Por Karel Kosik, tradução de Willians Meneses da Silva, revisão técnica de Filipe Boechat
O presente trabalho, publicado originalmente em L’Homme et la societé, n. 9, julho-setembro de 1968, Paris, foi traduzido para o espanhol por Fernando Crespo, Editorial Almagesto, Buenos Aires, 1991. A tradução para o português, que ora vem a público, feita a partir da tradução espanhola, foi cotejada com o original francês pelo revisor, o que permitiu algumas correções e a restituição de pequenos trechos, suprimidos pela tradução espanhola.
Contrariamente à prática corrente, que não toma as palavras ao pé da letra e não se entretém “inutilmente” com elas, nós nos interrogaremos sobre a relação entre os termos história e indivíduo a fim de determinar sua função específica. O indivíduo é indivíduo, mas, desde que entra em contato com a história, converte-se em um grande indivíduo criador da história ou em um simples indivíduo esmagado pela história. Desta maneira, a história aparece sob um aspecto diferente, segundo se trate do indivíduo histórico ou do simples ser humano. Isto significa que existem duas classes de história, uma para o indivíduo histórico e outra para o simples ser humano? O indivíduo histórico só é autêntico na medida em que cria a história e esta só é autêntica na medida em que aparece como resultado da atividade dos indivíduos históricos? É esta uma opinião extrema e temos que acreditar mais naqueles que põe acento sobre o que o grande indivíduo e o simples indivíduo têm em comum e veem na história um processo do qual todo mundo participa e que permite fazer valer as atitudes de cada um? O que entendemos por indivíduo e por história quando falamos sobre a relação entre história e indivíduo?
Esta relação parece evidente e o modo de conhecê-la parece ainda mais evidente: se sabemos o que é a história e o que é o indivíduo, haveremos descoberto, precisamente por isso, sua relação. Essa abordagem supõe que o indivíduo e a história são duas categorias que não dependem uma da outra; que podemos conhecê-las separadamente para buscarmos, em seguida, investigar em que medida estão ligadas uma à outra.
A relação entre a história e o indivíduo expressa-se mediante concepções contraditórias, uma afirmando que os grandes indivíduos criam a história e a outra que a história toma forma a partir de forças supra-individuais (“o Espírito universal” de Hegel, as “massas” dos populistas, as “forças produtivas” do marxismo vulgar). À primeira vista, estas duas posições parecem se excluir. No entanto, de fato, não somente têm muitos pontos em comum, como inclusive se condicionam e se interpenetram. Ambas coincidem, sobretudo, em considerar a criação da história como um privilégio que é dado apenas mais do que a alguns agentes eleitos, seja aos grandes indivíduos, seja a abstrações hipostasiadas. Segundo um destes pontos de vista, para que o homem possa intervir na historia, ele deve distinguir-se não somente dos simples indivíduos, como também daqueles que perseguem o mesmo fim, isto é, daqueles que querem fazer história, e sua grandeza histórica estará em função do grau de diferenciação que haja alcançado. Na perspectiva do grande individuo, os homens dividem-se em duas categorias: a primeira compreende a maioria deles e constitui a matéria da atividade histórica, figurando como simples objeto da historia; a segunda compreende os indivíduos que aspiram a um papel histórico, cada um dentre eles tornando em um inimigo potencial do outro. Os indivíduos históricos formam um mundo no qual cada um, em todos os domínios, se opõe a qualquer outro que atravesse seu caminho ou que seja suscetível de fazê-lo.
O indivíduo torna-se histórico na medida em que sua atividade particular tem um caráter geral, isto é, na medida em que consequências gerais decorram de sua ação. Como a história somente existe como continuidade, a teoria deve nos explicar se a história desaparece ou se ela se detêm nos períodos em que não há grandes indivíduos e nos quais “reina a mediocridade”. Se a atividade dos grandes indivíduos não se inscreve numa certa continuidade do processo e não é cocriadora desta continuidade, já não há mais história, e em seu lugar se instaura um caos feito de ações isoladas e incoerentes. Se se admite uma continuidade histórica, esta resulta, segundo esta concepção, da atividade dos grandes indivíduos, confrontada com a generalidade da história. O grande indivíduo pode negar verbalmente esta generalidade, o que não o impede de existir nem de depender dela, nem de reconhecê-la e de tornar-se seu representante consciente. A partir deste instante, o indivíduo apresenta sua atividade particular como uma manifestação direta do universal: é a história mesma que se realiza em seus atos, é o Ser mesmo que se exprime através de suas palavras. O grande indivíduo, que interviria, a princípio, como criador da história, converte-se agora em instrumento da história.
