Por Slavoj Žižek, via The Philosophical Salon, traduzido por Oleg Savitskii e Anna Savitskaia.
Em 7 de novembro de 2017, Judith Butler ajudou a organizar uma conferência em São Paulo. Embora o nome da conferência tenha sido “Os Fins da Democracia” e, portanto, não tenha tido nada a ver com o tema de transgênero, uma multidão de manifestantes de direita se reuniu do lado de fora do local do evento, onde queimaram uma efígie de Butler enquanto gritavam “Queimem a bruxa!”. Esse incidente estapafúrdio é a última de uma longa série de provas de que hoje em dia a diferença sexual é politizada de duas maneiras complementares: a “fluidificação” transgênera das identidades de gênero e a reação neoconservadora.
A famosa descrição da dinâmica capitalista em O Manifesto Comunista deveria ser completada pelo fato de que o capitalismo global torna “a unilateralidade e a estreiteza de visão sexuais cada vez mais impossíveis”. De modo semelhante, no âmbito das práticas sexuais, “tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado”. Desse modo, o Capitalismo tende a substituir a heterossexualidade normativa padrão pela proliferação de identidades e/ou orientações inconstantes e instáveis. Como já argumentei anteriormente, a atual celebração de “minorias” e “marginais” é a posição predominante da maioria, e, inclusive, os de extrema direita, que reclamam do terror do Politicamente Correto liberal, se apresentam como protetores de uma minoria ameaçada de extinção. Ou, considerem aqueles críticos do patriarcado que o atacam como se este ainda ocupasse uma posição hegemônica, ignorando o que Marx e Engels tinham escrito, há mais de 150 anos, no primeiro capítulo de O Manifesto Comunista: “Onde quer que tenha conquistado o Poder, a burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas”. Essas palavras ainda são ignoradas por aqueles teóricos culturais de esquerda que focam sua crítica na ideologia e prática patriarcais.
Portanto, o que deveríamos fazer a respeito dessa tensão? Devemos nos limitar a apoiar a fluidificação transgênera das identidades enquanto continuamos a criticar suas limitações? Há uma terceira maneira de questionar a forma tradicional das identidades de gênero que hoje eclodem: a manifestação em massa das mulheres contra a violência sexual masculina. Todas as reportagens especiais da cobertura midiática desse evento não devem nos distrair do que realmente está acontecendo: nada menos que uma mudança epocal, um grande despertar, um novo capítulo na história da igualdade. A maneira como as relações entre os sexos foram reguladas e organizadas durante milhares de anos é questionada e solapada. E a parte que protesta agora não é a minoria LGBT+, mas a maioria: as mulheres. O que está surgindo não é nada novo. É algo que sabíamos (vagamente, no mínimo) o tempo todo e apenas não podíamos (não estávamos dispostos, prontos de…) abordar abertamente: milhares de maneiras de explorar sexualmente as mulheres. As mulheres estão mostrando agora o lado oculto de nossas reivindicações oficiais por igualdade e mútuo respeito, e o que estamos descobrindo, é, entre outras coisas, quão hipócrita e unilateral era (e ainda é) a nossa crítica moderna da opressão contra as mulheres em países muçulmanos. Temos que confrontar a nossa própria realidade de opressão e exploração.
Como em qualquer revolta revolucionária, haverá inúmeras “injustiças”, ironias, etc. Por exemplo, duvido que os atos de Louis CK, por mais deploráveis e impudicos que sejam, possam ser colocados no mesmo nível que a violência sexual direta. Mas, novamente, tudo isso não deve nos distrair: deveríamos, antes, focar nos problemas que estão por vir. Embora alguns países já estejam se aproximando de uma nova cultura sexual pós-patriarcal (olhem a Islândia onde dois terços das crianças nascem fora do casamento e onde as mulheres ocupam mais cargos nas instituições do poder público do que os homens), uma das tarefas principais é explorar o que estamos ganhando e perdendo nessa conturbação de nossos procedimentos de cortejo herdados.
Primeiro, deve-se estabelecer novas regras, de modo que evitemos uma cultura estéril de medo e incerteza. Algumas feministas inteligentes perceberam há muito tempo que, se tentamos imaginar um cortejo inteiramente Politicamente Correto, chegamos perigosamente próximo a um contrato de mercado formal. O problema é que a sexualidade, o poder e a violência estão muito mais intimamente entrelaçados do que podemos supor, de sorte que os elementos daquilo que é considerado brutalidade podem ser sexualizados, isto é, investidos libidinalmente. Afinal, o sadismo e o masoquismo são formas de atividade sexual. A sexualidade purificada de violência e dos jogos de poder pode muito bem acabar ficando dessexualizada.
A próxima tarefa é garantir que a manifestação violenta em curso não fique limitada à vida pública dos ricos e famosos, mas se espalhe e penetre nas vidas cotidianas dos milhões de indivíduos “invisíveis” comuns.
E o ultimo (mas não menos importante) ponto é explorar como ligar esse despertar às lutas econômicas e políticas em andamento, ou seja, como prevenir que este seja apropriado pela ideologia (e prática) liberal ocidental como mais uma maneira de reafirmar sua prioridade. Lembrem quantos dos acusados, começando com Harvey Weinstein, reagiram declarando publicamente que buscariam ajuda na terapia – um gesto repugnante sem paralelo! Seus atos não foram casos da patologia privada; eram expressões da ideologia e das estruturas de poder masculinas predominantes, e são estas últimas que deveriam ser mudadas.
