Kant e Sade: o casal ideal

Por Slavoj Žižek, via Lacanian Ink, traduzido por Matheus Cornely

De todos os casais na história do pensamento moderno (Freud e Lacan, Marx e Lenin), Kant e Sade é, possivelmente, o mais problemático: o enunciado “Kant é Sade” é o “juízo infinito” da ética moderna, pondo o sinal da equação entre esses dois opostos radicais, ou seja, afirmando que o sublime ato ético desinteressado é, de algum modo, idêntico à ou sobreposto à desenfreada indulgência na violência prazerosa. Muita coisa – tudo, talvez – está em jogo aqui: existiria uma linha que vai da ética formalista kantiana à máquina apática de matar de Auschwitz? Seriam os campos de concentração, assassinatos e genocídios, enquanto negócios neutros, o resultado inerente da insistência iluminista na autonomia da Razão? Existiria uma legítima linhagem de Sade até as torturas fascistas, como está implícito na adaptação de Saló feita por Pasolini, que transpõe a narrativa para os dias obscuros da república de Mussolini? Lacan desenvolveu essa primeira relação no seu primeiro seminário sobre A Ética da Psicanálise (1958-59) [1] e, então, no texto Kant com Sade, nos seus Escritos, em 1963 [2].

1.

Para Lacan, Sade consequentemente implantou o potencial inerente à revolução filosófica kantiana no preciso sentido em que externalizou a Voz da Consciência. A primeira associação aqui é, claro: qual o motivo de tanta confusão? Hoje, em nossa era freudiana pós-idealista, todos não sabemos que o sentido do “com” (em Kant com Sade) é que a verdade do rigorismo kantiano é o sadismo da Lei, ou seja, a Lei kantiana é a agência superegóica que sadicamente goza com o impasse do sujeito, sua inabilidade de atender às suas demandas impossíveis, como o popular exemplo do professor que tortura seus alunos com tarefas impossíveis e, secretamente, desfruta do fracasso deles? 

O ponto de Lacan, no entanto, é o exato oposto dessa primeira associação: não é Kant o sádico no armário, é Sade o kantiano no armário. Em outras palavras, o que devemos ter em mente é que o foco de Lacan é sempre Kant, não Sade; seu interesse está nas últimas consequências e premissas rejeitadas da revolução kantiana na ética. De outro modo, Lacan não está fazendo a comum e reducionista afirmação de que todo ato ético, por mais puro e desinteressado que pareça, está sempre fundado em alguma motivação “patológica” (do interesse de longo prazo do agente e da busca pela admiração dos pares até a satisfação “negativa” provida pelo sofrimento e extorsão demandados pelo agir ético); o foco do interesse de Lacan, ao invés disso, reside na reversão paradoxal por meio da qual o próprio desejo (por exemplo, agir de acordo com o desejo, não ceder diante dele) não pode mais ser firmado em interesse ou motivação “patológica” alguma e, portanto, cumpre com os critérios do ato ético kantiano, fazendo com que o “agir conforme o desejo” se sobreponha ao “cumprir um dever”. Basta lembrar do clássico exemplo de Kant em sua Crítica da Razão Prática:

Supondo, por exemplo, que um indivíduo pretenda excusar a sua inclinação ao prazer, dizendo ser-lhe a mesma totalmente irresistível, quando o objeto amado e a ocasião se apresentem; mas se uma forca estiver levantada diante da casa onde tal ocasião se apresenta, para nela dependurá-lo logo após o gozo do prazer, não resistirá porventura a tal inclinação? Não é necessário muita perspicácia para atinar com a resposta. [3] 

O contra argumento de Lacan é: e se encontrarmos um sujeito (como regularmente encontramos na psicanálise) que apenas consegue realmente aproveitar uma noite de paixão se, de alguma forma, uma “forca” o estiver ameaçando, ou seja, quando ao fazê-lo estiver violando alguma proibição?

