demais países da Europa continental, diz que, a propósito da luta dos trabalhadores pela emancipação econômica, “nós de maneira alguma reivindicamos que os meios para realizar esse objetivo fossem iguais em todos os lugares” (Marx, 1988, p. 255), insinua que as legalidades estão em profunda ligação com as circunstâncias. Uma avaliação das análises de Marx (e não de uma concepção “restrita” ou “ampliada”; esses conceitos de restos idealistas) deve necessariamente levar em conta as particularidades das vias de objetivação do capitalismo e as correspondentes expressões concretas das formas políticas que a dominação econômica assume (e, por isso, não seria possível uma “teorização autônoma do político”). Deve igualmente levar em conta que a dialética que Marx descobre e procura expor pretende expressar não um congelamento da forma política num dos seus momentos, mas seu movimento real em reciprocidade com as forças motrizes de ordem primária.
Para tanto, deixaremos propositalmente de lado todos os modos complexos de atuação dos diferentes Estados capitalistas com relação, por exemplo, à dívida pública, ao dinheiro, ao crédito, ao câmbio e outras coisas mais, concentrando-nos naquilo que mais se aproxima dos problemas postos pela atração da ciência política (e perigosamente anexa a uma “teorização autônoma do político”), isto é, no modo de atuação do Estado em relação às classes sociais, já que é abstraindo tudo o mais que se imputa a Marx algo que só pode ser encontrado numa negação do movimento da própria realidade.
II.
Sobre a questão judaica é um texto bastante visitado para especificar a distinção entre a emancipação humana e emancipação política e, nessa distinção, demarcar a relação de dependência estrutural entre o Estado moderno e as contradições sociais circunscritas na sociedade, de maneira que se evidenciam as limitações da mediação política. As preferências analíticas tendem a reter as conexões mais gerais que determinam a emancipação política como um evidente progresso, o que já seria suficiente para suspender a tese do Estado-coerção na medida mesma em que tal emancipação é o reconhecimento de direitos ou, mais especificamente, o reconhecimento do direito de professar a religiosidade no plano privado.
Em outros termos, uma tese como a do Estado-coerção teria sérias dificuldades em lidar com uma realidade na qual, por meio do Estado moderno – ainda que como mediação parcial –, realiza-se um efetivo passo à frente, nos marcos da sociedade burguesa, se comparada à feudalidade e suas marcas antiquadas. É preciso enfatizar esse aspecto, pois revela a fragilidade de tal tese. Algo que, no entanto, não ganha a mesma atenção é que Marx chega às conexões mais gerais por meio da análise da realidade concreta da relação entre religião e Estado moderno. Estado, assim, no singular, pode dar a impressão de que se trata de um esboço de teoria geral. Nada estaria, porém, mais longe da verdade. Não apenas os casos concretos são decisivos, mas o movimento da própria forma política, especificamente no caso francês, é indicativo, ainda que insuficiente, dos problemas que precisam ser compreendidos, pois apenas mais tarde Marx explicitará elementos de maior potencialidade.
Nessa direção, o que informa a relação entre religião e Estado moderno é a própria realidade dessa relação. Como não existe uma relação em geral, trata-se de ter bem claro que “a questão judaica deve ser formulada de acordo com o Estado em que o judeu se encontra” (2010a, p. 37). Assim, podemos comparar a Alemanha, a França e os Estados Unidos. “Na Alemanha”, disse Marx, “onde não existe um Estado político, onde não existe o Estado como Estado, a questão judaica é uma questão puramente teológica” (idem ibidem). Já “na França, no Estado constitucional, a questão judaica é a questão do constitucionalismo” em que vigora a “religião da maioria”. É o caso mais desenvolvido que ajuda a iluminar a relação da religião com o Estado moderno, mas tão somente como meio para a análise de realidade que pretendemos demonstrar. Com efeito, em parte dos chamados “estados livres norte-americanos”, explicou Marx, “a questão judaica perdeu seu sentido teológico e se tornou uma questão realmente secular”. Na sequência, especificou que “só onde o Estado político existe em sua forma plenamente desenvolvida, a relação do judeu, e de modo geral do homem religioso, com o Estado político, ou seja, a relação entre a religião e o Estado, pode emergir em sua peculiaridade, em sua pureza” (idem ibidem). No entanto, e isso não lhe escapa, “a América do Norte é sobretudo a terra da religiosidade” (ibidem, p. 38). Em outras palavras sintéticas, a emancipação política por mediação do Estado, mesmo nos lugares do globo em que possamos encontrar um pleno desenvolvimento do Estado político, não é a superação da religião, mas sua conversão em assunto privado. É o Estado que se emancipa da religião, não os homens concretos em sua vida diária.
Reconhecer o caráter limitado da emancipação política, sua potencialidade como mediação parcial, não serve de medida para uma fixação do Estado político como mero instrumento de coerção. O próprio Marx escreveu que, ressalvado o fato de que a emancipação política “não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui”, a “emancipação política de fato representa um grande progresso” (ibidem, p. 41). A forma política, aqui o Estado político em sua forma mais desenvolvida, não opera estacionada no momento coercitivo, mas significa, ao contrário, a aquisição de direitos. É a superação contraditória, é verdade, dos antigos privilégios feudais pelos “direitos do homem individual” (ibidem, p. 51), como resultado dos processos de revolucionamento da antiga sociedade. Por isso, explicou Marx – tendo em tela o caso francês –, a “emancipação política representa concomitantemente a dissolução da sociedade antiga, sobre a qual está baseado o sistema estatal alienado do povo, o poder do soberano. A revolução política é a revolução da sociedade burguesa” (idem ibidem; grifos no original).
Não é por outro motivo que podemos dizer, com toda segurança, que, sendo também um progresso, a emancipação política como resultado (após todo o processo revolucionário) é garantidora, por mediação do Estado político constituído, dos “direitos do homem individual”, isto é, expressão do “homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade” (ibidem, p. 50). E não há espaço nessa análise dos casos concretos para fixar a coerção como o único meio de atuação desse Estado político.
Se Sobre a questão judaica é útil para demonstrar a fragilidade da tese do Estado-coerção já antes de 1848, o texto em tela não é, como dito antes, suficiente para uma análise do movimento da forma política com maior riqueza de determinações. Em termos muito gerais, apreendemos a partir da letra de Marx a transição da forma prevalecente na feudalidade para a forma burguesa, que encontra seu ponto de alto desenvolvimento em alguns estados da América do Norte. Dois pontos rápidos, porém úteis, na direção da análise do movimento da forma política sob circunstâncias específicas, o que mostra a impossibilidade da eliminação das contingências históricas para qualquer análise razoável. Ambos os pontos fazem referência ao caso francês do primeiro período revolucionário. O tipo europeu (ou via clássica) de objetivação do capitalismo encontra na França as condições de eclosão violenta – não sem a mediação da própria máquina estatal à disposição –, selando a transição da feudalidade ao capitalismo e, simultaneamente, à forma política correspondente. Na análise do processo revolucionário de emancipação política, escreveu Marx:
A dissociação do homem em judeu e cidadão, em protestante e cidadão, em homem religioso e cidadão, essa dissociação não é uma mentira frente à cidadania, não constitui uma forma de evitar a emancipação política, mas é a própria emancipação política; ela representa o modo político de se emancipar da religião. Sem dúvida [Allerdings]: nos períodos, em que o Estado político é gerado por meio da violência como Estado político a partir da sociedade burguesa, em que a autolibertação humana procura realizar‑se sob a forma da autolibertação política, o Estado pode e deve prosseguir até a abolição da religião, até a destruição da religião; mas somente como prossegue na abolição da propriedade privada, até o maximum, até o confisco, a taxação progressiva, como prossegue na abolição da vida, pela guilhotina. Nos momentos em que está particularmente autossuficiente [Selbstgefühls], a vida política procura esmagar seu pressuposto, a sociedade burguesa e seus elementos, e entificar‑se como a vida real e sem contradição do gênero humano. Ela pode fazer isso, porém, por meio de uma contradição violenta com suas próprias condições de existência [Lebensbedingungen], ou seja, declarando a revolução como permanente, e, em consequência disso, o drama político termina tão necessariamente com a restauração da religião, da propriedade privada, de todos os elementos da sociedade burguesa, quanto a guerra termina com a paz. (2010a, p. 42; 1976, p. 357; grifos no original)
É nesse sentido que a “relação entre o Estado político e a sociedade burguesa é tão espiritualista quanto a relação entre o céu e a terra”, disse Marx, completando em seguida: “A antítese entre os dois é a mesma, e o Estado político a supera da mesma maneira que a religião supera a limitação do mundo profano, isto é, sendo igualmente forçado a reconhece‑la, produzi‑la e deixar‑se dominar por ela” (2010a, p. 40). No caso francês que a passagem anterior explicita, o movimento da forma política em relação aos seus pressupostos reais, às suas condições de existência, teve cume num certo descolamento da vida política a um tal ponto que fora possível prosseguir na abolição das contradições da vida concreta. Mas a mediação política não pode eliminar seus pressupostos sem eliminar a si mesma, pois a existência do Estado ancora-se nessas contradições. Por isso é possível declarar politicamente abolida a propriedade privada embora sua existência fática persista independente dessa vontade manifesta. Como disse Marx, “a anulação política da propriedade privada não só não leva à anulação da propriedade privada, mas até mesmo a pressupõe” (ibidem, p. 39). Ou ainda, “longe de anular essas diferenças fáticas [diferenciação por nascimento, estamento, formação e atividade laboral, que marca a contradição social], ele só se percebe como Estado político e a sua universalidade só torna efetiva em oposição a esses elementos próprios dele” (ibidem, p. 40). No processo violento de entificação do Estado político ou burguês no caso francês, o movimento da forma política terminou com a restauração das mesmas contradições que são sua base.
