Por Kommunistsche Organisation (KO); via Pelo Antimperialismo, traduzido por Vinícius Okada M. M. D’Amico
Representantes do capital e sua esquerda argumentam que deve haver uma distinção entre emprego remunerado e segurança dos meios de subsistência. Devido à perda de empregos, não seria mais possível satisfazer as necessidades das pessoas através de empregos remunerados. A seguridade social deveria ser garantida através de uma renda básica incondicional vinda do dinheiro dos contribuintes e não mais a partir de salários. Mas o interesse básico dos trabalhadores é o de reduzir as horas de trabalho necessárias para todos e aumentar as horas de lazer para todos. Isso só pode ser conseguido através da luta coletiva contra o capital e seu estado.
A pandemia de coronavírus está associada a perdas severas para a classe trabalhadora. Muitas pessoas afetadas por jornadas reduzidas, mas também pequenos empreendedores e desempregados enfrentam a pobreza, outros o risco de perderem seus empregos. De acordo com uma pesquisa da Ifo, 18% das companhias alemãs planejam cortar empregos ou não prorrogar contratos de duração determinada [1]. De março a abril, o número de desempregados aumentou de maneira particularmente abrupta com mais de 300 mil novos registros. No geral, o número oficial de desempregados na Alemanha é de mais de 2,6 milhões [2]. É sabido de longa data que essas cifras não são calculadas corretamente. O número real gira em torno de 3,5 milhões de desempregados [3].
Desde o surto da pandemia de coronavírus, a discussão sobre a renda básica incondicional [BGE, Bedingungslose Grundeinkommen, acrônimo alemão] está novamente em balanço. De acordo com uma pesquisa da INSA [4], 51% dos alemães são a favor da BGE. Uma petição chamada para a implementação da BGE é “a petição online de maior sucesso já endereçada para o Bundestag” [Parlamento Federal Alemão] com 176,134 assinantes [5], [6]. Muitos associam a BGE com a esperança de superar seus medos de existência e seu isolamento.
À primeira vista, o que parece um presente acaba por ser um instrumento dos governantes para aumentar seus lucros e conter a classe trabalhadora. Para entender como esse instrumento funciona, nós precisamos analisar a produção capitalista de mercadorias e o sistema salarial.
Exploração, salários e reprodução
A produção capitalista de mercadorias é baseada na contradição entre capital e trabalho. Trabalhadores querem mais salários e tempo livre possíveis, os capitalistas querem os maiores lucros possíveis. O trabalhador vende sua força de trabalho para o capitalista e produz mercadorias para ele. O capitalista paga ao trabalhador uma fração do valor dessas mercadorias como salário e se apropria da maior parte, o excedente, de maneira privada. O capitalista obtém o lucro a partir desse mais-valor. Os salários pagos ao trabalhador devem ser pelo menos suficientes para seus custos reprodutivos – ou seja, ele deve ser capaz de comprar os alimentos que precisa para manter seu trabalho. Para o capitalista ter trabalhadores suficientes à sua disposição, eles precisam ter alimentos o suficiente para sobreviverem, mas também para criar seus filhos, para que possam seguir novos trabalhadores. Se os salários caem abaixo do custo de reprodução do trabalho, a produção de mercadorias e portanto os lucros dos capitalistas não são mais garantidos.
Como os salários estão parcialmente abaixo desse limite, o Estado deve entrar em ação e subsidiar os salários dos trabalhadores. Esse é o propósito do subsídio parental por exemplo, ou dos rendimentos cada vez mais baixos dos Centros de Emprego. O capitalista pode então dar aos trabalhadores uma menor parte do valor produzido e assim aumentar seu lucro. Isso é financiado pelos contribuintes ‘dinheiro que é pago em grande parte pelos trabalhadores’, de seus salários. Com esse subsídio a partir do dinheiro dos contribuintes, os capitalistas adquirem indiretamente parte dos salários dos trabalhadores.
Os representantes da BGE
A discussão sobre renda básica incondicional não é nova. Na Alemanha, desenvolveu-se com a introdução das leis de Hartz em meados dos anos 2000. Defensores da BGE podem ser achados desde as elites empresariais reacionárias até o espectro comunista. Mesmo que os modelos propostos difiram, a ideia básica segue sendo a mesma: um montante fixo para todos sem meios funciona como um componente elementar da seguridade social. Quer a BGE deva servir como suplemento ao seguro social existente ou como um substituto, quem deve receber, quão alto deve ser fixado e a partir de quais fundos a BGE deve ser financiada são os parâmetros principais de diferenciação entre os diferentes modelos.
Está claro que os fundos para a BGE devem vir da produção de mercadorias através do trabalho humano, já que no capitalismo esta é a única maneira de se criar valor. A BGE deve, portanto, ser paga ou dos salários dos trabalhadores ou dos lucros dos capitalistas.