Esta concepção leva, pelas consequências que implica, ao que constitui, de fato, o ponto de partida da posição oposta. Para a teoria universalista o indivíduo torna-se um agente histórico se expressa corretamente, pela sua ação, as tendências ou leis das formações ou forças supraindividuais. A história é uma potência transcendental: o grande individuo pode acelerar seu processo ou conferir-lhe uma coloração histórica particular, mas ele não pode suprimir esta força, nem a modificar em sua essência. Por mais importante que seja o papel do grande indivíduo nesta concepção, sua missão apresenta dois aspectos verdadeiramente pouco invejáveis. Este indivíduo é um autômato histórico, fundando-se sobre um cálculo favorável do conhecimento (informação) e da vontade (ação) que constituem os elementos suficientes de sua função, todas as outras qualidades humanas sendo, desde a perspectiva de seu papel histórico, inúteis ou subjetivas. Segundo esta concepção, o grande individuo, isto é, o indivíduo histórico, não se identifica com o individuo desenvolvido universalmente, isto é, com a personalidade. Se o grande individuo cumpre na história uma função de aceleração e de coloração, surge uma segunda questão: sua existência não se tornará inútil ou antiquada no momento em que um “qualquer” ou “qualquer coisa” possa assumir essas duas funções de maneira mais eficaz e sem as contingências ligadas à existência individual? A concepção segundo a qual os grandes indivíduos são os realizadores particulares das leis universais deve implicar finalmente a ideia de que essas funções podem ser cumpridas de maneira mais segura e eficaz por instituições que, enquanto dispositivos mecânicos, não precisam mais do que indivíduos de valor mediano para fazê-las funcionar. Isto confirma a as predições de Schiller, Hölderlin e Schelling: “em tal instituição, nada tem valor senão na medida em que pode ser previsto e calculado com certeza. Consequentemente, nela só triunfam os que possuem a personalidade menos marcante, os talentos os mais ordinários, as almas que receberam a educação a mais mecânica, para a dominação e a direção dos assuntos”. A lógica desta teoria dos grandes indivíduos conduz à apologia dos indivíduos medíocres.
Um individuo pode ser grande, porém sua grandeza pode não provir de sua personalidade, de seu espírito ou de seu caráter, mas repousar sobre o poder; sua grandeza está contida no poder que, por alguma circunstância, um individuo particular dispõe e graças ao qual ele faz história. Um indivíduo que dispõe de um máximo de poder pode não possuir, ao mesmo tempo, um mínimo de individualidade.
Hegel e Goethe tinham razão ao proteger o herói, isto é, o grande indivíduo ou o indivíduo histórico, dos olhares de seus criados. Mas o criado não vê o grande individuo do ponto mais baixo da escala; sua opinião não é uma crítica plebeia, pois ele não é o oposto do herói, mas seu complemento. O herói necessita de um criado que possa ver e tornar públicas suas debilidades humanas, pois a sociedade compreende assim que ele continua humano, mesmo em suas funções históricas responsáveis e esgotantes. O grande indivíduo não é somente um herói, que se distingue dos outros por seus atos, mas é também um homem (ama as flores, joga cartas, se ocupa de sua família etc.) e, desde esse ponto de vista, ele não se distingue dos outros, segue sendo semelhante aos outros. Todavia, o que o olhar do criado transmite e que a opinião pública, desprovida de senso crítico, aceita como o rosto humano de um grande indivíduo, é, na realidade, uma degradação do humano ao nível do anedótico e do secundário: o humano aparece sob a forma de detalhes biográficos secundários, ou fazendo parte unicamente do domínio da vida privada.
O criado pertence ao mundo do grande indivíduo e seu olhar jamais pode ser crítico, mas, direta ou indiretamente, apologético, e consiste em contar ou em difundir “a pequena história”, em revelar segredos de bastidor, em murmurar e favorecer pequenas intrigas. Podemos assim compreender porque, nesta concepção, o ridículo, o cômico, o humor e a sátira existem sob uma forma anedótica e em segundo plano, e não tem direito nenhuma importância histórica. A história, pelo contrário, pertence ao domínio da seriedade, da abnegação e, como diz Hegel, os períodos de felicidade nela não aparecem a não ser excepcionalmente. Os criados podem contar anedotas de seus mestres, mas somente um olhar a partir de um outro mundo, inacessível aos criados, pode revelar o ridículo de um indivíduo histórico e apreender seu comportamento com uma comédia.