O segundo ponto importante a ser destacado localiza-se após a discussão que Marx tece sobre os direitos do homem e que circunscreve o peso das contingências para uma análise do movimento da forma política.
Fato deveras enigmático é ver um povo que mal está começando a se libertar, a derrubar todas as barreiras que separam os diversos membros do povo, a fundar uma comunidade política, é ver esse povo proclamar solenemente a legitimidade do homem egoísta, separado do semelhante e da comunidade (Déclaration de 1791), e até repetir essa proclamação no momento em que a única coisa que pode salvar a nação é a entrega mais heroica possível, a qual, por isso mesmo, é exigida imperativamente, no momento em que se faz constar na ordem do dia o sacrifício de todos os interesses da sociedade burguesa e em que o egoísmo precisa ser punido como crime (Déclaration des droits de l’homme etc. de 1793). Esse fato se torna ainda mais enigmático quando vemos que a cidadania, a comunidade política, é rebaixada pelos emancipadores à condição de mero meio para a conservação desses assim chamados direitos humanos e que, portanto, o citoyen é declarado como serviçal do homme egoísta; quando vemos que a esfera em que o homem se comporta como ente comunitário é inferiorizada em relação àquela em que ele se comporta como ente parcial; quando vemos, por fim, que não o homem como citoyen, mas o homem como bourgeois é assumido como o homem propriamente dito e verdadeiro. (ibidem, p. 50; grifos no original)
E, em seguida, o arremate necessário e a ser retido: “portanto, até mesmo nos momentos do seu entusiasmo juvenil levado ao extremo pela pressão das circunstâncias, a vida política se declara como um simples meio, cujo fim é a vida da sociedade burguesa” (ibidem, p. 51). O enigma se dissolve pela identidade entre emancipação política em tela e revolução burguesa que, ao superar a feudalidade, “decompôs a sociedade burguesa em seus componentes mais simples, ou seja, nos indivíduos, por um lado, e, por outro, nos elementos materiais e espirituais que compõem o teor vital, a situação burguesa desses indivíduos” (ibidem, p. 52; grifos no original). Mas o aspecto mais central é que semelhante forma política se deve às circunstâncias específicas do processo revolucionário que imprimem um determinado modo de funcionamento do Estado, inclusive, no caso francês em questão, em flagrante contradição (“segurança como direito” versus “violação do sigilo de correspondência”, cf. ibidem, p. 51). O elemento chave, portanto, marca-se menos pela questão do processo revolucionário do que pela sempre consciente determinação marxiana da força das circunstâncias sobre a forma política que comporta um movimento particular de lógica não própria.
Embora o material até agora não tenha muitos elementos para uma análise mais apurada desse movimento, é suficiente para mostrar que Marx não poderia sustentar um modo de funcionamento único e imutável do Estado capitalista nos casos concretos, mesmo nos textos anteriores a 1848. Nada seria mais antidialético.
Isso se confirma num material da mesma época. Glosas críticas são também importantes para considerarmos a questão do pauperismo, fornecendo outros elementos que combatam a mesma tese do Estado-coerção. Tal como em Sobre a questão judaica, trata-se do caso concreto, no caso, o da Inglaterra, como peça de uma investigação mais segura sobre a relação entre um “país político e o pauperismo” (Marx, 2010b, p. 30). Essa questão constante, de Marx efetuar análises da realidade dos casos concretos, impede igualmente que, numa autonomização da política, se constitua uma pura teoria política, como clamam muitos de seus críticos, em particular Coutinho.
O adversário (no caso, o prussiano Arnald Ruge) de Marx nas Glosas sugere que o rei da Prússia responde ao problema do pauperismo com “medidas administrativas e assistência caritativa” porque a sociedade alemã é apolítica. Marx busca mostrar que precisamente na Inglaterra, país político e no qual o pauperismo é universal, não se atua de outro modo senão por via de medidas administrativas e da beneficência. A consideração de Marx sobre a grande ação política voltada ao pauperismo no caso concreto da Inglaterra permite-lhe chegar ao seguinte movimento real particular:
O significado universal que a Inglaterra politizada extraiu do pauperismo restringe-se a isto: no desdobramento do processo, apesar das medidas administrativas, o pauperismo foi tomando a forma de uma instituição nacional, tornando-se, em consequência, inevitavelmente em objeto de uma administração ramificada e bastante ampla, uma administração que, todavia, não possui mais a incumbência de sufocá-lo, mas de discipliná-lo, de perpetuá-lo. Essa administração desistiu de tentar estancar a fonte do pauperismo valendo-se de meios positivos [legais]; ela se restringe a cavar-lhe o túmulo, valendo-se da benevolência policial, toda vez que ele brota da superfície do país oficial. O Estado inglês, longe de ir além das medidas administrativas e beneficentes, retrocedeu aquém delas. Ele se restringe a administrar aquele pauperismo que, de tão desesperado, deixa-se apanhar e jogar na prisão (ibidem, p. 35).
Chama a atenção, e é preciso frisar, que se trata de um processo, um movimento. Uma avaliação de outros Estados, como o Francês, permite a Marx chegar a uma determinação mais ampla segundo a qual “na medida em que os Estados se ocuparam com o pauperismo, restringiram-se às medidas administrativas e beneficentes ou retrocederam aquém da administração e da beneficência” (ibidem, p. 38). O “aquém” comporta os meios punitivos na criminalização da pobreza, na criação das Workhouses inglesas e dos Dépots franceses. Este aspecto é importante porquanto destaca fundamentalmente os modos de atuação do Estado em circunstâncias concretas específicas. Por um lado, as medidas administrativas (leis e políticas sociais) e a beneficência e, por outro, algo inferior, centrado na repressão, convertendo os problemas sociais em problemas de polícia. O movimento desses dois modos expressa que, ao fim, trata-se de administrar, e não resolver, a pobreza como ponto alto da ação política. É, portanto, a conversão dos efeitos da contradição historicamente determinada em objeto de administração, num movimento real da forma política não estacionada em um único momento, o repressivo.
Encontramos explicitada na letra de Marx desse período de 1843-44 uma apreensão do movimento mais complexo da atuação política que não se limita à coerção. Além do mais, escreveu Marx, também, que “a violência física [por parte do Estado frente às manifestações dos trabalhadores] diminui na mesma proporção em que o pauperismo se propaga e o conhecimento de causa do proletariado aumenta” (ibidem, p. 42). Quer dizer, conforme aumenta a consciência social dos trabalhadores, menos presente se fazem meios imediatamente violentos por parte do Estado para abafar a revolta dos trabalhadores, de modo que outras formas são requisitadas. Poderíamos questionar a pertinência dessa análise para os casos concretos, incluindo os contemporâneos, mas jamais reduzir essa análise de Marx a uma “concepção restrita” que determinaria o Estado como mero “aparelho de repressão”.
Além do mais, é possível indagar se algum Estado poderia sustentar objetivamente uma aparência de universalidade se operasse apenas coercitivamente e instrumentalizando apenas as necessidades de partes da sociedade por meio unicamente de “aparelhos repressivos” (considerando também que um modo coercivo só pode funcionar se for em condição excepcional, de modo espasmódico, como veremos a seguir). A tese do Estado-coerção perde toda sua força diante desses achados marxianos já em 1843-44, e que não são outra coisa senão a explicitação de traços da realidade mesma, dos casos concretos da Alemanha, da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos, que, à época, aparecia como a forma mais desenvolvida da democracia. Por isso não é uma elaboração conceitual, uma “concepção restrita” ou “ampliada”, mas determinações concretas do movimento real. Mas uma análise mais desenvolvida só pode ser encontrada em textos de 1848 e posteriores principalmente.
