Cartas entre Karl Marx e Abraham Lincoln

Tradução de Douglas Rodrigues Barros, via libcom.org.

Nota Introdutória do Libcom

Karl Marx e Abraham Lincoln trocaram cartas no final da Guerra Civil. Embora estivessem separados por muito mais do que o Oceano Atlântico, concordavam na causa do “trabalho livre” e na urgente necessidade do fim da escravidão. Em sua introdução Robin Blackburn argumenta que Lincoln sinalizou em sua resposta a importância da comunidade alemã americana e o papel da Internacional Comunista em oposição ao reconhecimento Europeu da Confederação[1].

Os ideais comunistas, expressos por meio da Associação Internacional dos Trabalhadores, atraiu milhares de apoiadores em todo os EUA, e ajudou a espalhar a pauta por Oito horas de trabalho por dia. Blackburn mostra como a AIT na América – nascida antes da Guerra Civil – buscou radicalizar a revolução inacabada de Lincoln e avançar nos direitos dos trabalhadores, unindo brancos e pretos, homens e mulheres, nativos e estrangeiros.  A Internacional contribuiu para aprofundar a crítica ao capitalismo de barões ladrões que enriqueceram a si mesmo durante e depois da guerra, e inspirou uma extraordinária série de greves e lutas de classe nas décadas pós-guerra.

Nota introdutória do tradutor

Enquanto reina a confusão e a mentira é produzida tanto à direita quanto à “esquerda”, enquanto as acusações ao marxismo brotam contra sua “tendência totalitária” pela nova religião que se baseia em redes individualizadas incrementando a necessidade de expansão do capital por meio das ONGs, enquanto o moralismo neocatólico supostamente progressista de esquerda estabelece seus tribunais virtuais nas redes sociais acusando todos que não concordam com seu credo moral. É dever de nós comunistas insistirmos no resgate de nossa história, na história de nossa organização, nos seus inúmeros fracassos, nos seus erros históricos, mas também, nos seus acertos, na sua multiplicidade de posições, nas suas conquistas e na sua influência na conquista de todo e qualquer direito pelos trabalhadores de modo geral e no mundo inteiro. Não há nenhuma conquista, nenhum direito que não tenha sido arrancado com muito suor e com a força dos ideais comunistas dos trabalhadores – é claro que comunismo aqui está colocado muito além daquele sentido do “socialismo realmente existente”, o comunismo como ideia, como o velho Princípio Esperança que moveu a humanidade é aquilo que temos que intransigentemente defender. Caso contrário, brota dos bueiros a hydra fascista, a servidão voluntária nas oligarquias financeirizadas, o ódio e o preconceito como modo de vida. Está tradução de um pequeno fragmento da grandiosa Internacional Comunista é um acanhado esforço no sentido de resgate das nossas lutas.


DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DOS TRABALHADORES PARA ABRAHAM LINCOLN

Para Abraham Lincoln

Presidente dos Estados Unidos da América

Senhor,

Nós parabenizamos o povo americano pela sua reeleição por larga maioria. Se a resistência ao poder escravo era a palavra de ordem de sua primeira eleição, o triunfante grito de guerra de sua reeleição é a morte da escravidão.

Desde o início da titânica luta norte-americana, os trabalhadores da Europa sentiram instintivamente que a bandeira das estrelas determinava o destino de sua classe. A disputa pelos territórios que abriu a terrível epopeia, não foi para decidir se o solo virgem de extensos caminhos deveria ser trilhado pelo trabalho do imigrante ou prostituído pelo vagabundo dirigente de escravo[2]?