Estas duas concepções, por contraditórias que sejam nos detalhes, são incapazes de encontrar uma solução satisfatória à questão da relação do particular com o geral. Ou o geral é absorvido pelo particular, e a história torna-se não somente irracional, mas também absurda, na medida em que cada elemento particular assume a feição do geral e nela reinam, consequentemente, a arbitrariedade e a contingência; ou bem o particular é absorvido pelo geral, no sentido em que indivíduos não são mais do que instrumentos, a história é predeterminada e os homens somente a fazem aparentemente. Nesta concepção se manifesta nitidamente uma sequela da teoria teológica que considera a história como um andaime com a ajuda do qual se constrói um edifício; o andaime, caracterizado pela provisoriedade, é, por sua natureza ontológica, radicalmente distinto do edifício e, por isso, separável deste último, que tem o caráter da perenidade. Na concepção de Santo Agostinho, as “machinamenta temporalia” e as “machinae transiturae” são qualitativamente diferentes disso para o qual contribuem para a construção, isto é: illud quo manet in aeternum.
Se negamos as premissas metafísicas desta concepção, mas se retomamos, sob uma forma modificada ou velada, a ideia de uma diferença qualitativa ontológica entre o “andaime” (provisório) e o edifício (perene), chegamos em uma concepção bastarda de consequências práticas catastróficas. A enganação da história de Hegel engana a si mesma. Da excitação, do compromisso e do desgaste das paixões e interesses particulares, toma forma não um universal em estado puro, não maculado pelo particular, mas um universal no qual se interioriza o particular assim comprometido. O universal queria utilizar o particular como um instrumento para não se macular, mas na própria realização, pela própria realização, seu engano acaba enganado. Não podemos separar, do “edifício” da história, o “andaime” com o qual se construiu esse edifício. O particular e o universal se interpenetram, e o objetivo realizado, em certo sentido, é igual à soma dos meio utilizados.
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Os princípios do universal e do particular, pelos quais se exprimiam a relação da história e do indivíduo sob a forma antinômica petrificada, não são apenas abstrações que não podem delimitar o caráter concreto da história; são também princípios falsos e imaginários: não constituem o ponto de partida, ou a base (principium), do qual nasce o movimento e pelo qual a realidade torna-se explicável, mas, antes, graus ou etapas deduzidos e petrificados deste mesmo movimento. Com a evidenciação das insuficiências e contradições dessas duas concepções, começou-se a abrir caminho para uma certa dialética na qual a relação da história e do indivíduo não se exprimia mais sob uma forma antinômica, mas como um movimento no qual se constitui a unidade interna de seus dois termos. Este novo princípio é o princípio do jogo jogo ou da representação* {jeu}.**
A terminologia do jogo {jeu} e do teatro se encontra em todo estudo consagrado à história (por exemplo, termos como papel, máscara, ator, perder, ganhar etc.) e a ideia de considerar a história como uma representação teatral é corrente na filosofia clássica alemã, como mostra este trecho do “Sistema do Idealismo Transcendental” de Schelling: “Se representarmos a história como um teatro {jeu de théâtre}, onde cada um dos participantes representa {joue} seu papel de um modo completamente livre e segundo o que melhor lhe parece, então uma evolução racional só é pensável se supomos que é um Espírito quem compõe o papel de cada um, e que o Poeta, cujos elementos (disjecti membra poetae) são os diversos atores, fixou por antecipação o êxito objetivo do todo, com a livre atuação {jeu} de cada um, donde essa harmonia e o porquê de chegarmos finalmente a algo racional. Se, ao contrário, o Poeta permanece independente com respeito à sua obra, então nós não seríamos mais do que atores que executam o que ele compôs. Se o Poeta não é independente em relação a nós, mas somente se manifesta e se revela por meio da atuação {jeu} de nossa liberdade, de modo que ele não seria sem esta
liberdade, então nós somos os coautores desse conjunto poético e inventores, nós mesmos, do papel particular que representamos {jouons}”. [1]
Em “Miséria da Filosofia”, Karl Marx caracteriza a concepção materialista da história como um método que estuda “a história real, profana, dos homens em cada século” e “representa esses homens ao mesmo tempo como os autores e os atores de seu próprio drama. Mas, a partir do momento em que representamos esses homens como os autores e os atores de sua própria história, chegamos, por um desvio, ao verdadeiro ponto de partida…”. [2]
O jogo ou a representação {jeu}, enquanto princípio que realiza a unidade do indivíduo e da história, destrói em primeiro lugar os conceitos lineares e a abstração. Pelo jogo ou pela representação {jeu}, um nexo interno se estabelece entre elementos heterogêneos. O individuo e a história não são mais entidades independentes uma da outra, mas se interpenetram, pois tem uma base comum. O princípio de antinomia havia feito da ação sobre a história um privilégio, sem oferecer explicações para um grande número de fenômenos, arriscando deformá-los por construções arbitrárias, refutadas pela experiência. Em troca, a história como jogo ou representação {jeu} está aberta a cada um e a todos. A história é um jogo ou uma representação {jeu} em que participam as massas e os indivíduos, as classes e as nações, as grandes personalidades e os indivíduos medíocres. Ela é um jogo ou uma representação {jeu} na medida em que todos dela tomam parte e na medida em que contém todos os papéis, sem que ninguém esteja excluído. Todas as possibilidade se dão na história: aí se encontram o trágico, o cômico e o grotesco. Por isso, e a partir de agora, parece-nos errônea a visão que transforma o trágico na história em tragédia da história, ou o cômico na história em comédia da história, pois esta interpretação absolutiza um único aspecto da história, subestimando, além disso, a estreita relação dos diversos aspectos particulares com a história enquanto jogo e representação {jeu}.