III.
Deixando esses momentos iniciais do itinerário marxiano e outros textos que manteremos conscientemente silenciados, devemos passar à exposição do movimento real da forma política tal como Marx deixou em seus elementos mais desenvolvidos. Por “mais desenvolvidos” não se deve entender por um critério de volume, quantitativo de páginas – como tem se tornado recorrente para o juízo sobre as contribuições de Marx ou Lukács, tendo em vista uma desejada e desajeitada teoria autônoma do político –, mas no sentido de um tratamento mais rigoroso de tal movimento nos casos concretos. Parte desses casos já foi aludida no tópico anterior. Trata-se aqui de aproveitar o modo de colocação do problema, que só veio de fato a se iluminar inteiramente com as contribuições posteriores a Marx, por Lenin, Lukács e Chasin, que destacaram algo decisivo para nosso autor de Trier: o problema das diferentes vias de objetivação do capitalismo e os nexos recíprocos com as formas políticas correspondentes. A questão importante para os nossos propósitos é que tal forma se movimenta em razão dos fluxos de uma mesma base real.
Mas não temos nenhuma condição de tratar das contribuições propriamente ditas ex professo. A pretensão aqui é, tão somente, lançar mão da determinação da via clássica ou tipo europeu de objetivação do capitalismo na Inglaterra e na França e da via prussiana na Alemanha, para acompanharmos os traços decisivos e sem volteios do movimento da forma política como Marx mesmo pôde expressar. Assim, o ponto de partida não pode ser outro senão aquele indicado no início de nossa exposição sobre a relação entre particularidade e universalidade para o “novo materialismo”.
Na Crítica do Programa de Gotha, aparece um tratamento do Estado capitalista nos termos correspondentes e, de tal maneira, que dificilmente poderíamos ignorar numa consideração sobre os modos de funcionamento desse Estado no movimento próprio das vias particulares de formação histórica. Em polêmica com os lassallianos, como é sabido, Marx questiona o chamado “Estado livre” tal como se manifesta no programa em questão. Importa mais de perto que o autor de Trier considera haver um abuso nas considerações do programa sobre o “Estado atual” e a “sociedade atual”.
A “sociedade atual” é a sociedade capitalista, que, em todos os países civilizados, existe mais ou menos livre dos elementos medievais, mais ou menos modificada pelo desenvolvimento histórico particular de cada país, mais ou menos desenvolvida. O “Estado atual”, ao contrário, muda juntamente com os limites territoriais do país. No Império prussiano-alemão, o Estado é diferente daquele da Suíça; na Inglaterra, ele é diferente daquele dos Estados Unidos. “O Estado atual” é uma ficção. No entanto, os diferentes Estados dos diferentes países civilizados, apesar de suas variadas configurações, têm em comum o fato de estarem assentados sobre o solo da moderna sociedade burguesa, mais ou menos desenvolvida em termos capitalistas. É o que confere a eles certas características comuns essenciais. Nesse sentido, pode-se falar em “atual ordenamento estatal [Staatswesen]” em contraste com o futuro, quando sua raiz atual, a sociedade burguesa, tiver desaparecido. (2012a, p. 42)
Os diferentes Estados guardam traços comuns à medida que possuem uma mesma base. Essa base também é variável em termos de graus de desenvolvimento, mas não com respeito à lógica fundamental da produção do valor. O caso alemão é ilustrativo na medida em que uma nova sociedade vinha sendo construída ao lado dos traços ainda feudais – como veremos. Diferentemente são os casos clássicos, nas manifestações inglesa e francesa, mas que também guardam especificidades entre si. É dispensável sugerir as diferenças da via americana frente a essas e às demais, como a via colonial… Se a base real comporta variabilidades em referência aos traços essenciais do modo de produção capitalista, as formas políticas comportam variações em razão das circunstâncias históricas de cada país, as relações de classes, o estágio da consciência de classe etc., sem mencionar as múltiplas influências entre os países, não somente no que se refere ao mercado mundial. Quer dizer, os modos de atuação dos Estados capitalistas particulares guardam semelhanças e diferenças entre si em razão das contingências históricas das formas particulares de objetivação do capitalismo, as forças motrizes de ordem primária. Nesse sentido, é possível destacar os traços comuns entre os variados Estados capitalistas em razão de repousarem sobre relações capitalistas de produção. Mas isso não deve nos cegar para as particularidades que são mais explicativas dos casos concretos do que a mera explicitação dos traços mais ou menos gerais.
É por isso que não se deve falar de um movimento em geral da forma política. Devemos, ao contrário, inspecionar os casos concretos os quais manifestam os traços universais por meio de suas particularidades. Nossa atenção, no entanto, restringir-se-á à via clássica (Inglaterra e França) e à via prussiana (no caso alemão), porquanto delas tratou Marx e se confirmam como ponto de passagem necessário para a apreciação do movimento da forma política contrariamente aos desígnios redutores da tese do Estado-coerção.
Podemos começar pela Inglaterra como “localização clássica” do “modo de produção capitalista e de suas correspondentes relações de produção e de circulação” (Marx, 2013, p. 78). Já foi desenvolvido em outro lugar (Paço Cunha, 2014), como mencionado antes, as indicações sobre a Inglaterra. Como não é lugar para uma análise exaustiva, podemos reter os pontos mais decisivos da atuação do Estado capitalista que se forma no processo de constituição e consolidação do capitalismo. Nessa direção, destacam-se três momentos: a violência extraeconômica na constituição do capitalismo, o efeito da luta de classes no reconhecimento de direitos, ainda que precários, por mediação (marcadamente parcial) do Estado, e a legalidade como freio racional sobre o impulso desmedido do capital pela acumulação. São momentos aos quais Marx chega pela análise do caso concreto inglês, o qual não deve ser, em razão dos motivos já aludidos, generalizado irresponsavelmente para outros contextos, embora possa comportar algumas semelhanças.
