Por Gustavo Barbosa
Em seus diários sobre a visita que fez à União Soviética no início da década de 50, Graciliano Ramos narra como foi fácil se aproximar de Stálin durante um desfile público. “E não haviam procurado saber se eu conduzia uma arma”, assustou-se o escritor ao se deparar com a displicência dos guardas, pois entendia “perfeitamente razoável, sendo os meus intuitos indevassáveis, meterem-me as mãos nos bolsos”. Graciliano finaliza seu relato ressaltando “uma confiança realmente inexplicável” por parte das forças que faziam a segurança do evento, pois, sem qualquer sinal de resistência, o deixaram “galgar as insignificantes barras de meio metro” e se avizinhar do “homem que a burguesia odeia com razão”.
A discussão sobre o stalinismo ganhou força nos últimos dias diante da “conversão” de Caetano Veloso após ler a obra do filósofo italiano Domenico Losurdo, recomendada pelo historiador Jones Manoel. Caetano, segundo ele próprio, passou a ser menos liberalóide. Também passou a olhar com mais respeito para as experiências do socialismo real.
A apostasia liberal de Caetano mexeu com os brios de muita gente. Wilson Gomes, professor da Universidade Federal da Bahia, chegou a comparar Losurdo com Olavo de Carvalho. Para a Revista Cult, fez uma defesa laudatória do liberalismo, denunciando sua escassez no Brasil e destacando que os direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição de 1988 se abastecem exatamente do ideário iluminista abandonado por Caetano.
Luís Felipe Miguel, professor da Universidade de Brasília, juntou-se a Gomes na carga contra Losurdo. Embora tenha abordado de forma interessante e honesta os limites do programa liberal, derrapou ao afirmar que grande parte do esforço de Losurdo se resumiria a “empilhar evidência anedótica de que ícones liberais apoiavam ativamente práticas opressivas contra vastos grupos de pessoas”.
Pablo Ortellado, professor da Universidade de São Paulo, aglomerou-se à turma que elegeu Caetano, Stálin e Jones como as “Genis” da vez. Ortellado, no entanto, decidiu subir o tom do panfletarismo: escreveu em sua coluna na Folha de S. Paulo que Losurdo “reconhece as violências do stalinismo, mas as justifica e as contemporiza, comparando-as com violências que teriam sido maiores na modernização capitalista”. Por fim, acusou Caetano de se render à “irresponsabilidade narcísica” e incensar o stalinismo.
Dos críticos acima, apenas Luís Felipe Miguel procurou abordar um ponto central dos escritos do italiano: as limitações materiais e históricas à concretização dos princípios do liberalismo, bem como o mito que quer fazer crer que democracia e livre mercado se confundem. Um disparate que só não supera a infame comparação feita por Gomes e a infantil tentativa de Ortellado em jogar os gulags na conta de Caetano. No prefácio à edição brasileira de “Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal”, publicada pelas editoras da UNESP e da UFRJ, Losurdo mostra como o objeto de sua pesquisa vai muito além de caricaturas lacradoras:
“No centro da ideologia hoje dominante há um mito, chamado a glorificar o Ocidente e, em particular, seu país-guia. É o mito segundo o qual o liberalismo teria gradualmente se transformado, por um impulso puramente interno, em democracia, e numa democracia cada vez mais ampla e mais rica. Para nos darmos conta de que se trata de um mito, basta uma simples reflexão. Da democracia como hoje a entendemos, faz parte em qualquer caso o sufrágio universal, cujo advento foi por muito tempo impossibilitado pelas cláusulas de exclusão estabelecidas pela tradição liberal em detrimento dos povos coloniais e de origem colonial, das mulheres e dos não proprietários. E estas cláusulas foram por muito tempo justificadas, assimilando os excluídos a “bestas de carga”, a “instrumentos de trabalho”, a “máquinas bípedes” ou, na melhor das hipóteses, a “crianças””.
Em seus livros, Losurdo costuma citar o historiador Jacob Talmon como exemplo do método que o liberalismo adota para analisar fenômenos sociais. Talmon comparava as experiências socialistas não com as ações concretas do capitalismo central – colonização, imperialismo, escravidão -, mas com os princípios idílicos e abstratos do liberalismo, aos quais nem os próprios países capitalistas respeitam.
