Por Vladimir Ilitch Ulianov (Lenin), via marxists.org
Redigida por Lenin há exatos cem anos, a presente carta foi remetida ao Comitê Central da fração bolchevique do Partido Operário Social Democrata da Rússia às vésperas da tomada do Palácio de Inverno. Como documento histórico, expõe as hesitações que persistiam entre os bolcheviques, e parte da luta ideológica interna que precedeu a Revolução de Outubro. Ao mesmo tempo, como documento teórico, apresenta uma ardente defesa da arte da insurreição, distinguindo a posição marxista daquela jacobina pequeno-burguesa (tema desenvolvido também na posterior carta “Conselhos de um Ausente“).
Entre as mais maldosas e talvez mais divulgadas deturpações do marxismo pelos partidos “socialistas” dominantes encontra-se a mentira oportunista de que a preparação da insurreição, e em geral o tratamento da insurreição como uma arte, é “blanquismo”.
O chefe do oportunismo, Bernstein, adquiriu já uma triste celebridade ao acusar o marxismo de blanquismo e, no fundo, os oportunistas de hoje em nada renovam nem “enriquecem” as pobres “ideias” de Bernstein com os gritos de blanquismo.
Acusar os marxistas de blanquismo porque tratam a insurreição como uma arte! Poderá haver deturpação mais gritante da verdade, quando nenhum marxista nega que foi precisamente Marx quem se pronunciou da forma mais determinada, precisa e indiscutível sobre isto, chamando à insurreição precisamente uma arte, dizendo que se deve tratar a insurreição como uma arte, que é necessário conquistar um primeiro êxito e ir de êxito em êxito, sem interromper a ofensiva contra o inimigo, aproveitando a sua confusão, etc, etc?
Para ter êxito, a insurreição deve apoiar-se não numa conjura, não num partido, mas na classe avançada. Isto em primeiro lugar. A insurreição deve apoiar-se no ascenso revolucionário do povo. Isto em segundo lugar. A insurreição deve apoiar-se naquele ponto de viragem na história da revolução em crescimento em que a atividade das fileiras avançadas do povo seja maior, em que sejam mais fortes as vacilações nas fileiras dos inimigos e nas fileiras dos amigos fracos, hesitantes e indecisos da revolução. Isto em terceiro lugar. Estas são as três condições da colocação da questão da insurreição que distinguem o marxismo do blanquismo.
Mas uma vez que existem estas condições, negarmo-nos a tratar a insurreição como uma arte significa trair o marxismo e trair a revolução.
Para demonstrar porque é que é precisamente o momento que atravessamos aquele em que é obrigatório para o partido reconhecer que a insurreição foi posta na ordem do dia pela marcha objectiva dos acontecimentos e tratar a insurreição como uma arte, para o demonstrar o melhor é talvez utilizar o método comparativo e confrontar o 3-4 de Julho com os dias e Setembro.
A 3-4 de Julho podia-se, sem faltar à verdade, colocar assim a questão: seria mais correto tomar o poder, pois, de outro modo, os inimigos igualmente nos acusarão de insurreição e acabarão connosco como insurrectos. Mas daqui não se podia tirar a conclusão da utilidade da tomada do poder naquele momento, pois então não existiam as condições objectivas para a vitória da insurreição.
- Não estava ainda connosco a classe que é a vanguarda da revolução. Não tínhamos ainda a maioria entre os operários e os soldados das capitais. Agora ela existe em ambos os Sovietes. Ela foi criada apenas pela história de Julho e Agosto, pela experiência das “represálias” contra os bolcheviques e pela experiência da kornilovada.
- Não havia então o ascenso revolucionário de todo o povo. Agora, depois da kornilovada, existe. Demonstram-no a província e a tomada do poder pelos Sovietes em muitos lugares.
- Não havia então vacilações, em proporções políticas gerais sérias, entre os nossos inimigos e entre a pequena burguesia hesitante. Agora as vacilações são gigantescas: o nosso principal inimigo, o imperialismo aliado e mundial, pois os “aliados” estão à cabeça do imperialismo mundial, começa a vacilar entre a guerra até à vitória e uma paz separada contra a Rússia. Os nossos democratas pequeno-burgueses, tendo perdido claramente a maioria do povo, começaram a vacilar gigantescamente, rejeitaram o bloco, a coligação, com os democratas-constitucionalistas.