Em nome da economia das palavras, podemos considerar duas passagens de O capital para a apreciação do problema. Estamos, portanto, conscientes de que deixamos de lado todo o problema que surge com a acumulação primitiva, o papel das colônias, do sistema monetário, impostos e dívida pública, além de outros aspectos ligados à atuação não coercitiva do Estado capitalista no caso inglês, aspectos também ignorados pela tese do Estado-coerção, mas por outros motivos. Nossa atenção está mais direcionada para a atuação do Estado com relação às classes sociais, como dito antes, pois é algo que se destaca na afirmação de uma “concepção restrita” em Marx. Ambas as passagens sugerem um movimento da forma política que oscila da violência extraeconômica direta à atuação modificada. A primeira delas se situa na luta em torno da redução da jornada de trabalho. Nelas podemos ler que:
A consolidação de uma jornada de trabalho normal é o resultado de uma luta de 400 anos entre capitalista e trabalhador. Mas a história dessa luta mostra duas correntes antagônicas. Compare-se, por exemplo, a legislação fabril inglesa de nossa época com os estatutos ingleses do trabalho desde o século XIV até meados do século XVIII. Enquanto a moderna legislação fabril encurta compulsoriamente a jornada de trabalho, aqueles estatutos a prolongam de forma igualmente compulsória. Decerto, as pretensões do capital em estado embrionário – quando, em seu processo de formação, ele garante seu direito à absorção de uma quantidade suficiente de mais-trabalho não apenas mediante a simples força das relações econômicas, mas também por meio da ajuda do poder estatal – parecem ser muito modestas se comparadas com as concessões que ele, rosnando e relutando, é obrigado a fazer quando adulto. Foi preciso esperar séculos para que o trabalhador “livre”, em consequência de um modo de produção capitalista desenvolvido, aceitasse livremente, isto é, fosse socialmente coagido a, vender a totalidade de seu tempo ativo de vida, até mesmo sua própria capacidade de trabalho, pelo preço dos meios de subsistência que lhe são habituais, e sua primogenitura por um prato de lentilhas. É natural, assim, que o prolongamento da jornada de trabalho, que o capital, desde o século XIV até o fim do século XVII, procurou impor aos trabalhadores adultos por meio da coerção estatal, coincida aproximadamente com a limitação do tempo de trabalho que, na segunda metade do século XIX, foi imposta aqui e ali pelo Estado para impedir a transformação do sangue das crianças em capital. (Marx, 2013, p. 343)
É importante retermos os momentos pelos quais se realiza o movimento da forma política em reciprocidade com determinado estágio de desenvolvimento do capitalismo. Primeiro, o modo coercitivo de funcionamento do Estado para o prolongamento da jornada de trabalho (do século XIV até meados do século XVIII); uma medida dada pela insuficiência da “força das relações econômicas” no momento embrionário do capital. Este primeiro momento cede lugar ao segundo, ao encurtar a jornada de trabalho, evitando, inclusive, a “transformação do sangue das crianças em capital”; revela-se aqui os resultados das lutas de classes, pois tais efeitos, na fase adulta, não são obtidos por uma iluminação pura ou como gesto de boa vontade do capital. Nesse processo, e com a chegada de um capitalismo mais desenvolvido, constitui-se um trabalhador livre que aceita “livremente” ou, o que é o mesmo, é “socialmente coagido” – não mais pelo Estado, mas pela “força das relações econômicas” agora consolidadas – a vender sua força de trabalho. Se o Estado, no caso inglês, não atuou exclusivamente em nome do capital nesse movimento – embora persista o caráter reprodutor da ordem social –, se no estágio mais desenvolvido a violência extraeconômica pôde recuar, abre-se espaço para modos outros de atuação do Estado que, suspeitamos, operaram no sentido de garantir a existência daquela “coação social” que não se mostra como tal, isto é, na construção da “venalidade voluntária” da força de trabalho como “lei natural” e destino absoluto da classe trabalhadora e de seus indivíduos componentes. Mas este aspecto só fica mais evidenciado na segunda passagem que gostaríamos de reter. Nela, disse Marx:
Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no outro como pessoas que não têm nada para vender, a não ser sua força de trabalho. Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador. A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada, mas apenas excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, é possível confiar o trabalhador às “leis naturais da produção”, isto é, à dependência em que ele mesmo se encontra em relação ao capital, dependência que tem origem nas próprias condições de produção e que por elas é garantida e perpetuada. Diferente era a situação durante a gênese histórica da produção capitalista. A burguesia emergente requer e usa a força do Estado para “regular” o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites favoráveis à produção de mais-valor, a fim de prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência. Esse é um momento essencial da assim chamada acumulação primitiva. (ibidem, pp. 808-809)
Tal como antes, surgem aqui destacados alguns momentos do movimento real. Identificamos ao menos dois deles. A atuação da violência extraeconômica direta (Estado) na constituição do capitalismo. E não se deve esquecer que a “violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica” (ibidem, p. 821). Essa violência extraeconômica é distendida e passa a ser um expediente excepcional, isto é, em circunstâncias mais específicas, em razão do movimento da própria realidade do caso inglês em questão. Nesse contexto, se não atua de modo violento, é sinal de que comporta outros modos de atuação. A latência da violência direta, uma possibilidade sempre existente, guarda reciprocidades com o desenvolvimento de uma classe de trabalhadores que tomam as camadas aparentes da realidade social como dadas. Em suma, são testemunhas do processo de mistificação por meio do qual o próprio capitalismo também se movimenta. Além das tradições renovadas e repostas nas condições do capitalismo avançado, a educação e o hábito desempenham papel importante. Teria o Estado capitalista, no caso inglês, alguma atuação na mediação da educação e do hábito? Só uma análise que fragmenta a realidade sem nunca poder abarcá-la em sua unidade complexa responderia negativamente. Basta seguir os variados momentos de O capital (particularmente o capítulo sobre a Legislação fabril) nos quais Marx destaca a questão do ensino na e para a produção, sob vigilância dos inspetores de fábrica e outros agentes estatais. Pôr-se em defesa do contrário, ao perder a diversidade na unidade, é igualmente ignorar que “a apropriação da vontade alheia é o pressuposto da relação de dominação” (Marx, 2011, p. 411).
O movimento da forma política em relação às forças motrizes de ordem primária, inclusive estabelecendo certos limites para a atuação do capital, revela um sincretismo estatal por força da luta de classes, do processo gradativo de formação da classe trabalhadora. Se o sincretismo pôde aparecer entre os ideólogos do capital, como Mill, na “tentativa de conciliar o inconciliável” (Marx, 2013, p. 87), o que impediria seu aparecimento no amplo complexo político? Algumas necessidades fáticas dos trabalhadores passam a ser reconhecidas por mediação do próprio Estado capitalista inglês. Marx mesmo nos fornece outras indicações a respeito como, por exemplo, ao escrever que “para ‘se proteger’ contra a serpente de suas aflições, os trabalhadores têm de se unir e, como classe, forçar a aprovação de uma lei, uma barreira social intransponível que os impeça a si mesmos de, por meio de um contrato voluntário com o capital, vender a si e a suas famílias à morte e à escravidão” (ibidem, pp. 373-374). O reconhecimento de direitos políticos e sociais é uma das marcas do sincretismo do Estado capitalista inglês, sincretismo que, certamente, também terá lugar nas demais vias de objetivação do capitalismo por força das circunstâncias particulares. Surge, então, uma forma “protetiva” obtida pela classe do trabalho, que é, também por força das circunstâncias, constantemente ameaçada dada a natureza parcial da mediação política. Mas isso indica, pela aprovação da lei aludida por mediação do próprio Estado capitalista já constituído, que se dá num contexto de recuo – sem desaparecimento – da violência extraeconômica. Mas não pode haver espaço para ilusões, pois é a atuação combinada dos trabalhadores que engendra o efeito e não uma iluminação da “razão de Estado” ou um rompante humanista nascido dos livros dos juristas. Essas aquisições foram realizadas pela “revolta crescente da classe operária”, que – não sem contraditórias alianças com médicos, juízes e fiscais de fábrica – “obrigou o Estado a reduzir à força o tempo de trabalho e a impor à fábrica propriamente dita uma jornada normal de trabalho”, criando as condições para a generalização da “produção de mais-valor relativo por meio do desenvolvimento acelerado do sistema da maquinaria”, como explicou Marx (ibidem, p. 482).
Ainda é possível adicionar outras análises de Marx, as quais revelam que “tal regulação foi o primeiro freio racional aplicado aos volúveis caprichos da moda, homicidas, carentes de sentido e por sua própria natureza incompatíveis com o sistema da grande indústria” (ibidem, p. 550). A “legislação fabril”, explicou ele, foi a “primeira reação consciente e planejada da sociedade à configuração natural-espontânea de seu processo de produção”. Já sabemos dos limites dessa mediação. Mas ainda mais importante é sublinhar que tal legislação não é, como escreveu na sequência, mais do que um “produto tão necessário da grande indústria quanto o algodão, as selfactors e o telégrafo elétrico” (ibidem, p. 551). São as necessidades práticas e o estágio da luta de classes que são postos pelo movimento interno e contraditório da sociabilidade do capital. Este se encarrega, por mediação do próprio Estado, de erigir tais medidas não coercitivas sobre a classe trabalhadora. O modo de atuação sincrético do Estado é, portanto, um produto da lógica interna do próprio capitalismo. Não significa que, por meio dessas medidas, esteja posta no horizonte a superação desse particular modo de produção, nem que tais medidas não possam regredir muitíssimo, indo na direção contrária aos interesses dos trabalhadores, mas se trata de indicar a forma do movimento interno dessa sociabilidade determinada, efeitos de suas contradições imanentes.
Ressalvas nunca são suficientes, e é importante registrar que “revoluções não se fazem por meio de leis” (ibidem, p. 820) e que o Estado capitalista, em termos gerais, a despeito de seu sincretismo necessário, não existe, por princípio, para a defesa da classe trabalhadora. Se aparece como aplicador de “medidas protetivas”, administrativas, o faz por necessidade prática posta pela própria produção do valor, isto é, não é algo a despeito dessa produção. É preciso ter bem claro que “a legislação sobre o trabalho assalariado” é “desde sua origem cunhada para a exploração do trabalhador e, à medida de seu desenvolvimento, sempre hostil a ele” (ibidem, p. 809). O impulso regulatório é expressão das contradições dessa produção particular. “Não pode superá-las nem garantir plenamente seus limites em razão dos diferentes estágios do capitalismo e da luta de classes. O Estado é a confissão hipócrita de uma impotência autorregulativa das relações sociais cindidas em classes nas condições econômicas presentes” (Paço Cunha, 2014, p. 8).