Toda representação {jeu} (toda peça teatral) exige atores e expectadores; a primeira concepção prévia da história como jogo ou representação {jeu} é a relação entre um homem e outro, entre homens e outros homens, relação cujas formas essenciais expressam-se nos modelos gramaticais (eu-tu, eu-nós, eles-nós etc.) e cujo conteúdo concreto é determinado pela posição de cada um na totalidade das condições e situações
históricas e sociais (o escravo, o capitalista, o papa, o revolucionário etc.)
O conjunto das relações entre um homem e outro, entre um homem e a humanidade, pode converter-se em um jogo {jeu} se se cumpre a segunda condição prévia: cada jogador ou ator, com base no encontro ou enfrentamento de sua ação com a dos demais, deve poder, por um lado, saber (ou estar informado) sobre quem é o outro e que é ele mesmo; por outro lado, deve poder saber dissimular seus propósitos, mascarar seu rosto e, igualmente, ser enganado pelos outros. A relação dos homens na representação {jeu} se concretiza na dialética do conhecimento e da ação. O Indivíduo cumpre certo papel histórico no quadro de seus conhecimentos e de seu saber. Isso significa que o conhecimento é proporcional à ação, e que o indivíduo cumpre tanto melhor seu papel histórico quanto mais coisas ele sabe e conhece? A ação efetiva do individuo funda-se não somente na quantidade e qualidade da informação (conhecimento verdadeiro, conhecimento falso; informação verdadeira, verossímil ou duvidosa), mas também sobre uma certa interpretação dessa informação. Por essa razão, a eficácia da ação não está e não deve estar obrigatoriamente adequada à quantidade e à qualidade do conhecimento; é também por isso que atos irracionais podem se misturar a uma atividade racional. A relação entre ação e conhecimento realiza-se como cálculo e previsão, como anterioridade, atualidade ou atraso da informação e da ação, como conflito entre o previsto e o imprevisto. A terceira condição prévia da história como jogo ou representação {jeu} é a relação entre o passado, o presente e o futuro. Na concepção metafísica da história, o porvir está determinado quanto à sua essência e à sua generalidade, e permanece aberto e incerto somente em seus detalhes: é nesta esfera secundária, que não pode pôr em xeque ou suprimir o sentido fundamental predeterminado, que se exerce a atividade dos indivíduos, sejam eles importantes ou não. O princípio do jogo ou da representação {principe du jeu} infringe as regras desse determinismo metafísico, pois não considera que o porvir esteja constituído na essência e livre nos detalhes, mas o entende como uma aposta {enjeu}*** e um risco, como uma certeza e uma ambiguidade, como uma possibilidade que se introduz tanto nas tendências fundamentais como nos detalhes da história. O jogo {jeu} da história somente se constitui a partir do conjunto dessas três condições prévias ou elementos de base.
As mencionadas diferenças entre as concepções de Marx e Schelling residem, antes de tudo, no seguinte ponto: na concepção de Schelling, a história é, ao mesmo tempo, a aparência do jogo e o jogo das aparências, ao passo que, para Marx, a história é, ao mesmo tempo, um jogo {jeu} real e o jogo {jeu} da realidade. Para Schelling a historia está escrita antes de ser representada {jouée} pelo homem; é um jogo {jeu} diretamente prescrito, pois é apenas no interior de um tal jogo {jeu} que se joga [se joue] a liberdade de cada um (aus dem völig gesetzlosen Spiel der Freiheit, das jedes frei Wesen … für sich treibt) e que se pode constituir, finalmente, qualquer coisa de racional e de coerente. Esta predeterminação da história transforma o jogo {jeu} histórico em um falso drama e rebaixa os homens não somente ao nível de simples atores, mas também ao de simples marionetes. Ao contrário, em Marx o jogo {jeu} não está determinado antes que a história seja escrita, pois o curso e os resultados desta estão contidos no próprio jogo {jeu}, isto é, resultam da atividade histórica dos homens. Schelling teve que colocar fora da história, isto é, fora do jogo {jeu}, seu efetivo criador (a Providência, o Espírito) que garante a racionalidade da história: enquanto que, para Marx, a racionalidade da história só existe enquanto racionalidade na história e se realiza em sua luta contra o irracional. A história é um drama real: seu resultado, a vitória da razão ou do irracional, da liberdade ou da escravidão, do progresso ou do obscurantismo, não se adquire nunca por antecipação ou fora da história, mas unicamente na história e em seu desenvolvimento. Também o elemento da incerteza, do incalculabilidade, da abertura e do inacabamento que se apresenta para o individuo em ato sob a forma da tensão e do imprevisível, é um componente constitutivo da história real. A vitória da razão jamais é adquirida definitivamente: fosse de outra maneira, isso significaria a abolição da história. Cada época realiza uma luta pelo seu racional contra o irracional que lhe é próprio; cada época realiza por seus meios a passagem a um grau acessível do racional.