Houve um filme italiano dos anos 60, Casanova 70, estrelado por Virna Lisi e Marcello Mastroianni, cuja trama girava em torno desse ponto: o herói apenas consegue usar sua potência sexual se, ao fazê-lo, algum tipo de perigo existir. No final do filme, quando ele está prestes a se casar com sua amada, ele quer ao menos violar a proibição do sexo pré-marital dormindo com ela uma noite antes do casamento. No entanto, sua esposa sem querer estraga esse pequeno prazer ao conseguir junto do padre uma permissão para que dormissem juntos na noite anterior, fazendo com que o ato fosse privado de seu estigma transgressor. O que pode ser feito agora? Na última cena do filme, nós vemos o herói escalando a estreita varanda de um prédio alto, dando a si mesmo a difícil tarefa de entrar no quarto da amada da forma mais difícil possível, em uma tentativa desesperada de ligar a gratificação sexual ao desejo mortal. Então, o ponto de Lacan é que se a gratificação sexual envolve a suspensão até mesmo dos mais egoístas interesses, se essa gratificação está claramente localizada “além do princípio do prazer”, então, a despeito de toda aparência do contrário, nós estamos lidando com um ato ético, sua paixão é strictu sensu ética. [4]

O ponto posterior de Lacan é que essa dimensão sádica velada de uma “paixão (sexual) ética (sexual)” não é lida em Kant por nossa interpretação excêntrica, mas é inerente ao edifício teórico kantiano. [5] Se colocarmos de lado o corpo das “evidências circunstanciais” por ela – não é a infâme definição kantiana do casamento como “o contrato entre dois adultos do sexo oposto sobre o uso do uso do orgão sexual um do outro” completamente sadiana, uma vez que reduz o Outro, o parceiro sexual, à um objeto parcial, à seu orgão sexual que provê prazer, ignorando-o em sua inteiridade de pessoa humana? -, a pista crucial que nos permite discernir os contornos de “Sade em Kant” é a forma como Kant conceitualiza a relação entre os sentimentos e a Lei moral.

Apesar de Kant insistir no absoluto hiato entre os sentimentos patológicos e a forma pura da Lei moral, existe um sentimento a priori que o sujeito necessariamente experimenta quando confrontado com a injunção da Lei moral: a dor moral (por conta do orgulho ferido, devido ao “Mal radical” na natureza humana). Para Lacan, esse privilegiamento kantiano da dor como o único sentimento a priori é estritamente correlativo à noção sadiana de dor (torturar e humilhar o outro, ser torturado e humilhado pelo outro) como a via privilegiada de acesso ao gozo sexual (o argumento de Sade, claro, é de que a dor deve ter prioridade frente ao prazer devido à sua maior longevidade – o prazer é passageiro enquanto a dor pode durar quase indefinidamente). Essa ligação pode ser posteriormente substanciada pelo que Lacan chamou de a fantasia fundamental sadiana: a fantasia de um outro, um corpo etéreo de vítima, que pode ser torturado indefinidamente e, não obstante, retém sua beleza (veja a figura padrão sadiana de uma jovem moça sofrendo intermináveis humilhações e mutilações de seu depravado torturador e, misteriosamente, sobrevivendo a elas intacta, da mesma forma que Tom e Jerry e outros protagonistas de desenhos animados sobrevivem intactos à todas as suas provações).

Essa fantasia não provê a fundação libidinal do postulado kantiano da imortalidade da alma eternamente lutando para adquirir a perfeição ética, ou seja, não é a “verdade” fantasmática da imortalidade da alma seu exato oposto, a imortalidade do corpo, sua habilidade de sofrer dores e humilhações intermináveis?

Judith Butler apontou que o “corpo” foucaultiano como local de resistência não é outro senão o “psiquismo” freudiano: paradoxalmente, “corpo” é o nome foucaultiano para o aparelho psíquico enquanto resistente à dominação da alma. Isto implica dizer, quando, em sua muito conhecida definição da alma como a “prisão do corpo,” Foucault gira a padrão definição platônico-cristã do corpo como a “prisão da alma”. O que Foucault chama de “corpo” não é simplesmente o corpo biológico, mas é efetivamente já contido em um tipo de aparelho psíquico pré subjetivo. [6] Consequentemente, não encontramos em Kant uma inversão secretamente homóloga, apenas na direção inversa, da relação entre corpo e alma: o que Kant chama de “imortalidade da alma” é efetivamente a imortalidade do corpo etéreo e zumbificado do outro? 

2.