O Sofisma de Talmon, como Losurdo chama esse expediente, ganha forma na ignorância quanto a fatos como o da Declaração de Independência dos EUA, cânone histórico do liberalismo, ter mantido a escravidão ao mesmo tempo em que exaltava a liberdade e a igualdade entre os homens, além de prever severas restrições à participação do povo nas decisões políticas. A importância de sacrificar a fraseologia liberal-burguesa no ácido da história fica evidente no erro do professor Wilson Gomes em acreditar que a discussão termina nas previsões do artigo 5º da Constituição de 1988, um idealismo que o próprio Losurdo denuncia a partir de um referencial materialista. No fim das contas, é o capital que têm o poder de dizer até onde a lei deve ser aplicada – ou, por exemplo, como a liberdade defendida com entusiasmo pelos Pais Fundadores não abrangia escravos negros, pois, sendo coisas e não seres humanos, não podiam ser protegidos pelo guarda-chuva da razão iluminista.
Somos tentados a achar que há contradição entre escravidão e liberalismo. Não há. Desumanizar negros, rebaixando-os à condição de meios produção, objetos ou propriedade privada, servia para lustrar a consciência dos herdeiros intelectuais de John Locke enquanto municiava ideologicamente a sustentação econômica do capitalismo. Apenas na segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento da manufatura inglesa e a necessidade de um mercado que a absorvesse, é que o liberalismo passou a defender que escravos deixassem de ser propriedade privada e passassem a ser sujeitos de direito, condição necessária para que, naquele estágio de desenvolvimento do capitalismo, pudessem vender sua força de trabalho e sacramentar a transição da subjugação escrava para a assalariada. Não houve lampejos de humanidade e empatia no abolicionismo abraçado pelos liberais nos minutos finais do segundo tempo. Houve o capital, inabalável, impondo suas necessidades a fórceps.
Outro exemplo do referencial crítico de Losurdo é o da Revolução Haitiana, inspirada nos princípios da Revolução Francesa. A repressão que os ex-escravos sofreram pelas tropas napoleônicas em nome dessa mesma liberdade só é uma contradição para quem elenca o artigo 5º da Constituição como recibo do Fim da História. É comum que a revolução no Haiti, primeiro país da América e abolir a escravidão, seja considerada mais importante que a própria Revolução Francesa, pois expôs os voos de galinha aos quais seu projeto está fadado.
É esta a crítica que Losurdo faz, destacando ainda a relevância do socialismo nas lutas anticoloniais e nas concessões feitas pelas democracias liberais no reconhecimento dos direitos sociais que caracterizaram a rede de proteção social que marcou os anos dourados da social-democracia europeia.
E é aqui em particular que entra o componente político das discussões em torno de Stálin nos dias de hoje. O dirigente soviético é talvez o principal cavalo de batalha da retórica anticomunista. O período stalinista, além de confundido com o socialismo soviético como um todo, é exaustivamente explorado sob uma perspectiva moralizante e personalista. Enquanto a apologia liberal coloca Stálin como a encarnação do Mal, Churchill, um supremacista branco responsável pelos milhões de mortos na grande fome de 1943 na Índia, é poupado pela mesma neo-inquisição que fecha os olhos para carnificinas como a colonização belga no Congo. Mesmo o fato do colonialismo ter atravessado o século XX – em tese uma aberração para quem se diz defensor da liberdade – costuma ser ignorado, quando não justificado ou relativizado. É o que Losurdo procura mostrar em livros como “Guerra e Revolução: o mundo um século depois de 1917” (Boitempo editorial) e “Contra-História do Liberalismo” (Ideias & Letras).
Convenientemente, nem as atrocidades da colonização inglesa na Índia e na China, duas de suas mais notórias ex-colônias, tampouco o massacre promovido pelo Rei Leopoldo II no Congo são debitados nas contas de bastiões liberais como Adam Smith, Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill. Por outro lado, autores liberais costumam tratar os expurgos de 1937, para citar um dos mais tormentosos eventos do governo de Stálin, como se tivessem sido extraídos diretamente do Manifesto do Partido Comunista. Daí basta um passo para jogar querosene na fogueira do anticomunismo, denunciado por Losurdo como uma tática revisionista para deslegitimar todo o acúmulo de lutas e conquistas da classe trabalhadora no século XX, todas profundamente relacionadas à organização geopolítica do mundo nesse período.