Aproximadamente ao mesmo tempo que os escândalos de Harvey Weinstein começaram a estourar, foram publicados os Paradise Papers. E a lição básica de sua divulgação não é o simples fato de que os ultra-ricos vivem em suas zonas especiais onde não estão sujeitos a leis? Micah White resume essa lição em dois pontos:
“Primeiro, pessoas do mundo inteiro, quer vivam na Rússia quer vivam na América, estão sendo oprimidas pelo mesmo minúsculo circulo social de elites abastadas que controlam indevidamente nossos governos, corporações, universidades e cultura. /…/ existe uma plutocracia global que emprega o mesmo punhado de empresas para esconder seu dinheiro e têm mais em comum um com o outro do que com os cidadãos de seus países. Isso prepara o terreno para um movimento social global. / Segundo e mais importante, esses vazamentos indicam que nossa terra se bifurcou em dois mundos separados e desiguais: um habitado por 200 indivíduos ultra-ricos de alto valor líquido e o outro pelos sete bilhões deixados para trás.”
Na verdade, não aprendemos nada de novo aqui, visto que já estávamos vagamente cientes disso durante muito tempo. O que é novo não é simplesmente o fato de que nossas suspeitas vagas agora são confirmadas pelos dados precisos, mas a mudança naquilo que, seguindo Hegel, deveríamos chamar de costumes públicos, Sitten, que agora parecem tolerar muito menos a corrupção. Não deveríamos idealizar essa situação nova: uma luta contra a corrupção pode ser facilmente apropriada pelas forças conservadoras antiliberais cujo lema de longa data é “democracia em demasia gera a corrupção”. Abre-se, não obstante, um novo espaço: exigir que os ricos e poderosos obedeçam às leis pode ser subversivo à medida que o sistema não pode realmente dar-se a esse luxo, isto é, na medida que os paraísos fiscais e outras formas de atividades financeiras ilegais são parte enraizada do capitalismo global.
O primeiro passo nessa direção é perguntarmo-nos por que ninguém exigiu que as pessoas parassem de ouvir as músicas do U2 e de Bono (o grande humanitário, sempre pronto para ajudar os pobres na África) ou de Shakira, devido à maneira como eles se esquivaram do pagamento de impostos e, portanto, fraudaram das autoridades públicas grandes quantias de dinheiro. Ou que a família real britânica devesse receber menos dinheiro público porque ela colocou parte de sua riqueza em oásis fiscais… Ainda assim, o fato de Louis CK ter mostrado seu pênis a algumas mulheres arruinou instantaneamente a sua carreira. Isso não é uma nova versão do velho lema de Brecht “O que é roubar um banco comparado a fundar um?” Trapacear com enormes somas de dinheiro é tolerado enquanto mostrar seu pênis a algumas pessoas transforma você instantaneamente em pária. [i]
Temos que fazer um esforço para que esse despertar não vire mais um caso em que a legitimação política se baseia no status de vitimização do sujeito. A característica básica da subjetividade de hoje não é a combinação bizarra do sujeito livre que se sente responsável em última instância por seu destino e do sujeito que assenta a autoridade de seu discurso em seu status de vítima das circunstâncias além de seu controle? Qualquer contato com outro ser humano é experimentado como uma ameaça potencial: se outros fumam, se lançam um olhar cobiçoso sobre mim, já me molestam. Hoje em dia, essa lógica de vitimização é universalizada, indo muito além dos casos de assédio sexual ou racial comuns. Relembrem a crescente indústria financeira de indenizações desde a indústria tabagista e os pedidos de ressarcimento financeiro das vítimas do Holocausto na Alemanha nazista até a ideia de que os Estados Unidos devem pagar centenas de bilhões de dólares aos Afro-Americanos por tudo de que foram privados devido à sua escravidão no passado. Essa noção de sujeito como uma vítima irresponsável envolve a perspectiva narcisista extrema, a partir da qual qualquer encontro com o Outro aparece como uma ameaça potencial ao equilíbrio imaginário e precário do sujeito. Como tal, não é o oposto, mas, antes, o complemento inerente do sujeito livre liberal. Na atual forma predominante de individualidade, a afirmação egocêntrica do sujeito psicológico se sobrepõe à percepção de si mesmo como vítima de circunstâncias.
Em um hotel de Skopje em que me hospedei não faz muito tempo, minha companheira indagou se era permitido fumar em nosso quarto. A resposta que recebeu do recepcionista foi épica: “Claro que não, é proibido pela lei. Mas você tem cinzeiros no quarto, portanto, isso não é problema.” Isso não foi o fim de nossas surpresas: quando entramos no quarto, realmente, havia um cinzeiro de vidro na mesa, e no seu fundo havia uma imagem pintada, um cigarro ao qual se sobrepunha um enorme círculo com um risco atravessado na diagonal, indicando a proibição. Portanto, não era o jogo habitual com que deparamos em hotéis tolerantes, onde lhe sussurram discretamente que, embora seja oficialmente proibido, você pode fazê-lo com cuidado, ficando ao lado de uma janela aberta ou algo assim. A contradição (entre proibição e permissão) foi abertamente assumida e, por meio disso, cancelada. Ou seja, a mensagem era: “É proibido, mas eis como você o faz.”
E, voltando ao despertar em curso: o perigo é que, de maneira homóloga, a ideologia da liberdade pessoal seja combinada sem esforço com a lógica de vitimização, com a liberdade silenciosamente reduzida à liberdade de manifestar a sua vitimização. Tal desenrolar tornaria supérflua a politização emancipatória radical do despertar, fazendo com que a luta das mulheres seja mais uma em uma série de lutas contra o capitalismo global e ameaças ecológicas, por uma democracia diferente, contra o racismo, e assim por diante.
[i] Devo esse ponto a Jela Krečič.