É através desse central papel da dor na experiência ética de um sujeito que Lacan introduz a diferença entre o “sujeito da enunciação” (o sujeito que profere um enunciado) e o “sujeito do enunciado” (a identidade simbólica que o sujeito assume junto e através desse enunciado). Kant não endereça a questão de quem é o “sujeito da enunciação” da Lei moral, o agente enunciando a incondicional injunção ética – dentro de seu horizonte, essa questão mesma é inútil, uma vez que a Lei moral é um comando impessoal “vindo de outro lugar”, ou seja, é de forma última auto-postulada, autonomamente assumida pelo próprio sujeito. Através da referência a Sade, Lacan lê essa ausência em Kant como um ato de tornar invisível, de reprimir, o enunciador da Lei moral, e é Sade quem torna visível a figura do sádico executor-torturador – este executor é o enunciador da Lei moral, o agente que encontra prazer em nossa (ou do sujeito moral) dor e humilhação.

Um contra argumento oferece a si mesmo aqui com aparente auto evidência: não seria todo esse papo um nonsense, uma vez que, em Sade, o elemento que ocupa o lugar da injunção incondicional, a máxima que o sujeito segue categoricamente, não é mais o comando universal ético “cumpra seu dever”, mas seu mais radical oposto: a injunção para seguir até seu último limite os completamente patológicos caprichos contingentes que nos trazem prazer, reduzindo implacavelmente todos os nossos semelhantes a instrumentos de nosso prazer? No entanto, é crucial perceber que a solidariedade entre essa característica e a emergência da figura do sádico executor-torturador como o efetivo “sujeito da enunciação” do universal comando-afirmação. O movimento sadiano do kantiano respeito-a-blasfêmia, ou seja, de respeitar o Outro (o companheiro), sua liberdade e autonomia, e sempre tratá-lo como um fim-em-si-mesmo, à redução de todos os Outros a instrumentos dispensáveis a serem implacavelmente explorados, é estritamente correlativo ao fato de que o “sujeito da enunciação” da Injunção Moral, indivisível em Kant, assume as características concretas do executor sadiano.

O que Sade obtém é, portanto, uma muito precisa operação de romper o elo entre dois elementos que, aos olhos de Kant, são sinônimos ou sobrepostos: [7] a asserção de uma injunção ética incondicional; a universalidade moral desta injunção. Sade mantém a estrutura de uma injunção incondicional postulando como seu conteúdo a máxima singularidade patológica.

E, novamente, o ponto crucial é que esse romper de elos não é a excentricidade de Sade – ele se mantém dormente enquanto uma possibilidade na própria tensão fundamental constitutiva da subjetividade cartesiana. Hegel já estava ciente dessa reversão do universal kantiano na mais idiossincrática contingência – não era sua crítica do imperativo ético kantiano o fato de que, estando o imperativo vazio, Kant precisa preenchê-lo com algum conteúdo empírico, conferindo, portanto, no contingente conteúdo particular a forma de uma necessidade universal?

O caso exemplar de um “patológico” elemento contingente elevado ao status de uma demanda incondicional é, sem dúvidas, um artista absolutamente identificado com sua missão artística, perseguindo-na livre e sem culpa, como uma restrição interna, incapaz de sobreviver sem ela. O triste destino de Jacqueline du Pré nos confronta com a versão feminina da divisão entre a injunção incondicional e seu outro lado, a universalidade serial de objetos empíricos indiferentes que precisam ser sacrificados na busca de uma Missão. [8] (É extremamente interessante e produtivo ler a história de vida de du Pré não como uma “história real”, mas como uma narrativa mítica: o que é tão surpreendente sobre sua história é o quanto de perto ela segue os preordenados contornos de um mito familia, assim como a história de Kaspar Hauser, em que acidentes individuais infamiliarmente reproduzem traços familiares de um mito antigo.) A injunção incondicional de du Pré, sua pulsão, sua absoluta paixão era sua arte – quando tinha 4 anos de idade, ao ver alguém tocando um cello, já imediatamente afirmou que era aquilo que queria ser. Essa elevação de sua arte ao incondicional relegou sua vida amorosa à uma série de encontros com homens que eram, no final das contas, insubstituíveis, um tão bom quanto o outro – ela era famosa por ser uma uma devoradora de homens em série. Ela, portanto, ocupou o lugar geralmente reservado aos artistas homens – não espanta sua longa e trágica doença (uma esclerose múltipla da qual dolorosamente padeceu de 1973 até sua morte em 1987) ter sido vista por sua mãe como uma “resposta do real”, como uma punição divina não só por sua vida sexual promíscua como, também, por seu comprometimento “excessivo” com sua arte.  

