Por Vladimir Ilitch Lenin, via marxists.org, traduzido por Gabriel Landi Fazzio
O centralismo democrático é uma das mais importantes contribuições da práxis de Lenin à luta do proletariado revolucionário. Contudo, em meio aos mais de 45 volumes de textos que produziu ao longo da vida, utilizou o termo apenas um punhado de vezes. Em “Que fazer?” (em especial no capítulo 4, sobre “os métodos artesanais dos economicistas e a organização dos revolucionários”), Lenin abordou pormenorizadamente o tema da centralização organizativa sem jamais utilizar a famosa fórmula do “centralismo democrático”. É apenas em 1906, em meados do 4º Congresso do Partido Operário Social-Democrata da Rússia (o Congresso da Unidade, de 10 a 25 de abril de 1906) que o termo passa a ser utilizado por Ilitch em alguns documentos. [1]
Publicamos a tradução (no texto abaixo e nas notas de rodapé) de algumas contribuições de Lenin a respeito deste tema.
Em 11 de maio de 1906, 300 membros do POSDR do distrito Moskovsky, em São Petersburgo, realizaram uma reunião para discutir os resultados do Congresso da Unidade (4º Congresso do POSDR, de 10 a 25 de abril de 1906). Os relatórios foram feitos por Lenin (nenhum registro de seu relatório foi preservado) e o menchevique Dan. Perto do encerramento da reunião, surgiu uma controvérsia entre bolcheviques e mencheviques sobre se era permissível criticar as decisões do Congresso da Unidade na imprensa e nas reuniões públicas. Os mencheviques, que estavam fazendo o máximo para limitar a luta ideológica pelas decisões do Congresso, consideraram as críticas permissíveis apenas nas reuniões do Partido e propuseram uma resolução nesse sentido. Lenin propôs uma emenda dizendo que todas as decisões do Congresso deveriam ser discutidas não só nas reuniões do Partido, mas também na imprensa social-democrata e nas reuniões públicas. A resolução, incluindo a emenda de Lenin, foi aprovada por ampla maioria, com apenas 39 votos contrários. Em resposta, o Comitê Central, cuja maioria era menchevique, adotou posteriormente a resolução que Lenin critica no seguinte artigo.
Os editores [bolecheviques] receberam a seguinte comunicação, assinada pelo Comitê Central do POSDR:
“Em vista do fato de que várias organizações do Partido levantaram a questão dos limites dentro dos quais as decisões dos congressos do Partido podem ser criticadas, o Comitê Central, tendo em mente que os interesses do proletariado russo sempre exigiram a maior unidade possível nas táticas do POSDR, e que esta unidade nas atividades políticas das várias seções do nosso Partido é agora mais necessária do que nunca, é da opinião:
(§1) de que, na imprensa do Partido e nas reuniões do Partido, todos devem ter liberdade total para expressar suas opiniões pessoais e defender seus pontos de vista individuais;
(§2) de que, nas reuniões políticas públicas, os membros do Partido devem abster-se de conduzir agitação que contrarie as decisões do Congresso;
(§3) de que nenhum membro do Partido deveria em tais reuniões convocar a ações que contrariem as decisões do congresso, ou propor resoluções que não estejam de acordo com as decisões do congresso. ” (Todos os itálicos são nossos)
Ao examinar a substância desta resolução, vemos vários pontos estranhos. A resolução diz que “nas reuniões do Partido”, “liberdade total” deve ser permitida para a expressão de opiniões pessoais e críticas (§1), mas em “reuniões públicas” (§2) “nenhum membro do Partido deve convocar a ações que contrariem as decisões do Congresso”. Mas veja o que resulta disso: nas reuniões do Partido, os membros do Partido têm o direito de pedir ações que contrariem as decisões do Congresso; mas em reuniões públicas não lhes é “permitida” a liberdade total para “expressar opiniões pessoais”!!
Aqueles que elaboraram a resolução têm uma concepção totalmente errada da relação entre a liberdade de criticar dentro do Partido e a unidade de ação do Partido. A crítica dentro dos limites dos princípios do Programa do Partido deve ser bastante livre (lembramos ao leitor aquilo que Plekhanov disse sobre esse assunto no Segundo Congresso do POSDR) [2], não apenas nas reuniões do Partido, mas também nas reuniões públicas. Tal crítica, ou tal “agitação” (porque a crítica é inseparável da agitação) não pode ser proibida. A ação política do partido deve ser unida. Nenhuma “convocação” que viole a unidade de ações definidas pode ser tolerada tanto em reuniões públicas, como em reuniões do Partido ou na imprensa do Partido.
Obviamente, o Comitê Central definiu a liberdade de criticar imprecisamente e de forma muito estreita, e a unidade de ação de modo impreciso e amplo.
Vamos dar um exemplo. O Congresso decidiu que o partido deveria participar nas eleições da Duma. Participar de eleições é uma ação bem definida. Durante as eleições (como em Baku hoje, por exemplo), nenhum membro do Partido, em nenhum lugar, tem qualquer direito, seja qual for, para convocar o povo a se abster de votar; tampouco a “crítica” da decisão de participar das eleições pode ser tolerada durante esse período, pois de fato comprometeria o sucesso da campanha eleitoral. Antes de as eleições terem sido anunciadas, no entanto, os membros do Partido em todos os lugares têm o perfeito direito de criticar a decisão de participar nas eleições. Naturalmente, a aplicação deste princípio na prática, por vezes, dará origem a disputas e mal-entendidos; mas somente com base neste princípio todas as disputas e todos os mal-entendidos podem ser decididos de maneira honrada para o Partido. A resolução do Comitê Central, no entanto, cria uma situação impossível.
