A psicanálise em face da colonialidade: 18 possíveis usos anticoloniais da herença freudiana

Por David Pavón-Cuéllar, via Blog do autor, traduzido por Daniel Alves Teixeira

Intervenção na Segunda Mesa, Racismo e Colonialismo como Sofrimento Sociopolítico. O que pode a psicanálise?, no Seminário da Rede Interamericana de Pesquisa em Psicologia e Política (REDIPPOL), na quarta-feira, 16 de setembro de 2020. A sessão foi coordenada por Priscila Santos e realizada remotamente no site da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Chile. Além do autor, participaram Deivison Faustino e José Miguel Bairrão, ambos do Brasil.


No ano passado meditei muito no funcionamento colonial da herança freudiana na América Latina. Eu me perguntei se nós, latino-americanos, deveríamos tentar descolonizar a psicanálise, ou se seria melhor simplesmente nos livrar dela, ou seja, nos descolonizar dela. Eu estava inclinado para o primeiro, para preservar o que Freud nos legou, mas fazendo todo o possível para descolonizá-lo e até mesmo utilizá-lo como instrumento para uma certa descolonização de nossas vidas. Esse uso é exatamente o que eu gostaria de considerar agora.

Meu propósito hoje é refletir sobre a forma como a psicanálise pode ser usada em face da colonialidade moderna, sendo usada de forma crítica, insubordinada e subversiva. Minha reflexão me fará discernir dezoito possíveis usos anticoloniais da herança freudiana em um contexto pós-colonial ou neo-colonial como o da América Latina. Descrevo esses usos como “anticoloniais” porque se opõem à colonialidade, porque estabelecem uma relação antagônica com ela, porque aspiram de alguma forma a uma certa descolonização, o que não significa necessariamente que a realizem e nem mesmo que possam se livrar das estruturas coloniais em que estão inseridos. Por isso, fala de usos anticoloniais e não descoloniais ou descolonizantes.

O agente dos usos anticoloniais da herança freudiana será, em cada caso, alguém a quem designarei com o enigmático pronome “nós”. Por este “nós”, quero dizer nós latino-americanos, asiáticos e africanos, os habitantes das chamadas “periferias”, os descendentes diretos do colonialismo europeu e do imperialismo norte-americano, os despojados dos impérios, os eternamente desatualizados em relação à modernidade, os inevitavelmente europeizados e não europeus. Somos os sujeitos pós-coloniais, híbridos, mestiços, não necessariamente da mestiçagem racial ou étnica, mas da mestiçagem cultural, ideológica e simbólica em que está gestada nossa subjetividade.

Somos nós, produtos da colonialidade moderna, que podemos realizar os usos anticoloniais da psicanálise aos quais me referirei agora. Note que estou apenas concebendo o colonial como algo a que devemos nos opor, o que é, para mim, fora de qualquer debate, uma posição política pessoal. Minha oposição à colonialidade moderna e ao capitalismo do qual faz parte me confronta logicamente com aqueles que buscam reabilitar e revalorizar o colonialismo, especialmente na direita e na extrema direita do espectro político, embora às vezes também na esquerda como a do filósofo esloveno Slavoj Žižek , a que me refiro agora por sua proximidade com o campo psicanalítico.

Alguém como Žižek nunca poderia entender por que diabos queremos usar a psicanálise contra a colonialismo moderno. Tal uso lhe pareceria estranho, talvez absurdo, aberrante. De fato, há uma certa aberração em empregar de forma anticolonial algo tão moderno e europeu quanto o que Freud nos deixou. Comecemos com isso abordando agora, um por um, os possíveis usos anticoloniais da herança freudiana.

1. É verdade que a psicanálise faz parte de uma modernidade europeia inseparável da colonialidade. Porém, nessa modernidade, a descoberta freudiana aparece como crise, ruptura, fracasso ou fenda. É uma fenda no mundo colonial moderno, uma fenda em que há lugar para nós, não europeus, em que podemos nos alojar e talvez assim alargar a fenda, aprofundar a crise daquilo que nos colonizou. A crise da modernidade colonial pode logicamente se aprofundar por meio de um espaço, como o da psicanálise, em que se revela o que a Escola de Frankfurt conceituou como a irracionalidade inerente à racionalidade europeia moderna.