3.

Essa, no entanto, não é a história completa. A questão decisiva é: é a Lei moral kantiana traduzível na noção freudiana de superego ou não? Se a resposta for sim, então “Kant com Sade” efetivamente significa que Sade é a verdade da ética kantiana. Se, no entanto, a Lei moral kantiana não puder ser identificada com o superego (uma vez que, como o próprio Lacan afirma nas últimas páginas de seu Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, a Lei moral é equivalente ao próprio desejo enquanto o superego precisamente alimenta-se do não comprometimento do sujeito com seu desejo, ou seja, a culpa sustentada pelo superego é testemunha do fato de que o sujeito, de alguma forma, comprometeu seu desejo), [9] então Sade não é inteiramente a verdade da ética kantiana, mas uma forma pervertida de sua realização. De forma breve, ao invés de ser “mais radical do que Kant”, Sade articula o que ocorre quando o sujeito trai o verdadeiro rigor da ética kantiana. 

Essa diferença é crucial por suas consequências políticas: na medida em que a estrutura libidinal dos regimes “totalitários” é perversa (o sujeito totalitário assume a posição de objeto-instrumento do gozo do Outro), “Sade como a verdade de Kant” significaria que a ética kantiana efetivamente ancora potenciais totalitários; no entanto, na medida em que concebemos a ética kantiana como precisamente proibitiva do sujeito assumir a posição de objeto-instrumento do gozo do Outro, conclamando-o a assumir total responsabilidade por aquilo que ele chama de Dever, Kant é um anti-totalitário por excelência.

O sonho da injeção de Irma que Freud usa de exemplo para ilustrar o procedimento de análise dos sonhos é um sonho sobre responsabilidade – a própria responsabilidade de Freud pelo fracasso do tratamento de Irma. Este fato sozinho indica que a responsabilidade é uma noção freudiana crucial.

Mas como devemos concebê-la? Como evitar a comum armadilha do mauvaise foi do sujeito Sartreano responsável por seu projeto existencial, ou seja, o motif existencialista da culpa ontológica que pertence à finita existência humana tal qual, assim como a armadilha oposta de “culpar o Outro” – “uma vez que o inconsciente é o discurso do Outro, não sou responsável por suas formações, é o grande Outro quem fala através de mim, sou apenas seu instrumento”?

O próprio Lacan apontou o caminho deste impasse ao referir-se à filosofia kantiana como o antecedente crucial da ética psicanalítica do dever “além do Bem”. De acordo com a crítica pseudo-hegeliana padrão, a ética universalista kantiana do imperativo categórico falha ao não levar em conta a situação histórica concreta em que um sujeito está contido, e que provê o conteúdo determinado do Bem: o que elude o formalismo kantiano é a historicamente especificada Substância da vida ética. No entanto, essa censura pode ser contra-atacada ao afirmar que a única força da ética de Kant reside nessa indeterminação formal: a Lei moral não me diz qual é meu dever, o que significa que o próprio sujeito deve assumir a responsabilidade de “traduzir” a injunção abstrata da Lei moral em uma série de obrigações concretas.

Neste preciso sentido, nos sentimos tentados a arriscar um paralelo com a Crítica da faculdade do Juízo de Kant: a formulação concreta de uma determinada obrigação ética tem a estrutura do juízo estético, ou seja, de um juízo através do qual, ao invés de simplesmente aplicar uma categoria universal em um objeto particular ou subsumir este objeto sob uma determinação universal já dada, eu, por assim dizer, invento sua dimensão universal-necessária-obrigatória e, assim, elevo esse objeto contingente particular (ato) à dignidade da Coisa ética.