Este inacabamento da história confere ao presente sua verdadeira significação enquanto momento da escolha e da decisão e, ao mesmo tempo, devolve a cada individuo sua responsabilidade perante a história. Confiar na solução final do porvir, seja qual for, é fazer-se joguete {jouet} de uma ilusão ou de uma mistificação.
A história não comporta somente atores, mas também espectadores; o mesmo individuo pode tanto participar ativamente em um ato quanto se contentar em observar. Certamente, há diferenças entre os expectadores: há o que já jogou {joué} e perdeu, há o que não entrou no jogo e que o observa com a intenção de participar dele algum dia, e há aquele que é, a uma só vez, ator e expectador e que, enquanto participante, reflete sobre o sentido do jogo {jeu}. Há, com efeito, uma diferença entre considerações que incidem sobre o sentido do jogo {jeu} e uma reflexão sobre o modo de assimilar a técnica e as regras do jogo {jeu} para que este ganhe um sentido para quem o entendeu como sua própria oportunidade e a ocasião de fazer valer suas possibilidades.
Pode o individuo apreender verdadeiramente o sentido do jogo {jeu} que se desenvolve na história? É preciso sair da história para compreendê-la? Em outros termos, é preciso perder na história para descobrir nela sua verdade? Ou é necessário primeiro jogar {jouer} até o fim, o sentido da história aparecendo ao individuo apenas na morte, diante da morte que se converte, assim, em um momento privilegiado de desvelamento da verdade? Doze anos após o fim da Revolução Francesa, Hegel escreveu suas notas sobre as causas da queda de Robespierre: [só] “a necessidade advém, mas cada elemento da necessidade só se atribui aos indivíduos. O primeiro é acusador e defesa, o segundo é juiz, o terceiro é carrasco, mas todos são necessários”. A necessidade hegeliana, todavia, é mistificadora, pois introduz uma aparência de unidade aí onde há litígio; ela dissimula a significação dos papéis individuais e identifica o jogo {jeu} como um jogo {jeu} previamente combinado. A história não é uma necessidade em ato, mas um ato no qual se interpenetram necessidade e contingência e no qual mestres e escravos, carrascos e vítimas não são elementos da necessidade, mas fatores de uma luta cujo resultado jamais é obtido por antecipação e no curso do qual jogam {jouent} seu papel a mistificação e a desmistificação. Ou bem as vítimas compreenderão o jogo dos carrascos, os acusados o dos juízes e os hereges o dos inquisidores, como sendo um jogo falso, e recusarão desempenhar {jouer} o papel que lhes foi atribuído, destruindo por isso mesmo o jogo {jeu}, ou bem simplesmente não compreenderão. Nesse caso, elas se submeterão a um jogo {jeu} que lhes priva não apenas de sua liberdade, mas também de sua independência; elas julgarão sua própria ação e considerarão sua própria existência com os olhos de seus companheiros de jogo {jeu}, expressando esta capitulação e esta derrota mediante fórmulas pré-estabelecidas, como: “Sou um judeu sujo”. Como fazem e falam enquanto prisioneiros dos jogadores do campo oposto, não ultrapassaram o horizonte destes últimos, e os futuros observadores poderão pensar que eles terão jogado {joué} um jogo {jeu} combinado.