Não temos a pretensão de esgotar o assunto. Mas existem indicações suficientes para apreender, ao menos parcialmente, o movimento real da forma política tal como Marx mesmo pôde expressar com relação ao caso concreto que teve lugar na Inglaterra. Revela-se, acima de tudo, que apenas ignorando o movimento da realidade poder-se-ia sustentar uma tese do Estado-coerção e seus adornos, como a instrumentalidade unilateralmente posta. É curioso que já no texto de 1844, nas Glosas críticas, Marx explicitou alguns traços. Lá faltavam as determinações centrais do modo de produção capitalista que se desenvolvia na Inglaterra, de modo que uma avaliação mais precisa requisitou estudos mais aprofundados e que levaram uma vida inteira. Nas Glosas como n’O capital, entretanto, aparece um traço comum, qual seja, o da conversão dos problemas sociais em objeto de administração por parte do Estado. Toda administração dos homens é conservadora, não resolutiva das contradições sobre as quais se sustenta. Essa resolução é condição de uma autêntica autoatividade.
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O caso francês, como variação da via clássica, também é muito útil para explicitar a fraqueza da tese do Estado-coerção. Diferentemente do caso inglês, a França foi território de um processo revolucionário mais agudo (1789-1792) da revolução burguesa contra a feudalidade, processo com relação ao qual já temos alguns traços conforme expostos no tópico anterior. Mas o que nos importa é o processo conturbado do século XIX sobre o qual Marx se debruça, particularmente os dois períodos que testemunharam os levantes dos trabalhadores, isto é, 1848-1852 e 1871.
A começar pela Luta de classes na França, é de se esperar que nos processos claramente revolucionários, encabeçados pelos trabalhadores contra a ordem social burguesa, surjam mais claramente as medidas repressivas por parte do Estado capitalista – que parcialmente contradiz certo lineamento das Glosas críticas já examinadas. Essa face é a mais explícita na letra marxiana com relação aos episódios de 1848. “Quando o proletariado fez do seu túmulo o berço da república burguesa, obrigou-a simultaneamente a vir à frente em sua forma pura, ou seja, como o Estado cujo propósito confesso é eternizar o domínio do capital, a escravidão do trabalho”, explicou Marx. Assim, “tendo constantemente diante dos olhos o inimigo coberto de cicatrizes, irreconciliável, invencível – invencível porque sua existência é a condição da sua própria vida –, o domínio burguês livre de todas as amarras teve de converter-se imediatamente em terrorismo burguês” (Marx, 2012b, p. 64; grifos no original). Não é outra coisa senão o modo de funcionamento da “ditadura burguesa” (ibidem, pp. 64; 74) no caso francês em sua forma mais explicitamente insidiosa e bárbara mesmo sob o “Estado representativo moderno”. Mas é igualmente interessante constatar que, mesmo em processos agudizados, o modo de atuação do Estado francês não estaciona no momento coercitivo do movimento da realidade.
Destaquemos, por exemplo, a criação do “ministério próprio do trabalho” (ibidem, p. 45) para cuidar dos assuntos de emprego e renda. Marx ironiza a medida em razão de sua impotência, na medida em que estavam ausentes quaisquer meios efetivos de atuação:
De modo relutante e após longos debates, o governo provisório nomeou uma comissão especial permanente, encarregada de descobrir os meios para o melhoramento das classes trabalhadoras! Essa comissão foi composta de delegados das guildas dos artesãos de Paris e presidida por Louis Blanc e Albert. O Palácio do Luxemburgo lhes foi designado como local de reuniões. Assim, os representantes da classe operária foram banidos da sede do governo provisório, a sua porção burguesa manteve o poder real do Estado e as rédeas da administração exclusivamente em suas mãos e, ao lado dos ministérios das finanças, do comércio, dos serviços públicos, ao lado do banco e da bolsa, levantou-se uma sinagoga socialista, cujos sumos sacerdotes, Louis Blanc e Albert, estavam incumbidos de descobrir a terra prometida, anunciar o novo evangelho e dar trabalho ao proletariado parisiense. Diferentemente de qualquer poder estatal profano, eles não dispunham de nenhum orçamento, de nenhum poder executivo. Esperava-se que eles derrubassem as colunas de sustentação da sociedade burguesa a cabeçadas. (ibidem, pp. 45-46)
O que é preciso reter não é tão somente a inefetividade do “ministério do trabalho” em razão da ausência dos meios, mas o fato de que o Estado francês teve que, sincreticamente, incorporar reivindicações fáticas dos trabalhadores. É certo também que a nomeação ardilosa da comissão especial esvaziada em seus meios de atuação de algum modo proporciona a sensação de uma participação política dos trabalhadores nos rumos da república do capital. Se esse convencimento foi duradouro ou não, se foi efetivo ou sem qualquer efeito, é algo que fica secundarizado perto da exemplificação de um modo de atuação do Estado francês não limitado ao momento coercitivo.
Ainda nessa direção, o processo de confecção de uma “Constituição republicana” cuja tradução para a “linguagem política” pôde expressar que “a burguesia não tem rei; a verdadeira forma de seu domínio é a república” (ibidem, p. 74). E onde tal “Constituição” “foi além da mera troca de figurino, apenas protocolou fatos consumados” (ibidem, p. 75; grifos no original). Duas questões mostram elementos importantes. A primeira são as medidas sociais para cuidar da população menos assistida. São medidas como política de estado. Explicou Marx que “na primeira versão da Constituição, formulada pelas jornadas de junho, ainda constava o “droit au travail”, o direito ao trabalho, a primeira fórmula desajeitada, que sintetizava as reivindicações revolucionárias do proletariado. Ela foi transformada no droit à l’assistance, no direito à assistência social, e qual é o Estado moderno que não alimenta de uma ou de outra forma os seus paupers [pobres]?” (ibidem, p. 76). O momento da atuação do Estado francês aqui se revela naquela dimensão da benevolência, das medidas administrativas sob forma não coercitiva – como as políticas sociais contemporâneas? A segunda questão mostra o sufrágio universal e abre um espaço às aquisições das classes e frações de classe adversárias:
a contradição abrangente dessa Constituição é a seguinte: mediante o sufrágio universal, ela dotou de poder político as classes cuja escravidão social visa eternizar, ou seja, o proletariado, os agricultores e os pequeno-burgueses. E a classe cujo antigo poder social foi por ela sancionado, ou seja, a burguesia, ela privou das garantias políticas desse poder. Ela comprime seu domínio político dentro de condições democráticas que, de um momento para o outro, podem propiciar a vitória às classes inimigas e colocar em xeque até mesmo os fundamentos da sociedade burguesa. Daquelas, ela pede que não avancem da emancipação política para a social, desta, que não retroceda da restauração social para a política. (ibidem, p. 77)
Se esse momento não é um modo alterado do Estado, que precisa por força das circunstâncias abrir espaço político às “classes cuja escravidão social visa eternizar”, nada mais pode convencer um defensor empedernido da tese do Estado-coerção em Marx. Não se trata, no entanto, de uma “concepção”, de um arbítrio do intelecto, mas de uma apreensão dos variados momentos do movimento real da forma política. Ao lado das formas repressivas, o próprio Marx nos fornece elementos de outras formas de atuação, incluindo um desajeitado “direito à assistência” arrancado por via das lutas frente ao Estado burguês. Esse “lado a lado” das medidas repressivas e não repressivas aparece igualmente em O 18 Brumário. Uma passagem é o bastante. Nela, Marx comenta sobre o processo de perfectibilidade da máquina do Estado desde os tempos pré-revolucionários da monarquia absoluta. Frente a essa máquina existente, Napoleão não fez mais do que aperfeiçoá-la, explicou Marx. Na sequência, escreveu nosso autor:
Essa monarquia legítima e a Monarquia de Julho nada acrescentaram além de uma maior divisão do trabalho, que crescia na mesma proporção em que a divisão do trabalho no interior da sociedade burguesa criava novos grupos de interesse, ou seja, novo material para a administração estatal. Todo e qualquer interesse comum foi imediatamente desvinculado da sociedade e contraposto a ela como interesse mais elevado, geral, subtraído à atividade dos próprios membros da sociedade e transformado em objeto da atividade governamental, desde a ponte, o prédio escolar e o patrimônio comunal de um povoado até as ferrovias, o patrimônio nacional e a universidade nacional da França. A república parlamentar, por fim, na sua luta contra a revolução, viu–se obrigada a reforçar os meios e a centralização do poder do governo para implementar as medidas repressivas. Todas as revoluções somente aperfeiçoaram a máquina em vez de quebrá-la. (2011b, p. 141)
Medidas repressivas ao lado da conversão dos assuntos gerais em “objeto da atividade governamental”. Certamente que é persistente a contradição na forma do Estado quando se apresenta como representante universal apenas na medida em que se opõe aos elementos da sociedade; por isso, uma universalidade irreal. Mas não é possível fechar os olhos para a construção de escolas, ferrovias e universidades como uma atuação também específica do Estado francês, com resultados certamente não desconsideráveis sobre a direção das lutas sociais.