2. Entre os aspectos irracionais da racionalidade europeia moderna, um fundamental é a alegação infundada de universalidade. Essa afirmação é contestada pela casuística freudiana e por sua demonstração do caráter não universalizável das razões que regem a existência de cada sujeito. Cada histérica de Freud tem suas razões, as razões de seu desejo, que desafiam a suposta racionalidade universal da modernidade europeia. Se essa racionalidade é traída como irracional por aspirar à dominar a existência das mulheres do Império Austro-Húngaro, é muito mais irracional em sua pretensão de se aplicar a todo o mundo, a mulheres e homens na África, Ásia e América Latina. “Nada menos racional”, como diz Aníbal Quijano, do que “a afirmação de que a visão de mundo específica de uma determinada etnia se impõe como racionalidade universal, ainda que tal etnia seja a Europa Ocidental”[1]. O caráter irracional desse universalismo colonial fica evidente quando a psicanálise permite que o sujeito fale de tudo o que é singular e particular, de si mesmo e de sua cultura, o que difere dos imperativos da pretensa universalidade europeia moderna. O que descobrimos então, espantados, é que o sujeito chega a refutar a suposta universalidade de algo tão europeu quanto a metapsicologia freudiana, concordando assim com Malinowski[2] e Lacan[3] ao pôr fim ao que podemos chamar com Derrida de “colonização psicanalítica”[4]. A própria psicanálise pode servir, então, para nos descolonizar da racionalidade europeia da teoria freudiana.

3. Além de nos servir para mostrar nossas diferenças quanto às razões impostas pela Europa, a psicanálise pode nos ajudar a lembrar a história dessas diferenças e da imposição violenta do europeu. É preciso entender que a colonialidade é história e que, por isso, não pode ser tratada adequadamente por abordagens a-históricas, amnésicas e presentistas, como as da psicologia dominante. Em vez disso, o que é colonial requer uma abordagem como a da psicanálise: uma abordagem totalmente histórica que busca recordar a violência com a qual fomos constituídos. Como disse Ignacio Martín-Baró, “precisamos de memória, uma memória histórica clarividente, para perceber tudo o que bloqueou, oprimiu e esmagou o nosso povo”.[5] Essa memória da colonialidade, indispensável em todo combate anticolonial, é outra coisa que podemos cultivar por meio da psicanálise.

4. A abordagem psicanalítica nos ajuda não apenas a lembrar a colonialidade, mas a explicar a maneira como ela atuou sobre o sujeito, constituindo-o ao danificá-lo. Nossa subjetividade colonial danificada é o produto de complexas operações relacionais inconscientes do tipo tradicionalmente estudado pela psicanálise. É o caso da operação descrita por Frantz Fanon como “internalização” ou “epidermização da inferioridade”[6], como “inferiorização” do correlativo não europeu da “superiorização” européia[7]. É também o caso da europeização como “aspiração” em Quijano, ou seja, do “colonialismo interior” em substituição do “exterior”, a “sedução” que vem depois da “repressão”[8]. Talvez tudo isso não pudesse ter sido pensado sem a sensibilidade freudiana que permeia o pensamento crítico atual no subsolo, incluindo o pós-colonial, o decolonial e o anticolonial. O que é certo é que a crítica da colonialidade pode tirar proveito da psicanálise para explicar muitas das operações coloniais mais insidiosas, sutis e subterrâneas.

5. O uso da psicanálise para explicar as operações coloniais não exclui o uso de outras interpretações da subjetividade, entre elas as dos povos originários, que, me atrevo a dizer, são às vezes profundamente compatíveis com as interpretações psicanalíticas. Como a psicanálise, as psicologias mesoamericanas ancestrais, como pude apreciar nas pesquisas que estou realizando, reconhecem a singularidade irredutível de cada sujeito, mas descartam a ideia individualista e solipsista do eu ao tempo que encontram o mais externo no mais íntimo da subjetividade, em extimidade, como diz Lacan. Talvez não seja tão difícil pensar em uma aliança estratégica entre visões indígenas como essas e a psicanálise, uma aliança que pode nos servir, por um lado, para explicar as operações coloniais em seu caráter último, transindividual e singular em cada sujeito, mas também, por outro lado, questionar uma psicologia dominante que é perfeitamente funcional no capitalismo global e que só pode ser parte e não uma solução para o problema colonial.

6. Há um ponto crucial onde vemos como a psicanálise e as psicologias ancestrais coincidem entre si ao mesmo tempo que diferem da psicologia convencional. Esse ponto é o reconhecimento do sujeito como sujeito, como sujeito que fala, que sabe de alguma forma o que lhe está acontecendo, que deve ser escutado no que lhe diz respeito e que não é algo que possa ser falado e conhecido, resultando irredutível à condição de objeto de conhecimento e da palavra de qualquer outro. A objetivação do sujeito inobjetivável, objetivação que o neutraliza como sujeito, é típica da psicologia dominante, mas também da colonialidade em que esta psicologia objetiva está inserida. Se começa por objetificar psicologicamente o sujeito, conhecendo-o como objeto, e se termina dominando-o como tal por meio dos dispositivos políticos do capitalismo ou do colonialismo. No regime colonial em que ainda vivemos, como assinalou Quijano, “as culturas não europeias não podem ser nem abrigar sujeitos”, mas sim “apenas podem ser objetos de saberes e/ou práticas de dominação”[9]. A resistência contra essa objetivação é um gesto anticolonial e antipsicológico fundamental para o qual a psicanálise e as concepções indígenas de subjetividade podem nos servir.