Ortellado cai nessa armadilha ao reproduzir o Sofisma de Talmon e ver nas ponderações de Losurdo, Jones e Caetano não uma tentativa de contrapor a narrativa ocidental e anticomunista sobre Stálin, mas sim de entrar numa competição sobre quem matou mais. Quanto a isso, Gilberto Maringoni, professor da Universidade Federal do ABC, vai direto ao ponto: “como o autor italiano se recusa a fazer o terraplanismo usual contra o georgiano e usa a métrica da honestidade intelectual para avaliar a História, logo Losurdo é stalinista”. E assim qualquer debate sobre o assunto é interditado.
Na pluralidade liberal não há espaço para um olhar sobre Stálin que não seja novelizado. Seu manual de consensos não atenta para a obviedade de que milhões de vidas ceifadas pelo imperialismo não credenciam apóstolos liberais a apontarem o dedo para quem quer que seja. Fazer tábula rasa da conjuntura em que a discussão sobre Stálin está ocorrendo e achar que há equivalência entre as críticas ao terror stalinista e à violência da modernização capitalista é ser mais idealista que liberal que lacra dando carteirada com o artigo 5º da Constituição.
Essa visão, fragmentada, não percebe os efeitos concretos da adesão da esquerda liberal à retórica anticomunista que adora colocar Stálin como seu principal espantalho. Não são as ideias de Rousseau que estão na mira do Congresso Nacional, e sim as de Karl Marx e Friedrich Engels, vide projeto de lei recentemente apresentado por Eduardo Bolsonaro objetivando criminalizar tudo que cheire a comunismo. Na Ucrânia já funciona assim. Aqui no Brasil, não foram os liberais os perseguidos pela ditadura militar. Roberto Campos, destacado ideólogo do liberalismo econômico brasileiro, estava muito bem acomodado na burocracia dos governos dos generais. Também os chicago boys na ditadura chilena, que prendeu, arrebentou e matou comunistas como se fossem moscas.
Para a esquerda liberal, da qual Ortellado e Gomes aparentemente fazem parte, não cair na armadilha do anti-stalinismo é “relativizar Stálin”, nos termos do manual de Talmon. Ao promover uma crítica materialista ao baixíssimo teto emancipatório do credo liberal, trazendo seus limites concretos à superfície, Losurdo faz muito mais do que “empilhar anedotas”. Não há nada de anedótico na longa de lista de golpes e intervenções militares dos EUA em países da América Latina no século XX. Em 1952, um Stálin provocador chegou a convidar os comunistas a resgatarem “a bandeira das liberdades democrático-burguesas” e a bandeira “da independência da nação”, jogadas ao mar pela burguesia.
É possível criticar Stalin sem moralismos, como sugere Lukács em “Carta sobre o Stalinismo”, evitando cair numa armadilha que só contribui para a perseguição e criminalização da própria esquerda – incluindo aquela que rejeita o socialismo. A crítica histórica, abordando os limites, equívocos e fracassos das experiências socialistas, não só é necessária, mas decorrente do próprio materialismo histórico, oposto à profissão de fé liberal que se nega a lamber suas feridas ao acusar a fome, a morte e a miséria não como frutos do modo de produção capitalista e suas formas políticas, mas, quando muito, decorrentes de governos que não foram “liberais o suficiente”.
Acusar Caetano de stalinista e comparar Losurdo com Olavo de Carvalho são iniciativas que servem para criar a “rota alucinógena da lacração e do cancelamento do debate”, como bem observou Maringoni, deixando de lado o fato de que é a cartilha ultraliberal que está na linha de frente das políticas de austeridade e desmonte do Estado no Brasil de 2020. Jogar os comunistas na cadeia é tirar o principal instrumento de organização e de representação política que a classe trabalhadora tem para impedir que a boiada passe ainda mais.
Toda essa gritaria serviu enfim para mostrar que Graciliano Ramos estava mais do que certo: a burguesia, ontem e hoje, tem realmente razão em odiar Stálin.
Gustavo Freire Barbosa
Advogado e professor, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
1 comentário em “A armadilha liberal do discurso anti-stalinista”
O oitavo parágrafo desse texto é uma síntese maravilhosa para explicar a toda sorte de pessoas o engodo que é o liberalismo, o texto todo é muito bom, mas o oitavo parágrafo é maravilhoso para abrir o canal de comunicação. Todos devem ler esse texto e absorver em especial esse parágrafo para espalhar a palavra. Parabéns ao autor.