Mas é na Guerra civil na França que o movimento da forma política é melhor explicitado em razão das sínteses textuais que Marx promove em sua exposição. A longa passagem abaixo tem o mérito de resgatar os modos de atuação do Estado no caso francês e, nessa direção, fica explícito o movimento da forma política entre os momentos repressivos e não repressivos em razão do estágio das lutas sociais. Não é possível omitir uma linha sequer da passagem:
O enorme parasita governamental, constringindo o corpo social como uma jiboia na malha ubíqua de sua burocracia, polícia, exército permanente, clero e magistratura, teve seu nascimento nos dias da monarquia absoluta. O poder centralizado do Estado tinha, naquele tempo, de servir à nascente sociedade de classe média como uma poderosa arma em suas lutas para emancipar-se do feudalismo. A Revolução Francesa do século XVIII, com sua missão de varrer o lixo dos privilégios senhoriais, locais, municipais e provinciais, não podia senão limpar simultaneamente o solo social dos últimos obstáculos a estorvar o pleno desenvolvimento do poder estatal centralizado, com seus órgãos onipresentes desenhados segundo o plano de uma divisão do trabalho sistemática e hierárquica. E assim ele veio ao mundo sob o Primeiro Império, ele mesmo o fruto das guerras de coalizão da velha Europa semifeudal contra a moderna França. Durante os subsequentes regimes parlamentares da Restauração, da Monarquia de Julho e do Partido da Ordem, o controle supremo dessa maquinaria estatal, com suas fascinantes tentações de cargos, propinas e patronagens, tornou-se não apenas o pomo de discórdia entre as frações rivais da classe dominante, mas, porque o progresso econômico da sociedade moderna inchava as fileiras da classe trabalhadora, acumulava suas misérias, organizava sua resistência e desenvolvia suas tendências à emancipação – em uma palavra, porque a moderna luta de classes, a luta entre trabalho e capital, tomava forma –, a fisionomia e o caráter do poder estatal sofreram uma notável mudança. Ele fora sempre o poder para a manutenção da ordem, isto é, da ordem existente da sociedade e, portanto, da subordinação e exploração da classe produtora pela classe apropriadora. Mas assim que essa ordem foi aceita como uma necessidade incontroversa e incontestada, o poder estatal pôde assumir um aspecto de imparcialidade. Ele manteve a existente subordinação das massas, que era a ordem inalterável das coisas e um fato social tolerado pelas massas sem contestação, exercido por seus “superiores naturais” sem solicitude. Com a entrada da própria sociedade em nova fase, a fase da luta de classes, o caráter de sua força pública organizada – o poder estatal – teve de mudar (mas também operar uma marcante mudança) e cada vez mais desenvolver seu caráter de instrumento do despotismo de classe, de engrenagem política voltada a perpetuar a escravização social dos produtores da riqueza por seus apropriadores, do domínio econômico do capital sobre o trabalho. Após cada nova revolução popular, resultando na transferência da direção da maquinaria estatal para um grupo das classes dominantes a outro, o caráter repressivo do Estado foi mais plenamente desenvolvido e mais impiedosamente usado, porque as promessas feitas – e aparentemente garantidas pela Revolução – só podiam ser quebradas pelo emprego da força. Além disso, a mudança operada pelas sucessivas revoluções sancionava apenas politicamente o fato social, o crescente poder do capital e, portanto, transferia o próprio poder estatal cada vez mais diretamente para as mãos dos antagonistas diretos da classe trabalhadora. Assim, a Revolução de Julho transferiu o poder das mãos dos proprietários de terra para as dos grandes manufatureiros (os grandes capitalistas) e a Revolução de Fevereiro para as das frações unidas da classe dominante, unidas em seu antagonismo à classe trabalhadora, unidas como “o Partido da Ordem”, a ordem de seu próprio domínio de classe. Durante o período da República Parlamentar, o poder estatal tornou-se, enfim, o confesso instrumento da guerra, empregado pela classe apropriadora contra a massa produtora do povo. Mas como confesso instrumento de guerra civil ele só poderia ser utilizado durante o tempo da guerra civil; portanto, a condição de existência da República Parlamentar estava na continuação da guerra civil abertamente declarada, na negação daquela própria “ordem” em nome da qual a guerra civil era travada. Isso só podia ser um estado de coisas espasmódico, excepcional. Ele era impossível como a forma política normal da sociedade, insuportável mesmo para a massa das classes médias. Quando, portanto, todos os elementos da resistência popular foram quebrados, a República parlamentar teve de desaparecer diante do (dar lugar ao) Segundo Império. (2011c, pp. 170-171; negritos nossos)
Em termos gerais, a máquina estatal criada pela monarquia serviu de mediação para a luta contra o feudalismo. Os sucessivos períodos subsequentes testemunham a luta entre as diversas frações da burguesia pela supremacia no controle dessa máquina aperfeiçoada ao longo do tempo. Esse aperfeiçoamento é acompanhado pelo acirramento das lutas dos trabalhadores. A moderna luta de classes, impulsionada pelo desenvolvimento econômico do capitalismo, criou as circunstâncias que moldaram a fisionomia e o funcionamento da máquina do Estado. Como forma de dominação da ditadura burguesa, o Estado serve à perpetuação das relações sociais de produção, das contradições que são sua base real. Mas existem contingências específicas em que o mesmo Estado não aparece como meio de dominação. Houve um processo de aceitação da ordem estabelecida por parte dos trabalhadores e não há qualquer motivo para se retirar o Estado desse processo de convencimento das massas, na medida mesma em que o Estado cuida também de assuntos comuns (escolas, sanitarismo etc.). A aparência objetiva de imparcialidade absoluta é aqui revelada; a falsa universalidade como o autêntico representante não contraditório dos interesses gerais. Mas, com a moderna luta de classes, o Estado desenvolve seu “caráter de instrumento de despotismo de classe” e perde aquela aparência. A forma repressiva ganhou na França ponto exacerbado no derramamento de sangue pelas ruas de Paris, mas tal forma bonapartista tem duração marcada, pois não pode funcionar como “a forma política normal da sociedade”.
Em suma, está aí explícito o movimento da forma política, aqui considerado em termos muito gerais extraídos do caso francês. Tal movimento não é feito apenas do momento coercitivo, pois convive com outros momentos também importantes na perpetuação das próprias contradições, como o convencimento das massas na aceitação da ordem social. Devemos evitar a todo custo essas dicotomias como coerção-consenso. A realidade complexa expressa por Marx mesmo mostra que esses momentos todos coexistem numa unidade cuja lógica é dada por um movimento das forças não imanentes ao próprio Estado, por assim dizer. Isto é, o desenvolvimento econômico do capitalismo e o estágio da luta de classes. Não se trata, portanto, como o caso francês deixa explícito, de um movimento próprio da forma política, mas de um movimento condicionado que, ao reagir, provoca outras modificações importantes. Como disse Marx acima, o Estado, sob tais circunstâncias, “teve de mudar […] mas também operar uma marcante mudança”.
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A chamada via prussiana possui marcas distintas, que os artigos de Marx na Nova Gazeta Renana testemunham. Embora já tenhamos elementos a partir das Glosas, conforme apresentado no tópico anterior, é o período de 1848 a 1849 que precisa vir ao primeiro plano com todas as prisões, processos judiciais contra a imprensa, repressão violenta por meio das armas de toda revolta dos trabalhadores, criação de polícia civil armada em Berlim etc. Camphausen, Hansemann, o procurador público Hecker, e outros mais, levaram adiante medidas amplamente pérfidas e bárbaras (cf. Marx, 2010c). Mas é também um período em que despontam ideólogos de jornais comprometidos com a ordem, além de professores e outras categorias interessados na legitimação da monarquia constitucional. Trata-se de um período conturbado e que serve para a análise da forma política, isto é, um tipo e modo de atuação da dominação política correspondente ao modo de entificação do capitalismo na Alemanha.