Então há sempre algo sublime sobre pronunciar um juízo que define nossa tarefa: nela, eu “elevo um objeto à dignidade da Coisa” (definição lacaniana de sublimação). A total aceitação deste paradoxo nos leva a rejeitar qualquer referência ao dever como uma desculpa: “eu sei que é pesado e que pode ser doloroso, mas o que posso fazer se este é meu dever…” O mote padrão do rigor ético é “não há desculpa para não cumprir com seu dever!”; apesar de que o du kannst, denn du sollst! (você pode porque você deve!) pareça oferecer uma nova versão deste mote, ele implicitamente complementa-lhe com uma muito mais infamiliar inversão: “não há desculpas para cumprir com seu dever!” [10] A referência ao dever como desculpa para fazer nosso dever deve ser rejeitada por ser hipócrita; basta lembrar o exemplo popular de um professor severo e sádico que sujeita seus alunos à disciplina implacável e à tortura. Claro, sua desculpa desculpa para si mesmo (e para os outros) é: “eu mesmo acho difícil exercer tanta pressão sobre as pobres crianças, mas o que posso fazer? É meu dever.” O mais pertinente exemplo é o de um político stalinista que ama a humanidade, mas ainda assim executa terríveis expurgos e execuções; seu coração se parte enquanto ele faz isso, mas ele não pode evitar, é seu dever para com o progresso da humanidade.

O que encontramos aqui é a propriamente atitude perversa de adotar a posição de puro instrumento da Vontade do grande Outro: não é minha responsabilidade, não sou eu quem está efetivamente fazendo isso, sou apenas um instrumento da mais alta Necessidade Histórica. O gozo obsceno dessa situação é gerado pelo fato de que concebo a mim mesmo desculpado pelo que estou fazendo: não é legal infligir dor aos outros com a plena consciência de que não sou responsável por isso, de que estou apenas cumprindo a Vontade do outro? Isso é o que a ética kantiana proíbe. A posição do perverso sádico provê a resposta para a questão “como pode o sujeito ser culpado quando ele apenas realiza uma objetiva e externamente imposta necessidade?.” Por subjetivamente assumir essa “necessidade objetiva”, ou seja, por encontrar gozo naquilo que foi imposto a si. Então, em sua radicalidade, a ética kantiana não é sádica, mas precisamente o que proíbe a assunção da posição do executor sádico.

Em um giro final, Lacan, não obstante, mina a tese de “Sade como a verdade de Kant.” Não é um acidente que o mesmo seminário em que Lacan desenvolve o elo inerente entre Kant e Sade também contém a leitura detalhada de Antígona em que Lacan delineia o contorno do ato ético que, COM SUCESSO, evita a armadilha da perversão sadiana como sua mais profunda verdade – ao insistir em sua demanda incondicional pelo enterro decente de seu irmão, Antígona não obedece um comando que a humilha, um comando efetivamente pronunciado por um executor sádico. Então, o principal esforço do seminário de Lacan sobre A Ética da Psicanálise é precisamente romper com o ciclo vicioso de Kant com Sade. Como isso é possível? Apenas se – em contraste com Kant – afirmarmos a necessidade de uma “crítica do desejo puro”: em contraste com Kant, para quem nossa capacidade de desejar é completamente “patológica” (uma vez que, como ele repetidamente enfatiza, não há um link a priori entre um objeto empírico e o prazer que esse objeto gera no sujeito), Lacan afirma que há uma “pura faculdade do desejo”, uma vez que o desejo possui um a priori e não-patológico objeto-causa-do-desejo. É claro, é este que Lacan chama de objeto a.


[1] LACAN, Jacques. O Seminário, Livro VII, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, capítulo IV.

[2] LACAN, Jacques. Kant com Sade (1963) em Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 776-803, 1998.

[3] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Brasil Editora, 2004. p. 25

[4] “[…] Como se, como afirma Kant, não outro algo senão a lei moral pudesse nos induzir a pôr de lado todos os nossos interesses patológicos e aceitarmos nossa morte, então o caso de alguém que passa uma noite com uma mulher apesar de saber que pagará com sua própria vida, é o caso de uma lei moral.” Alenka Zupancic, “The Subject of the Law,” in Cogito and the Unconscious, ed. by Slavoj Zizek, Durham: Duke UP 1998, p. 89.

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