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A concepção da história como jogo ou representação {jeu} permite resolver toda uma série de contradições que tem causado o falência dos princípios antinômicos; ela introduz na relação da história e do indivíduo a dinâmica e a dialética, fazendo explodir os limites do entendimento unidimensional e estabelecendo que a história é um processo pluridimensional; mas tal solução do problema ainda não é satisfatória. Por um lado, não convém identificar a história como jogo {jeu} com o jogo {jeu} em geral, pois o jogo {jeu} da história se distingue daquele em numerosos momentos determinantes. Por outro lado, o princípio do jogo {jeu} pode servir para explicar não apenas a história, mas também o ser e a existência do homem. Além disso, precisamos elucidar a seguinte questão: em razão de que o jogo {jeu} pode tornar-se o princípio que determina e demonstra a dialética da história? Em outras palavras, há que se perguntar se, neste princípio, a dialética da história aparece por inteira e de maneira adequada, e se o jogo {jeu} é então o princípio efetivo da história, se é sua fonte, sua origem e seu fundamento.
O individuo apenas se torna histórico quando entra na história ou é lançado sobre ela, ou bem a história só aparece como consequência da atividade dos indivíduos? Nesse caso, resultaria isto: o individuo em ato estaria na origem da história, a história nascendo do caos das ações individuais e definindo-se como legislação de uma continuidade independente de cada individuo particular; a história se constituindo em relação a ele só depois. O individuo somente é histórico enquanto objeto da história, isto é, na medida em que é condicionado (determinado) por sua situação na ordem do tempo, nos contextos histórico, cultural e social. [3] Em segundo lugar, pode-se dizer que a história aparece e intervém, ela mesma, como um objeto; isto é, enquanto produto das ações individuais a partir das quais surge “o processo objetivo regido por leis cognoscíveis que chamamos de história”. [4] Reduzir a história a um objeto, isto é, a um processo objetivo tendo leis particulares e se constituindo a partir do caos das ações individuais e ao que vem se somar ora grandes individualidades que lhe servem de instrumento, ora simples indivíduos enquanto componentes deste último, significa que se introduz no fundamento mesmo da história um tempo reificado. A reificação dos tempos na concepção da história manifesta-se, por um lado, como supremacia do passado sobre o presente, da história escrita sobre a história real e, por outro lado, como absorção dos indivíduos pela história. A história enquanto ciência incidindo sobre a história interessa-se pelos atos acabados, terminados, pelos acontecimentos que ocorreram. Se a história existe como objeto de uma ciência e na perspectiva de um historiador do passado, isto não quer dizer, entretanto, que a história efetiva tenha ela também apenas uma única dimensão temporal ou que uma única dimensão temporal defina o tempo concreto da história. O acontecimento histórico que o historiador estuda
enquanto passado e que ele conhece, consequentemente, o desenvolvimento e as consequências, desenvolveu-se de tal maneira que suas consequências eram desconhecidas por seus participantes e que o porvir estava presente em sua ação enquanto plano, surpresa, espera e esperança; isto é, enquanto inacabamento da história. As leis que regem os processos objetivos da história são leis (continuidades) de atos acabados e passados que já perderam seu caráter ativo, fundado sobre a unidade das três dimensões do tempo, para reduzir-se a uma só dimensão: aquela do passado. Suas leis não constituem, pois, mais que um quadro geral e, nesse sentido, correspondem a uma história abstrata (abs-tracta), isto é, a uma história que perdeu seu caráter essencial, ou seja, sua historicidade.
O princípio do jogo {jeu} pôde pôr em causa a metafísica das concepções antinômicas e revelar a dialética da história, pois fazia pressentir que na própria base da história se encontra a noção do tempo em três dimensões. Os limites deste princípio residem no fato de que é incapaz de dar conta de sua descoberta e não pode, por isso, estabelecer que o jogo {jeu} mesmo tenha uma estrutura temporal fundada sobre o caráter tridimensional do tempo concreto.
A relação entre a história e o indivíduo não está contida apenas na pergunta: o que pode fazer o indivíduo na história? Também levanta o problema daquilo que pode fazer a história do (com o) indivíduo. A história tende a favorecer, por sua evolução, o desenvolvimento da personalidade ou leva, ao contrário, à generalização do anonimato e do impessoal? Pode o individuo intervir na história ou sua possibilidade de inciativa e de atividade só se manifesta em favor das instituições?
Marx e Luckacs refutam a ilusão romântica segundo a qual haveria na história certos domínios privilegiados que estariam ao abrigo do processo de reificação. Esta ilusão petrifica a separação da realidade em duas: de um lado, uma esfera autêntica mas historicamente impotente da poesia, da natureza idealizada, do amor, da infância, da imaginação e do sonho; do outro lado, um real reificado, no quadro do qual se desenvolvem ações socialmente importantes. Ela cria, assim, a aparência de que esses domínios privilegiados escapam à reificação e são, como consequência, automaticamente os únicos refúgios da vida autêntica. Todavia, como essa crítica não ligava logicamente a historicidade ao indivíduo, e como o descobrimento filosófico mais importante de Marx, a noção de práxis, era entendido mais como a substância social fora do individuo do que como estrutura do individuo mesmo e de cada indivíduo em particular, a análise da reificação da sociedade industrial moderna em sua relação com o indivíduo encontrava-se confrontada com consequências lógicas inversas àquelas que ela visava.