Quando uma oligarquia de 300 mil proprietários de escravos se atreveu a inscrever, pela primeira vez nos anais do mundo, “escravidão” na bandeira da revolta armada; quando nos lugares mais difíceis há quase um século a ideia de uma grande república democrática surgiu pela primeira vez, donde a primeira Declaração dos Direitos do Homem foi emitido e dado o primeiro impulso a revolução europeia do século XVIII; quando a contrarrevolução desses princípios, com sistemático rigor, gloriou-se em romper “às ideias acolhidas no tempo de formação da velha Constituição” e manteve a “escravidão por ser uma instituição benéfica, de fato, a única solução do grande problema na relação entre capital e trabalho”, e cinicamente proclamou a propriedade no homem “a pedra angular do novo edifício”, então a classe trabalhadora da Europa entendeu de uma só vez; mesmo antes do partidarismo fanático das classes altas Confederadas terem dado o triste alerta que a rebelião escravocrata era o sinal para uma cruzada sagrada geral da propriedade contra o trabalho; para os trabalhadores, com suas esperanças no futuro, as conquistas passadas estavam em jogo naquele tremendo conflito no outro lado do Atlântico. Em toda parte, suportaram pacientemente as dificuldades impostas pela crise do algodão, se opuseram entusiasticamente a intervenção pró-escravidão, impertinências de seus “melhores”, e de muitas partes da Europa deram seu sangue contribuindo para a boa causa.

Enquanto os trabalhadores, verdadeira força política no Norte, permitiram que a escravidão definisse sua própria república, permitindo que o negro fosse dominado e vendido sem sua concordância e se vangloriavam na alta prerrogativa de que o trabalhador de pele branca para se vender podia escolher seu próprio mestre, não conseguiram alcançar a verdadeira liberdade de trabalho ou apoiar seus irmãos europeus na luta por emancipação, no entanto, essa barreira ao progresso foi derrubada pelo mar vermelho da guerra civil.

Os Trabalhadores da Europa têm certeza que com a Guerra de Independência Americana iniciou-se uma nova era de ascendência da classe média, então a guerra anti-escravidão americana será feita pelas classes trabalhadoras. Consideram isso uma questão séria da época, que se abateu sobre Abraham Lincoln, o filho solitário da classe que liderará o seu país por meio da incomparável luta pelo resgate de uma raça encadeada[3] e a reconstrução de um mundo social.

Assinado em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores, o Conselho Central…

Bee-Hive (Londres), 7 de janeiro de 1865

A RESPOSTA DO EMBAIXADOR AMERICANO ENDEREÇADA À ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DOS TRABALHADORES

Para o editor do Times

Senhor,

Algumas semanas atrás uma carta de felicitações foi enviada do Conselho Central da Associação acima para o Senhor Lincoln. A carta foi transmitida através da Legação dos Estados Unidos e a resposta seguinte foi recebida. Sua publicação é obrigatória,

            Respeitosamente,

  1. R. Cremer

            Legação dos Estados Unidos

            Londres, 31 de janeiro

Senhor,

Tenho a intenção de informá-lo que a missiva do Conselho Central de sua associação, que foi devidamente transmitida por meio da Legação ao presidente dos Estados Unidos, foi recebida por ele. Na medida que os sentimentos expressos são pessoais, eles foram aceitos com um desejo ansioso e sincero de que ele possa provar que não é indigno da confiança que tem e que foi recentemente depositada a ele por seus concidadãos, por tantos amigos da humanidade e do progresso em todo o mundo. O governo dos Estados Unidos tem a consciência clara de que a política nem é, nem deve ser reacionária, mas ao mesmo tempo aderiu ao curso que foi adotado desde o início, de se abster de todo e qualquer propagandismo e de intervenção fora da lei. Busca o esforço por igualdade e exata justiça para todos os estados e para todos os homens, isto baseia-se nos resultados benéficos desse esforço com o apoio em casa, com o respeito e a boa vontade ao redor do mundo. Nações não existem sozinhas, por si mesmas, mas para promover o bem-estar e a felicidade da humanidade por relações e exemplos benevolentes. E nestas relações que os Estados Unidos firmam sua causa no presente conflito com os insurgentes que buscam manter a escravidão como causa da natureza humana, e obteve novo encorajamento para perseverar com o testemunho dos Trabalhadores da Europa, a atitude nacional foi favorecida com sua esclarecida aprovação e sinceras simpatias.

            Eu tenho a honra de ser, Senhor, seu obediente servo

            Charles Francis Adams.