- Por isso a insurreição em 3-4 de Julho teria sido um erro: nós não conservaríamos o poder, nem física nem politicamente. Fisicamente, apesar de que Petrogrado esteve por momentos nas nossas mãos, pois os nossos operários e soldados não estavam então dispostos a bater-se, a morrer pela posse de Petrogrado: não havia a “fúria”, o ódio ardente tanto contra os Kerenski como contra os Tseretéli—Tchernov, os nossos homens ainda não estavam temperados pela experiência das perseguições contra os bolcheviques, com a participação dos socialistas-revolucionários e mencheviques.
Politicamente, não conservaríamos o poder em 3-4 de Julho porque, antes da kornilovada, o exército e a província podiam marchar e marchariam contra Petrogrado.
Agora o quadro é completamente diferente.
Temos por nós a maioria da classe que é a vanguarda da revolução, a vanguarda do povo, capaz de arrastar as massas.
Temos por nós a maioria do povo, pois a demissão de Tchernov está longe de ser o único indício, mas é o mais visível e mais palpável, de que o campesinato não receberá a terra do bloco dos socialistas-revolucionários, (nem dos próprios socialistas-revolucionários). E nisto reside a essência do carácter popular da revolução.
Temos por nós a vantagem da situação de um partido que conhece firmemente o seu caminho, num momento de vacilações inauditas tanto de todo o imperialismo como de todo o bloco dos mencheviques e socialistas-revolucionários.
Temos por nós uma vitória segura, pois o povo está já à beira do desespero e nós apontamos a todo o povo a saída segura, mostrando a todo o povo “nos dias da kornilovada” a importância da nossa direção, e depois propondo um compromisso aos bloquistas e recebendo deles uma recusa sem que tenham de modo nenhum terminado as vacilações por parte deles.
Seria o maior dos erros pensar que a nossa proposta de compromisso ainda não foi rejeitada, que a Conferência Democrática ainda pode aceitá-la O compromisso foi proposto por um partido a partidos; não podia ser proposto de outro modo. Os partidos rejeitaram-no. A Conferência Democrática é apenas uma conferência, nada mais. Não se deve esquecer uma coisa: nela não está representada a maioria do povo revolucionário o campesinato pobre e exasperado. É uma conferência da minoria do povo — não se pode esquecer esta verdade evidente. Seria o maior dos erros, o maior cretinismo parlamentar da nossa parte se tratássemos a Conferência Democrática como um parlamento, pois mesmo se ela se declarasse o parlamento permanente e soberano da revolução, nada resolveria também: a decisão está fora dela, nos bairros operários de Petrogrado e de Moscovo.
Temos diante de nós todas as premissas objectivas de uma insurreição com êxito. Temos diante de nós as excepcionais vantagens de uma situação em que só a nossa vitória na insurreição porá fim a essa coisa mais penosa do mundo, as vacilações, que esgotaram o povo; em que só a nossa vitória na insurreição dará imediatamente a terra ao campesinato; — em que só a nossa vitória na insurreição fará fracassar o jogo de uma paz separada contra a revolução, e fá-lo-á fracassar mediante a proposta aberta de uma paz mais completa, mais justa, mais próxima, uma paz em proveito da revolução.
Só o nosso partido, finalmente, vencendo na insurreição, pode salvar Petrogrado, pois se a nossa proposta de paz for rejeitada e não obtivermos nem sequer um armistício, então nós tornar-nos-emos “defensistas”, então pôr-nos-emos à cabeça dos partidos da guerra, seremos o mais “guerreiro” dos partidos, conduziremos a guerra de uma maneira verdadeiramente revolucionária. Tiraremos aos capitalistas todo o pão e todas as botas. Deixar-lhes-emos migalhas, calçá-los-emos com alpargatas. Daremos todo o pão e todo o calçado para a frente.
E então defenderemos Petrogrado.
Na Rússia são ainda imensamente grandes os recursos tanto materiais como espirituais para uma guerra verdadeiramente revolucionária; há 99 probabilidades em 100 de que os alemães nos darão pelo menos um armistício. E obter um armistício agora significa já vencer todo o mundo.