Apoiadores do lado capitalista estão propondo financiar a BGE através de impostos maiores nos bens de consumo cotidianos. Eles incluem o chefe da DM Götz Werner, mas também investidores de grandes bancos ou gerentes de fundos especulativos. Estão comprometidos em pagar os custos da BGE a partir dos salários e não dos lucros. É uma questão de introduzir um subsídio salarial que é pago pelos próprios trabalhadores, similar ao subsídio parental. Se o modelo empresarial for seguido, a implementação da BGE também pretende acabar com o estado de bem-estar social. As pessoas assim teriam de cuidar da saúde e da previdência por meios privados.
A BGE seria, portanto, um medida bem-vinda para partes do capital. Visto que, no capitalismo, o aumento das forças produtivas sempre é acompanhado pela liberação de trabalho humano. Mas já que mais-valor só pode ser gerado a partir do trabalho humano, lucros diminuem quando menos trabalho humano é utilizado na produção. Para manter os lucros estáveis, os salários devem ser reduzidos. A BGE pretende assegurar que a reprodução da força de trabalho siga garantida enquanto os salários são continuamente reduzidos.
Os defensores da BGE na esquerda argumentam que ela permitiria às pessoas viverem independentemente já que trabalho não pago seria recompensado com a BGE. Além disso, um nível suficientemente alto de serviços básicos fortaleceria a posição dos trabalhadores vis-à-vis a dos capitalistas, o que resultaria em melhores condições de trabalho e redução geral das horas de trabalho. Várias medidas de acompanhamento são propostas para que a BGE não possa ser usada pelos capitalistas para redução de salários e desmantelar o estado de bem-estar social. Essas incluem um sistema de saúde que garanta acesso universal gratuito, educação gratuita, transporte público gratuito, regulação do mercado imobiliário, salário mínimo nacional e um sistema tributário que transfira o peso tributário aos ricos. O Partido Comunista Austríaco (KPÖ), por exemplo, quer financiar a BGE através de uma “redistribuição radical da riqueza social existente” [7]. Como essas medidas deveriam ser implementadas tendo em vista a atual correlação de forças ainda não está claro. Contudo, está claro que qualquer pequena lacuna nas leis dessas medidas de acompanhamento teria como resultado a BGE ser usada como uma arma do capital contra a classe trabalhadora.
BGE: situação vantajosa para todos?
Muitos apoiadores, incluindo a esquerda, apresentaram a BGE como uma situação vantajosa para todos, capitalistas e trabalhadores. Afirma-se que a BGE fortalece os direitos dos trabalhadores ao mesmo tempo que auxilia empresas. Trabalhadores estão seguros e não tem mais que aceitar qualquer emprego, empresas podem planejar de modo mais flexível e racionalizar sua produção porque estão liberadas de seus deveres como empregadores. Mas essa ideia ignora a contradição insolúvel entre capital e trabalho. Ambos os lados possuem conflitos de interesses. Não pode haver uma solução que beneficie ambos os lados. Ou os direitos dos trabalhadores é restringido e os capitalistas aumentam seus lucros, ou os trabalhadores lutam por uma parte do mais-valor às custas dos capitalistas.
A BGE normalmente é estruturada pela ideia de se pode avançar gradualmente rumo a uma “sociedade liberada” através da influência parlamentar sob o estado. O conceito do partido A Esquerda [Die Linke em alemão], por exemplo, enxerga a si mesmo enquanto “uma proposta por uma transformação sócio-ecológica rumo a uma sociedade que tenha superado as relações capitalistas e patriarcais de poder” [8]. A ATTAC [Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos, do inglês Association for the Taxation of Financial Transactions and for Citizens’ Action] enxerga a BGE como um “bloco de construção no processo de transformação em vista de criar uma vida de qualidade para todos” [9]. A ideia de que as contradições básicas do capitalismo podem ser resolvidas através do programa de reforma do estado desconsidera o caráter de classe do estado e contradiz o fato de que o estado serve primordialmente ao capital e não ao povo. Esperar um ataque extensivo sobre os capitalistas a partir desse estado é pura poeira nos olhos. A demanda por uma BGE não é somente uma expressão das ilusões para com o estado, mas também é claramente querer desarmar a classe trabalhadora privando-a de um meio importante de reivindicar seus interesses.
Ao mesmo tempo, a ideia se serve de que um capitalismo humano e pacífico é fundamentalmente possível. Mas as contradições do capitalismo em seu estágio imperialista estão necessariamente ligadas a sua existência. Dadas as guerras destrutivas que o imperialismo está travando mundo afora e a segurança repressiva que está organizando internamente, ideias de uma capitalismo humano são ilusórias e contribuem para a desorientação da classe trabalhadora.