Chama a atenção a fórmula impossível de um “domínio burguês e forma da monarquia constitucional” (ibidem, p. 341) ou, ainda, de um “feudalismo aburguesado” (ibidem, p. 99). A comparação entre os processos revolucionários é esclarecedora. “As revoluções de 1648 e de 1789 não foram as revoluções inglesa e francesa”, disse Marx, “foram revoluções de tipo europeu. Não foram o triunfo de uma determinada classe da sociedade sobre a velha ordem política; foram a proclamação da ordem política para a nova sociedade europeia. Nelas triunfou a burguesia; mas o triunfo da burguesia foi então o triunfo de uma nova ordem social” (ibidem, p. 323; grifos no original). Por outro lado, “Não houve nada disso na revolução prussiana de março” de 1848. Explicou Marx que a “revolução de fevereiro suprimira a monarquia constitucional efetivamente e a dominação da burguesia na ideia. A revolução prussiana de março devia criar a monarquia constitucional na ideia e a dominação da burguesia na efetividade. Bem longe de ser uma revolução europeia, era apenas o retardado eco débil de uma revolução europeia num país atrasado” (ibidem, p. 324). É essa conciliação com o velho num capitalismo atrasado que parece impor à forma política um prolongamento de seu momento repressivo. Trata-se de um traço específico da via prussiana e não uma teoria do Estado que seja, de maneira abrangente, capaz de sintetizar todos os modos possíveis de atuação do Estado. É nesses termos que se determina a miséria alemã:
Mas, na França, a burguesia passou para a vanguarda da contrarrevolução depois de ter derrubado todos os obstáculos que havia no caminho da dominação de sua própria classe. Na Alemanha ela se encontra rebaixada a caudatária da monarquia absoluta e do feudalismo antes de ter ao menos garantido as condições vitais básicas de sua própria liberdade civil e dominação. Na França ela se apresentou como déspota e fez sua própria contrarrevolução. Na Alemanha ela se apresentou como escrava e fez contrarrevolução de seus próprios déspotas. Na França ela venceu para humilhar o povo. Na Alemanha ela se humilhou para que o povo não vencesse. A história inteira não mostra outra miséria tão ignominiosa como a da burguesia alemã. (ibidem, p. 259; grifos no original)
A ausência de uma revolução autenticamente liberal, a conciliação do novo com o velho, tornou a forma política repressiva como um modo mais duradouro de atuação do Estado. O próprio Marx explica essa conciliação para insinuar a permanência de uma forma política feudal ao descrever que se pretendia “fundar o domínio da burguesia concluindo ao mesmo tempo um compromisso com a velha política e o velho Estado feudal”. O preço a se pagar é alto, pois “nessa tarefa dúplice e plena de contradições, vê a todo momento o domínio ainda a ser fundado da burguesia e sua própria existência sobrepujados pela reação no sentido absolutista, feudal – e sucumbirá a ela. A burguesia não pode lutar por seu próprio domínio sem se aliar provisoriamente a todo o povo, sem, por isso, apresentar-se como mais ou menos democrática” (ibidem, p. 161). A conciliação impede um movimento democrático que, inclusive, comportaria outros modos de atuação do Estado. Ao manter a forma feudal para lidar com uma classe trabalhadora já consciente das circunstâncias históricas de sua luta – à medida que aprendeu com as lutas na Inglaterra e na França –, implicou uma “atividade efetiva, tangível, popular […] puramente policial”. E “aos olhos do proletariado e da democracia urbana” surgia “o velho Estado policial e burocrático modernizado” (ibidem, p. 336, grifos no original).
É claro, porém, que não cabem análises unilaterais que deformam a realidade e para as quais só existem o dia e a noite, nunca o anoitecer ou o amanhecer. O “desarmamento da Guarda Civil”, ainda que, contraditoriamente, feito exclusivamente nos bairros dos funcionários prussianos, foi “um trunfo para a causa popular” (ibidem, p. 281). Mais expressivo ainda é o modo pelo qual o ministério prussiano, sob a direção de Camphausen, buscou de todas as formas “apanhar ainda alguns centavos de popularidade, provocar a compaixão pública pela garantia de que se retira da cena do Estado como logrado”. Certamente tais políticos ocupavam a cena política e procuraram angariar legitimidade para as suas ações e encontravam ecos nos ideólogos dos jornais, das universidades e dos funcionários da burocracia (como os procuradores). Isso mostra que, não obstante a cotidiana atuação repressiva do Estado, esta não resume o movimento da forma política. É certo também que, como disse Marx na sequência, “a serviço da grande burguesia, [Camphausen] teve de procurar privar a revolução de seus frutos democráticos; em lutar contra a democracia, teve de se aliar ao partido aristocrático e tornar-se o instrumento de seus apetites contrarrevolucionários” (ibidem, p. 113). Isso é suficientemente claro na indicação de que a durabilidade do momento repressivo do Estado que se erguia na via prussiana deve-se à conciliação entre a fraca burguesia nacional alemã e os interesses feudais, garantindo a formação de um Estado capitalista não autêntico, correspondentemente à forma débil do capitalismo ascendente.
Vê-se que não faz qualquer sentido atentar contra Marx fazendo dele uma caricatura não dialética. Com as rápidas indicações temos à disposição aquela relação entre universalidade e particularidade para apreensão do movimento da forma política em seus diferentes momentos coabitantes dos Estados capitalistas em suas particularidades – movimentos particulares que, não obstante, influenciam-se também reciprocamente… Não apenas tais Estados concretos não estacionaram no momento repressivo, como também atuaram no processo de convencimento das massas, no reconhecimento de direitos, inclusive “protetivos”, embora tenham servido como mediação de preservação das contradições que são a sua base real. Aqui se marca o sincretismo dos Estados concretos, que se dá em graus variados, segundo as condições históricas específicas.
E é bom que se diga uma vez mais que o movimento que identificamos nas formas políticas dos casos concretos deve-se não a uma lógica própria, mas aos nexos com as forças motrizes de ordem primária sobre as quais também atuam reciprocamente as formas concretas dos Estados. As diferentes circunstâncias históricas na formação do capitalismo, cujas leis gerais só podem se manifestar nos casos particulares, iluminam o movimento real da forma política. A comparação entre os casos da Inglaterra, da França e da Alemanha teve essa intencionalidade, ao trazer para o primeiro plano as correspondências e reciprocidades entre as formas de dominação política e as vias de objetivação do capitalismo. O que Marx procura fazer é reproduzir a lógica desse movimento das reciprocidades, e jamais o desenho de um conceito ou “concepção” mais “ampliada ou restrita” do Estado, jamais se tornaria preso a binômios reducionistas e negativos como repressão-ideologia, coerção-consenso. O freio racional, assim como as demais medidas que acompanhamos nos casos concretos, são produtos autênticos do capitalismo desenvolvido que requer um sincretismo de Estado que abarque algumas necessidades fáticas nascidas das condições sociais sem que, com isso, seja a expressão dos interesses de classe dos trabalhadores.
E o que dizer, por fim, das passagens escolhidas do Manifesto por Coutinho para traçar a “concepção restrita de Estado” em Marx? Deixamos propositalmente essa questão para o final, depois de acompanhar, ainda que superficialmente, o movimento da forma política. Tais passagens do Manifesto não podem ser tomadas como o cume alto do desenvolvimento da análise de Marx, como faz o autor brasileiro. Não devemos recorrer ao argumento de que se tratava de um recurso panfletário sem apontar que todo o itinerário marxiano ilumina questões apenas telegrafadas no material de 1848, escrito em meio às conturbações que marcaram toda a Europa no período – sem mencionar o fato de que o Manifesto tem suas raízes mais profundas nos materiais de Engels (1976a, p. 96; 1976b, p. 341). As passagens mais decisivas explicitam nada mais do que a dominação política que é forma da dominação econômica. Marx e Engels escreveram que o movimento histórico das sublevações políticas que culminaram na sociedade burguesa “não fez mais do que estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das que existiram no passado” (1998, p. 40). Ao reter apenas isso, os defensores da tese do Estado-coerção em Marx retiram de cena que “cada etapa da evolução percorrida pela burguesia foi acompanhada de um progresso político correspondente” (ibidem, p. 41), avanços nada desprezíveis, como as formas de emancipação política, aquisição de direitos, protetivos e assistenciais, as quais vieram à tona pela letra de Marx. Repete-se com frequência que “o executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”, mas não se acentua que isso se dá na medida da “soberania política exclusiva no Estado representativo moderno” (ibidem, p. 42) – isto é, sincrético ao incorporar determinadas reivindicações trabalhistas –, nem que se comportam disputas entre as próprias frações burguesas que podem, vez por outra, abrir brechas às necessidades fáticas dos trabalhadores. Retém-se que “o poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra” (ibidem, p. 59), esquecendo-se que esse, de fato, é um dos seus momentos e que, nessas condições de antagonismo de classes, o Estado é forma desse antagonismo e funciona no sentido de sua conservação, mas não é o resumo do movimento do complexo político. Retira-se de cena toda a complexidade do movimento real da forma política que Marx pôde expressar ao longo de seu itinerário intelectual e do qual o Manifesto é um capítulo propagandístico, assim como outros, e não o cume alto de seu desenvolvimento. É preciso transformar Marx num homem avesso ao movimento real para imputar-lhe uma “concepção” estática de qualquer tipo.
IV.