A crítica que revelou a despersonalização e a desintegração do indivíduo na sociedade moderna e sua trágica situação entre o possível e o real, fazendo ressaltar, com muita razão, que unicamente a revolução, enquanto ação coletiva, podia anular a reificação, tem omitido, contudo, a indicação do que deve fazer o individuo enquanto a reificação exista. Esta crítica tem constatado que a realidade objetiva é, para o indivíduo, um complexo de elementos acabados e imutáveis que ele pode aceitar ou negar, e tem conferido a uma única classe social a possibilidade de mudar esta realidade. Certamente,
subentende-se que o indivíduo não pode suprimir esta realidade reificada, mas isso não quer dizer, contudo, que o indivíduo se defina em primeiro lugar em função da realidade reificada ou que exista unicamente enquanto objeto de um processo reificado. Pela redução do indivíduo a um simples objeto da reificação, a história se esvazia de todo o conteúdo humano para não ser mais do que um esquema abstrato. Os momentos existenciais da práxis humana, como o riso, a alegria, o medo e todas as formas da vida em comum, cotidiana e concreta, como a amizade, a honra, o amor, a poesia, são rejeitados como ações e acontecimentos históricos quando são admitidos como assuntos “privados”, “individuais” ou “subjetivos”, ou bem se convertem em simples instrumentos funcionais, no quadro de uma dependência simplista que os faz objetos de uma manipulação (manipulação da honra, da coragem etc.).
De fato, o homem somente pode existir como individuo, o que não significa que cada individuo seja uma personalidade ou que um individuo que advogue o individualismo não possa viver da vida das massas. E, do mesmo modo, o caráter social do individuo não é uma negação da individualidade, como o pertencimento à comunidade humana não pode ser identificado com o anonimato impessoal. Se o individualismo é a prioridade do individuo sobre o todo e o coletivismo a submissão do indivíduo aos interesses do todo, então parece que estas duas formas são idênticas em um ponto: ambas privam o indivíduo da responsabilidade, o individualismo porque o homem, enquanto individuo, é um ser social; o coletivismo porque o homem, mesmo no seio de uma coletividade, é um individuo.
Há uma diferença fundamental se o homem, enquanto individuo, é dissolvido nas relações sociais e privado de seu próprio rosto, de modo que as relações sociais hipostasiadas utilizam os indivíduos, anônimos e uniformizados, como seus instrumentos (e, nesse caso, esta inversão aparece como a hegemonia da sociedade superpoderosa sobre o individuo impotente), ou se o individuo é sujeito de relações sociais e se desloca livremente como num meio humano e humanamente digno de homens munidos de um rosto, isto é, de individualidades. A individualidade do indivíduo não é um anexo ou uma resto racional inexplicável que permanece depois que tenhamos cortados do indivíduo suas relações sociais, sua situação histórica etc. Se ao retirarmos do indivíduo sua máscara social não houver nada debaixo dessa máscara, nada de individual, esta privação não prova nada além da ausência (de valor) de individualidade, mas em absoluto a inexistência desta última.
O individuo só pode intervir na história, isto é, nos processos e nas leis de continuidade objetiva, porque ele já é histórico, e isso por duas razões: porque se encontra sempre sendo de fato o produto da história e, ao mesmo tempo, é potencialmente o criador da história. A história não é isso que se acrescenta ao individuo unicamente no momento de sua entrada na história ou de sua atração pela história, mas a condição previa da existência da historia, enquanto a história é objeto e lei da continuidade. Todos os indivíduos se beneficiam da historicidade; ela não é um privilegio, mas um elemento constitutivo da estrutura do ser do homem, que nós chamamos práxis. Não poderíamos, em absoluto, projetar a história como forma objetiva e os acontecimentos históricos na vida do homem se o individuo não possuísse um elemento de historicidade. A historicidade não impede o homem de converter-se em vítima dos acontecimentos ou em um joguete {jouet} no jogo {jeu} das condições sociais e das contingências: a historicidade não exclui a contingência; ela a implica. Da mesma forma, a historicidade não significa que todos os homens poderiam ser grandes homens e que, se não o são, isso se deve unicamente “às consequências de circunstâncias particulares”, nem que, no porvir, depois da supressão da reificação, todos poderiam converter-se em grandes homens.