A resolução do Comitê Central é essencialmente errada e contradiz as Regras do Partido. O princípio do centralismo democrático e da autonomia das organizações partidárias locais implica uma liberdade universal e plena de crítica, desde que isso não perturbe a unidade de uma ação definida; exclui todas as críticas que perturbem ou dificultem a unidade de uma ação decidida pelo Partido.
Pensamos que o Comitê Central cometeu um grande erro ao publicar uma resolução sobre essa importante questão sem antes discuti-la na imprensa do Partido e nas organizações do Partido; tal discussão teria ajudado a evitar os erros que indicamos.
Apelamos a todas as organizações do Partido para que discutam esta resolução do Comitê Central agora e expressem uma opinião definitiva a respeito. [4]
Notas:
[1] Em maio de 1906, em seu balanço do Congresso, Lenin utiliza o termo associado à mesma problemática do artigo traduzido acima (grifos meus):
“Desentendimentos sobre a organização foram quase totalmente eliminados. Resta uma tarefa importante, séria e de extrema responsabilidade: realmente aplicar os princípios do centralismo democrático na organização do Partido, trabalhar incansavelmente para transformar as organizações locais nas principais unidades organizacionais do Partido, de fato, e não apenas no nome, e para mostrar-lhes que todos os corpos mais elevados são eleitos, responsabilizáveis e sujeito à revogação. Temos de trabalhar arduamente para construir uma organização que inclua todos os trabalhadores social-democratas com consciência de classe e viva a sua própria vida política independente. A autonomia de todas as organizações do Partido, que até então tem sido basicamente uma letra morta, deve se tornar uma realidade. A luta pelos postos [dos Comitês], o medo da outra ‘fração’, deve ser eliminada. Vamos ter organizações partidárias verdadeiramente unidas, nas quais haverá apenas uma luta puramente ideológica entre diferentes tendências do pensamento social-democrata. Não será fácil conseguir isso; nem vamos alcançá-lo de uma só vez. Mas a estrada foi mapeada, os princípios foram proclamados, e agora devemos trabalhar para a efetivação completa e consistente desse ideal organizacional.
(…) Devemos pedir a todos os membros do Partido que tomem uma posição consciente e crítica sobre essas resoluções. Precisamos garantir que toda organização de trabalhadores, depois de se familiarizar completamente com o assunto, declare se aprova ou desaprova qualquer decisão em particular. Se decidimos realmente e seriamente introduzir o centralismo democrático em nosso Partido, e se decidimos atrair as massas dos trabalhadores para a decisão inteligente das questões partidárias, devemos ter essas questões discutidas na imprensa, nas reuniões, nos círculos e nos encontros de grupos.
Mas, no partido unido, esta luta ideológica não deve dividir as organizações, não deve impedir a unidade de ação do proletariado. (…)
Liberdade de discussão, unidade de ação – é isso que devemos nos esforçar para alcançar. (…)
Mas além dos limites da unidade de ação deve haver a mais ampla e mais livre discussão e condenação de todos os passos, decisões e tendências que consideramos nocivas. Somente através de tais discussões, resoluções e protestos, a verdadeira opinião pública do nosso Partido pode ser formada. Somente nesta condição seremos um verdadeiro partido, sempre capaz de expressar sua opinião, e encontrar o caminho certo para converter uma opinião definitivamente formada nas decisões de seu próximo congresso.” [3]
[2] A referência de Lenin diz respeito à seguinte fala de Plekhanov, ao fim da 21a Sessão do II Congresso do POSDR (grifo meu):
“Plekhanov: Camaradas, o Partido do proletariado consciente, o Partido Social-Democrata Russo, agora tem seu programa. Objeções bastante numerosas foram feitas a algumas partes dele. Os camaradas com cujas objeções o congresso não concordou permanecem sujeitos à decisão da maioria. Os membros do nosso Partido são obrigados a aceitar o seu programa. Isso não significa, é claro, que um programa, uma vez adotado, não possa ser criticado. Nós já reconhecemos, e efetivamente reconhecemos e continuaremos a reconhecer a liberdade de crítica. Mas quem quiser permanecer como membro do nosso Partido deve permanecer, mesmo em suas críticas, no terreno do programa. Seja como for, o problema que nos ocupa há tanto tempo foi descartado, e podemos afirmar, com orgulho legítimo, que o programa que adotamos fornece ao nosso proletariado uma arma durável e confiável para a luta contra seus inimigos.”
[3] A nota da nota pode parecer um excesso de capricho, mas a verdade é involuntariamente vêm à mente mais duas breves citações, dignas de nota:
“Só as pessoas de visão acanhada ou temerosas de que as amplas massas participem da política, consideram improcedentes ou supérfluos os debates públicos e apaixonados sobre tática que se verificam constantemente.” Em “A unidade dos operários e as ‘tendências’ dos intelectuais”, de 13 de maio de 1914.
“O dever dos comunistas reside em não esconder as debilidades de seu movimento, mas criticá-las abertamente para livrar-se delas o mais cedo possível e de maneira mais radical.” Em “Teses sobre as tarefas fundamentais do II Congresso da Internacional Comunista”, de 4 de junho de 1920.
Ambos escritos estão reunidos em “O trabalho do partido entre as massas”, publicado em 1979 pela Livraria Editora Ciências Humanas.
[4] Mais adiante, em 1914, Lenin dirá a esse respeito, restringindo melhor a questão:
“A existência de duas imprensas rivais na mesma cidade ou localidade deve ser absolutamente proibida. A minoria terá o direito de discutir diante de todo o partido, desacordos com o programa, táticas e organização em um material de discussão publicado especialmente para esse propósito, mas não deverá ter o direito de publicar num jornal rival, pronunciamentos disruptivos das ações e decisões da maioria.”