A conclusão que leva à tese do Estado-coerção em Marx, como mero instrumento, sem mais, nas mãos das classes dominantes, padece das deficiências de uma postura não dialética e com baixo rigor analítico dos próprios textos marxianos postos como alvos da crítica.
A tese é também bastante redutora. Por que razão apenas no Manifesto a tese do Estado-coerção encontraria respaldo e não antes, nos textos desse período de 1843-1844 ou depois de 1848? É toda obra de Marx que se ilumina a partir do Manifesto ou, ao contrário, é o Manifesto que se revela telegráfico, dados os objetivos postos, quando se toma todo o itinerário marxiano? Mas isso também seria o fracasso da própria tese sustentada particularmente por Coutinho, pois Gramsci teria, nesse sentido e apenas nesse sentido, superado tão somente um instrumento de propaganda.
Ao retomar a maneira como Marx buscou, nos casos concretos, identificar o movimento real da forma política no nexo com as forças motrizes de ordem primária, fica evidenciada a reciprocidade entre os traços universais, comuns, dos Estados capitalistas e a particularidade de cada caso. Desse modo, foi possível determinar que a violência extraeconômica é uma possibilidade que não resume o complexo da política, sem deixar de ser com isso um dos seus momentos recíprocos importantes.
Embora nosso objetivo não seja o de explorar extensamente essas questões, é possível, a título de hipótese para trabalhos futuros, deixar indicado que o condicionamento recíproco entre os modos de atuação do Estado tem como força central a própria insuficiência imanente das medidas administrativas frente aos problemas sociais, isto é, o seu caráter não resolutivo das contradições sociais por meios meramente “administrativos” condiciona também a explicitação de meios repressivos. Mas tais meios repressivos não podem ser únicos, nem muito duradouros, pois isso leva necessariamente à contestação da universalidade objetivamente aparente do Estado. Se, como disse Chasin (2000, p. 96), a violência do Estado é seu fracasso, é preciso acrescentar: é um fracasso condicionado pela impotência dos próprios meios políticos em resolver as contradições que são sua base real.
Os diversos modos de atuação do Estado, da repressão, do convencimento, da dívida pública, do controle do crédito, da construção de escolas e ferrovias, do reconhecimento de direitos etc.; todos esses elementos foram necessários para a gênese e reprodução do capitalismo e isso, por si só, denota o caráter de classe do Estado, ainda que possa ser mediação para assuntos comuns e, vez por outra, possa surgir como uma espécie de proteção sempre provisória da classe trabalhadora como necessidade imanente do modo de produção capitalista, isto é, por efeito da própria luta de classes que se trava sob a capa da expressão política. Vemos claramente aquele sincretismo político em que o Estado precisa, por efeito da própria necessidade de reprodução, incorporar necessidades e demandas sociais que não ameacem o conjunto das relações – incorporação, portanto, que pode retroceder, como frequentemente o faz. E esse sincretismo comporta o duplo movimento de medidas administrativas e de coerção direta (entre outras) como respostas do Estado frente aos problemas sociais ou às suas expressões.
É possível mesmo dizer que as medidas administrativas na forma dos direitos protetivos e assistenciais não são apenas, como nos deuses hindus, um dos braços esquerdos do capital mediado pelo Estado frente à luta de classes, mas uma forma da compulsão econômica por meios que, mais sutis que a coerção política direta – mais democráticos, por assim dizer –, aparecem na realidade mesma como desconectados de uma estrutura de dominação. Como escreveu Lukács, “o Estado, o aparelho do poder político” não é “uma mediação da dominação econômica da sociedade, mas imediatamente essa própria dominação” (2003, p. 150).
A atuação do Estado desenvolvido, portanto, dá-se por uma unidade entre modos de atuação, dos quais destacamos a repressão direta e medidas administrativas em que tais elementos existem simultaneamente e se condicionam. O caso inglês é, nesse sentido, instrutivo. O momento da coerção veio historicamente primeiro e o desenvolvimento da classe trabalhadora forçou certo recuo desses meios, mas apenas na medida em que a classe que se formava caía diretamente sob as relações de dependência econômica. Medidas administrativas tomam lugar da coerção direta, mas podem ceder lugar novamente à coerção extraeconômica na medida mesma que tais meios administrativos são ineficazes, por princípio, na abolição dos problemas sociais e, portanto, não eliminam as classes nem suas tensões; antes, as pressupõem. Se considerarmos os efeitos das circunstâncias econômicas que fazem recuar direitos sociais e trabalhistas – como os séculos XX e XXI testemunham –, é de se notar que as formas regressivas de atuação do Estado mostram-se mais à luz do dia precisamente nos períodos de crise. Quer dizer, o modo de atuação do Estado é profundamente condicionado pelas circunstâncias econômicas, pelo estágio da luta de classes e, claro, pelo esclarecimento social da classe trabalhadora nessa luta. Temos então uma relação, no interior de uma unidade, entre repressão direta e medidas administrativas, uma unidade de movimento não próprio, porque se regula por circunstâncias e relações que estão fora dela, mas que também são por ela condicionadas.
O movimento dos condicionamentos recíprocos é histórico e respeita as circunstâncias também nacionais. O tipo europeu, como escreveu Marx, ou a via clássica da Inglaterra e da França, mostra que com a revolução liberal e sob a supremacia da burguesia, a consolidação da dominação econômica torna a coerção extraeconômica uma medida extraordinária. As medidas administrativas estão em reciprocidade com a dominação econômica, tomando lugar da coerção estatal direta. As medidas administrativas, ao invés de solucionar os problemas sociais, na verdade disciplina-os e perpetua-os, tornando-os objetos de administração. É o caso das Workhouses, dos Dépots... As crises, como episódio cíclico perturbador de primeira ordem, forçam a classe trabalhadora à contestação das condições de vida e das medidas administrativas mais diretamente porque estas se mostram insuficientes ou ineficazes. A depender do agravo das contestações, da disposição das classes dominantes em manter os anéis nos dedos e do grau de organização dos trabalhadores – na medida mesma das insuficiências das medidas administrativas em alterar as causas das condições de vida –, a coerção extraeconômica torna a se manifestar, de modo espasmódico. Mas esse condicionamento recíproco no interior da unidade, abstraindo todos os demais modos de atuação já aludidos, é dado por uma força não imanente ao amplo complexo político, isto é, pelas circunstâncias econômicas, o estágio da luta de classes. Além disso, quanto mais esclarecida socialmente – e não apenas politicamente – for a classe trabalhadora, menos seu alvo principal é tão somente o Estado, e mais são as condições de reprodução de sua vida, das quais o Estado é forma. O que temos então é uma complexa reciprocidade, no interior de uma unidade maior, entre coerção direta e medidas administrativas, de um lado, e, de outro, entre essa unidade e as condições econômicas, o estágio da luta de classes, a consciência da classe trabalhadora, assentadas sobre a lógica do valor.
Na via prussiana, até onde Marx mesmo pôde acompanhar, a conciliação impossível do novo com o velho para fundar o novo provocou todo tipo de ressonância
na forma política em correspondência a um capitalismo atrasado. A forma monárquica para um conteúdo burguês, num território em que a classe trabalhadora já adquirira certo grau de consciência, “exigiu” um modo mais repressor de atuação do Estado, ainda que também comportasse outros modos… Camphausen, como vimos, pôde atestar. A durabilidade e a intensidade do modo repressivo na Alemanha explicam-se, entre outras coisas, pela fraqueza de sua burguesia, que aceitou a perseverança dos aspectos feudais. A ausência de uma autêntica revolução liberal, que reduzisse o Estado feudal aos escombros, cedeu lugar a uma conciliação entre as classes então dominantes às custas de uma forte repressão das massas trabalhadoras. Os limites temporais da vigência dessa forma na Alemanha constituem uma questão que só pode ser esclarecida pela análise histórica dos períodos subsequentes, os quais, lamentavelmente, Marx não testemunhou…
Com efeito, esses casos concretos permitem que se avalie o quão distante aquela tese do Estado-coerção está da potência marxiana em reproduzir o movimento real da forma política e de seus nexos com as forças motrizes de ordem primária. Eles mostram toda a riqueza e complexidade que no presente texto só foi possível sugerir superficialmente. De todo modo, fica evidente que só se pode sustentar a tese que combatemos convertendo Marx no que ele não era: um pensador avesso ao movimento das formas em reciprocidades aos seus conteúdos, a um materialista antidialético, a um dogmático, a algo que até mesmo Gramsci – que inadvertidamente inspirou a tese do Estado-coerção – só pôde identificar em Lassalle.
*Elcemir Paço Cunha é Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Professor adjunto do Departamento de Ciências Administrativas, Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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