A historicidade do homem não reside na faculdade de evocar o passado, mas no fato de integrar à sua vida individual traços comuns ao humano em geral. O homem enquanto práxis já está penetrado pela presença dos outros (seus contemporâneos, precursores e sucessores), e ele recebe e transforma esta presença, seja conquistando sua independência, e com ela seu próprio rosto e sua personalidade, seja perdendo sua independência ou não a alcançando. A independência significa estar em pé não de joelhos (a posição natural do ser humano é ficar em pé e não ajoelhado); em segundo lugar, é ter seu próprio rosto sem esconder-se atrás de uma máscara emprestada; em terceiro lugar, é a coragem e não a covardia. Mas a independência significa também, em quarto lugar, ser capaz de recuar em relação a si mesmo e em relação ao mundo em que vivemos, de poder sair do presente e da inserção deste presente na totalidade histórica, para poder distinguir neste presente o particular do geral, o contingente do real, o bárbaro do humano, o autêntico do inautêntico.
O tão conhecido debate sobre se um revolucionário aprisionado pode ser livre e se é mais livre que o seu carcereiro sustenta-se sobre um mal-entendido. O fundo da querela é uma ausência de distinção entre a liberdade e a independência. Um revolucionário aprisionado está privado de sua liberdade, mas pode salvaguardar sua independência.
A independência não significa fazer o que os outros fazem, mas não significa tampouco fazer qualquer coisa sem levar em consideração os outros. Ela não significa que não dependemos em nada dos demais ou que nos devemos nos isolar. Ser independente é ter com os demais uma relação de tal ordem que a liberdade possa aí se produzir, isto é, realizar-se nela. A independência é a historicidade: é um centro ativo onde se interpenetram o passado e o porvir; ela é uma totalização na qual se reproduz e se anima no particular (o individual) isso que é comum ao humano.
O individuo só pode transformar o mundo em colaboração e em relação com os outros. Mas mesmo no quadro de uma realidade reificada como no quadro de um desejo de transformação da realidade, ou no quadro da transformação realmente revolucionária da realidade, cada indivíduo enquanto tal tem a possibilidade de expressar sua humanidade e de conservar sua independência.
Compreende-se, neste contexto, porque o objetivo das mudanças de estrutura da sociedade e o sentido da práxis revolucionária não são, para Marx, nem o grande escritor, nem o Estado forte, nem um potente império, nem um povo eleito, nem uma próspera sociedade de massa, mas “… o desenvolvimento de uma individualidade rica, tão universal em sua produção como em seu consumo, e onde o trabalho não apareça mais como trabalho, mas como pleno desenvolvimento da atividade: sob sua forma imediata, a necessidade natural terá desaparecido, porque em seu lugar terá surgido uma necessidade produzida historicamente”. [5]
“… É, por conseguinte, o livre desenvolvimento das individualidades. Não se trata, a partir desse momento, de reduzir o tempo de trabalho necessário para desenvolver o sobretrabalho, mas de reduzir, em geral, o trabalho necessário da sociedade a um mínimo. Ora, esta redução supõe que os indivíduos recebam uma formação artística, científica etc., graças ao tempo liberado e aos meios criados em benefício de todos”. [6]
Notas
[1] Schelling: Werke, Munique, vol. II, pág. 602.
[2] K. Marx, Misère de la Philosophie, Ed. Sociales, pág. 124.
[3] É nesse sentido que Dilthey, entre outros, entendem a historicidade do indivíduo. Consultar Ges. Schriften, vol. VII, pág. 135.
[4] Lukacs, Existentialisme ou marxisme., Paris, 1948, pág. 150.
[5] Karl Marx, Fondements de la critique de l’économie politique (Grundrisse), Ed. Anthropos, Paris, volumen I, pág. 273.
[6] Idem, vol. II, pág. 222.
*Nota do tradutor espanhol: a palavra francesa jeu significa tanto jogo como representação teatral. O autor a utiliza indistintamente em ambos sentidos. Para não perder de vista esta circunstância, optamos por traduzir em cada caso segundo o contexto, agregando entre parênteses a palavra em francês.
**Nota do tradutor brasileiro: Optamos por traduzir jeu ao mesmo tempo por jogo e representação (teatral), de forma a manter sempre presente a ambivalência do termo. Somente em alguns casos mantivemos o critério do tradutor espanhol, com a diferença de que reproduzimos o texto original sempre entre chaves para evitar a confusão com os parênteses e colchetes introduzidos pelo autor ao longo do texto.
***Nota do tradutor brasileiro: ao definir o porvir (em francês, l’avenir) como palavra francesa “enjeu” significa tanto jogo como representação teatral. O autor a utiliza indistintamente em ambos sentidos. Para não perder de vista esta circunstância, optamos por traduzir em cada caso segundo o contexto, agregando entre parênteses a palavra em francês.