            Times, 6 de fevereiro de 1865

DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DOS TRABALHADORES PARA O PRESIDENTE JOHNSON

Para Andrew Johnson,

Presidente dos Estados Unidos

 

Senhor,

O demônio da “instituição peculiar” buscando a supremacia do levante armado do Sul, não permitiria que seus adoradores sucumbissem com honra no campo aberto. O que ele iniciou com traição precisou acabar com infâmia. Tal como a guerra da inquisição de Philip II gerou um Gerard, assim foi a guerra do estande pró-escravidão de Jefferson Davis[4].

Não é nossa intenção trazer palavras de tristeza e horror, enquanto o coração de dois mundos se emocionam. Até os sicofantas que, ano após anos, dia após dia, presos ao seu trabalho de Sísifo para assassinar moralmente Abraham Lincoln e a grande República, ficaram horrorizados com o sentimento dessa explosão universal de popularidade e se digladiam um com o outro para lançar flores retóricas em sua sepultura aberta. Finalmente descobriram que ele não era um homem amedrontado pela diversidade nem intoxicado pelo sucesso; inflexivelmente pressionado pelo seu grande objetivo, nunca o comprometendo com a cega pressa; lentamente amadurecendo seus passos, nunca o retraçando; arrebatado pelo aumento do favor popular, desencorajado pelo abrandamento do pulso popular; temperando atos difíceis com o brilho de um coração amável; iluminando cenas obscuras com a paixão por um sorriso de humor; fazendo seu trabalho titânico tão humilde e caseiro como governantes nascido do céu fazem pequenas coisas com a grandiloquência e a pompa de estado; em uma palavra, um homem raro que teve sucesso em torna-se grande, sem deixar de ser bom. De fato, tal foi a modéstia deste grande e bom homem que o mundo só o descobriu como um herói depois de ter caído como um mártir.

Para ser escolhido e ficar ao lado de tal dirigente, o Sr. Seward[5], uma honra justa, a segunda vítima dos deuses infernais da escravidão. Se ele não tivesse, num momento de hesitação geral, a sagacidade de prever, a virilidade de prever o “conflito irreprimível”? Ele, nas horas mais sombrias do conflito, não provou ser fiel ao dever romano de nunca se desesperar na república e nas estrelas?  Esperamos sinceramente que ele e seu filho tenham a saúde restabelecida, com atividades públicas e honras merecidas em muito menos de 90 dias.

Depois de uma tremenda guerra, mas [uma] que, se nos considerarmos as vastas dimensões, e seu amplo escopo, e compará-la com o Velho Mundo guerras de 100, 30 e 23 anos, a sua dificilmente pode se dizer ter durado 90 dias. Senhor, tornou-se tarefa desarraigar pela lei aquilo que fora derrubado pela espada, para presidir o árduo trabalho de reconstrução política e regeneração social. Um profundo senso de sua grande missão irá salvá-lo de qualquer compromisso com deveres duvidosos. Você não esquecerá que para iniciar a nova era de emancipação do trabalho, o povo americano delegou as responsabilidades de liderança sobre dois homens de trabalho – um Abraham Lincoln, o outro Andrew Johnson.

Assinado em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores, Londres 13 de maio de 1865, o Conselho Central…

Bee-Hive (Londres), 20 de maio de 1865


[1] A Europa à época apoiou os Estados Confederados que eram favoráveis a manutenção do trabalho escravo (N. do T.)

[2] No original: The tramp of the slave driver, mais ou menos como capitão do mato no Brasil.

[3] Raça encadeada fora o melhor termo que achei para essa tradução, o que significa que Marx contrário a separação étnico-racial, muito em voga em sua época, era a favor do encadeamento étnico-racial. De acordo com o dicionário encadear é ligar-se a outros; seguir pela ordem natural, etc… (N. do T.)

[4] Político Americano que foi presidente dos estados Confederados e um dos principais incitadores da secessão e da manutenção da escravidão.

[5] William Henry Seward um dos maiores opositores à escravidão, na noite do assassinato de Lincoln sofreu um atentado ficando gravemente ferido. (N. do T.)

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