Dissociando trabalho e salário
Representantes de ambos, do capital e apoiadores de esquerda, argumentam que deve haver uma distinção entre emprego remunerado e segurança dos meios de subsistência. Devido a perda de empregos, não é mais possível satisfazer as necessidades das pessoas através de empregos remunerados. A seguridade social deveria portanto ser garantida através de uma renda básica incondicional vinda do dinheiro dos contribuintes e não mais a partir de salários. A Rede pela Renda Básica, que também inclui ATTAC e Katia Kipping (membra do parlamento alemão, A Esquerda), argumenta que a BGE beneficiaria não somente os “trabalhadores” mas também empregadores, na medida que garantiria “mais autonomia para empresários aliviarem suas responsabilidades enquanto empregadores” [10]. É justamente essa dissociação que permite aos capitalistas manter as reduções salariais e uma pressão central contra a classe trabalhadora.
Os capitalistas não irão, por bom senso, melhorar as condições de trabalho das massas trabalhadoras. Para pressionar por uma melhora real, a pressão deve ser colocada contra os capitalistas atacando seus lucros. Para isso, as massas de trabalhadores devem se organizar e convocar greves nas fábricas onde os lucros são realizados. Permitir os capitalistas, através da BGE, que tornem as relações empregatícias mais flexíveis é uma contradição a esse objetivo.
A BGE deve, supostamente, resolver todos os problemas como um salvador universal e acaba por ser o desejo para reformar o capitalismo até que este perca sua forma humana. Mais que isso: sob a atual correlação de forças, a BGE será utilizada como um instrumentos pelos capitalistas contra a classe trabalhadora e seus aliados e, por essa razão, não oferece uma solução de curto prazo para a crise do coronavírus. Ao contrário, nós deveríamos lutar por medidas que não são tão facilmente voltadas contra a classe trabalhadora.
O que deveríamos reivindicar
O interesse básico dos trabalhadores é o de reduzir as horas de trabalho necessárias para todos e aumentar as horas de lazer para todos. Isso só pode ser conseguido através da luta coletiva contra o capital e seu estado. Uma reivindicação básica da classe trabalhadora é, portanto, a redução das horas de trabalho com salário pleno e compensação de funcionários. Contudo, os salários comumente mal são suficientes para se viver. Enquanto os aluguéis estão aumentando em muitos lugares, quase um quarto da força de trabalho está empregada nos setores de baixos salários [11]. Isso significado que muitos tem que trabalhar excessivamente por abaixo de 2000 euros bruto. Portanto, a demanda por salários maiores está na ordem do dia. Bem como a abolição dos contratos de tempo determinado, contratos temporários e trabalhos temporários, mas também seguridade básica digna para desempregados está nos interesses da classe trabalhadora e deveria ser reforçada numa luta comum. Porque devido ao desemprego sem seguridade e muitas pessoas desempregadas que estão incertas sobre as inseguranças de sua existência, a classe trabalhadora pode ser chantageada e suas condições de luta deterioradas.
Toda luta por melhorias deve nos treinar para nos organizarmos contra os inimigos da classe trabalhadora e afiar nossas demandas. Não devemos ter nenhuma ilusão: o capital e seu estado não irão nos ajudar. Temos de lutar por melhorias nós mesmos. A longo prazo, somente o socialismo oferece a oportunidade de resolver os problemas da classe trabalhadora e seus aliados.
Referências
[1] https://www.handelsblatt.com/politik/konjkonom/nachrichten/april-umfrage-ifo-fast-ein-fuenftel-der-deutschen-fFirmen-plant-stellenabbau-wegen-coronakrise/25765986.html?ticket = ST-540128-gcb5lAGTEp0H3valJV50-ap4
[2] https://www.arbeitsagentur.de/presse/2020-27-der-arbeitsmarkt-im-april-2020
[3] https://www.die-linke.de/themen/arbeit/tatsaechliche-arbeitslosigkeit/2020/
[4] https://epetitionen.bundestag.de/petitionen/_2020/_03/_14/Petition_108191.nc.html
[5] https://www.tag24.de/berlin/politik-wirtschaft/online-petition-bundestag-bedingungsloses-grund-income-bge-susanne-wiest-1496934
[6] https://www.bz-nachrichten.de/insa-sonntagsfrage-was-waere-wenn-am-sonntag-der-bundestag-gewaehlt-worden-waere-und-wollen-die-deutschen-ein-bedingungsloses-grundeinkommen/
[7] http://www.kpoe.at/sozialpolitik/grundeinkommen/2019/es-ist-genug-fuer-alle-da
[8] https://www.die-linke-grundeinkommen.de/fileadmin/lcmsbaggrundeinkommen/PDF/NeufassungBGE_dinA5_06maerz.pdf
[9] https://www.attac.at/fileadmin/user_upload/aktivistInnen/grundeinkommen/allgemein/BGE_Positionspapier.pdf
[10] https://www.grundeinkommen.de/grundeinkommen/idee
[11] https://www.linksfraktion.de/themen/a-z/detailansicht/niedrigloehne/
1 comentário em “Por que o chamado por uma renda básica incondicional é enganoso”