Reconhecendo a absoluta necessidade da insurreição dos operários de Petrogrado e de Moscovo para salvar a revolução e para nos salvarmos da partilha “separada” da Rússia pelos imperialistas de ambas as coligações, devemos, em primeiro lugar, adaptar a nossa táctica política na Conferência às condições da insurreição que cresce; devemos, em segundo lugar, demonstrar que não reconhecemos apenas em palavras a ideia de Marx da necessidade de tratar a insurreição como uma arte.
Devemos, na Conferência, unir imediatamente a fracção dos bolcheviques, sem correr atrás do número, sem recear deixar os vacilantes no campo dos vacilantes: aí eles são mais úteis à causa da revolução do que no campo dos lutadores decididos e abnegados.
Devemos redigir uma breve declaração dos bolcheviques, sublinhando da maneira mais incisiva a inoportunidade dos longos discursos, a inoportunidade dos “discursos” em geral, a necessidade de uma ação imediata para salvar a revolução, a absoluta necessidade de cortar completamente com a burguesia, de destituir completamente todo o governo atual, de romper de maneira absoluta com os imperialistas anglo-franceses, que preparam a partilha “separada” da Rússia, a necessidade da passagem imediata de todo o poder para as mãos da democracia revolucionária, encabeçada pelo proletariado revolucionário.
A nossa declaração deve ser a formulação mais breve e incisiva desta conclusão em ligação com os projectos programáticos: paz aos povos, terra aos camponeses, confiscação dos lucros escandalosos e repressão da sabotagem escandalosa da produção pelos capitalistas.
Quanto mais breve, quanto mais incisiva for a declaração, melhor. Nela é preciso salientar claramente apenas mais dois pontos muito importantes: o povo está esgotado pelas vacilações, o povo está dilacerado pela indecisão dos socialistas-revolucionários e mencheviques; nós rompemos definitivamente com estes partidos, pois eles traíram a revolução.
E o outro é: propondo imediatamente uma paz sem anexações, rompendo imediatamente com os imperialistas aliados e com todos os imperialistas, obteremos imediatamente ou um armistício ou a passagem de todo o proletariado revolucionário para o lado da defesa, e o prosseguimento, sob a sua direção, pela democracia revolucionária, de uma guerra verdadeiramente justa, verdadeiramente revolucionária.
Depois de ter lido esta declaração, depois de chamar a decidir e não a falar, a atuar e não a escrever resoluções, devemos lançar toda a nossa fração para as fábricas e os quartéis: é aí o seu lugar, é aí que está o nervo da vida, é aí que está a fonte da salvação da revolução, é aí que está o motor da Conferência Democrática.
Aí devemos explicar em discursos ardentes e apaixonados o nosso programa e colocar a questão assim: ou a aceitação completa dele pela Conferência, ou a insurreição. Não há meio termo. É impossível esperar. A revolução perece.
Colocando a questão assim, concentrando toda a fracção nas fábricas e nos quartéis, calcularemos corretamente o momento para o começo da insurreição.
E para tratar a insurreição de um modo marxista, isto é, como uma arte, devemos, ao mesmo tempo, sem perder um minuto, organizar o estado-maior dos destacamentos insurreccionais, distribuir as forças, lançar os regimentos de confiança para os pontos mais importantes, cercar o teatro Alexandrinski, tomar a Fortaleza de Pedro e Paulo [1], prender o estado-maior general e o governo, enviar contra os cadetes e contra a “divisão selvagem” destacamentos capazes de morrer para não deixar que o inimigo abra caminho para os centros da cidade; devemos mobilizar os operários armados, chamando-os ao combate final e desesperado, tomar imediatamente os telégrafos e os telefones, instalar o nosso estado-maior da insurreição na central telefônica, ligar com ele por telefone todas as fábricas, todos os regimentos, todos os pontos da luta armada, etc.
Tudo isto, naturalmente, como exemplo, apenas para ilustrar que no momento que vivemos não se pode permanecer fiel ao marxismo, permanecer fiel à revolução, sem tratar a insurreição como uma arte.
[1] O Teatro Alexandrinski em Petrogrado era o local onde se realizava a Conferência Democrática. Fortaleza de Pedro e Paulo: prisão onde, durante o tsarismo, se encarceravam os presos políticos. A Fortaleza de Pedro e Paulo tinha um enorme arsenal e era um importante ponto estratégico da cidade de Petrogrado.