7. Ao permitir-nos resistir simultaneamente contra a objetificação e contra a generalização universalista, a psicanálise pode também ajudar a desmontar várias operações da colonialidade que pressupõem essa objetificação e essa generalização. É o caso das operações que começam objetivando o que é culturalmente diferente para depois generalizá-lo ao incluí-lo em uma classificação ou hierarquia objetiva pretendentemente universal. Essas operações coloniais permitem patologizar ou estigmatizar o diferente, bem como rebaixá-lo, transformando a diferença cultural entre seres incomensuráveis em uma desigualdade entre o melhor e o pior, entre o mais alto e o mais baixo. Refutando a falácia da desigualdade, a psicanálise pode nos ajudar a restabelecer o que Lacan chama de “diferença absoluta”[10], a qual, por si mesma, já tem implicações políticas igualitárias decisivas como as enfatizadas por Jorge Alemán em sua proposta de esquerda lacaniana.[11]

8. A psicanálise consequente não está em condições de relativizar o diferente, reduzindo-o ao desigual, por uma razão simples: porque não fala sobre dele, ela mas apenas o escuta. Essa escuta já é em si uma subversão do poder colonial europeu sobre a palavra. Como observou Stuart Hall, a Europa “não para de falar, não para de falar de nós”, o que implica um “jogo de poder”.[12] O jogo cessa com o silêncio da psicanálise. Este silêncio interrompe a verborragia europeia e o correlativo silenciamento colonial do não-europeu. Nós podemos finalmente falar, expressar o que é articulado por nossas outras culturas, mas também expressar nosso sofrimento com a colonialidade. Falamos, por exemplo, como Aimé Césaire, de “medo”, “desespero” e “sentimento de inferioridade”.[13] Confessamos o que nos paralisa e por isso já estamos elaborando, simbolizando, assimilando, superando. Por tudo isso, basta que possamos falar, que sejamos ouvidos, como o faz a psicanálise.

9. Na verdade, se a escuta psicanalítica é tão subversiva, é porque ela escuta não apenas o que temos a falar, mas também o que não podemos falar. Isso é fundamental em uma situação colonial em que o subalterno, o colonizado, “não pode falar”, como bem alertou Gayatri Chakravorty Spivak.[14] Incapaz de falar, o colonizado tem muito a dizer em silêncio. Este silêncio é o de todas as palavras que nos foram tiradas. É o silêncio em que ressoa constantemente a verborragia europeia. Enquanto servimos como porta-vozes daquilo que nos colonizou, algo está sendo dito em silêncio. Esse silêncio pode ser ouvido no campo psicanalítico.

10. A psicanálise já subverte algo da colonialidade prestando atenção em nós, o que faz não apenas ouvindo o que dizemos em silêncio, mas considerando até mesmo o que pensamos por meio do que não podemos pensar. Isso também é fundamental em uma situação colonial em que nossa parte não europeia é inacessível à nossa autoconsciência irremediavelmente europeia. Como observou Luis Villoro, “na tentativa de encontrar seu próprio ser, o movimento reflexivo tem patentemente raízes ocidentais” em “sua linguagem, sua formação e suas ideias”, em “seus métodos de estudo e pesquisa”, que faz com que os indígenas colonizados não apareçam “claramente à consciência”, permanecendo “sombrios e escondidos nas profundezas do eu mestiço”.[15] Mais além da consciência, o indígena é para o mestiço uma questão do inconsciente. Reivindicar verdadeiramente o inconsciente em um país colonizado também teria que significar de alguma forma reivindicar o colonizado. Se não significa isso, talvez seja porque o suposto inconsciente que reivindicamos é tão somente uma dobra pré-consciente da consciência colonial. Torná-lo consciente é então desdobrá-lo. Ao contrário, tornar consciente o inconsciente do colonizado nada mais é do que romper com a consciência colonial. É trair o discurso do Outro que o sustenta. É delatar o sistema colonial. É talvez o primeiro passo para nos descolonizarmos.

11. A psicanálise ajuda a dissipar as ilusões com as quais se dissimula a colonialidade. Várias dessas ilusões são devidas a uma ilusão transcendental que deve desaparecer no tratamento psicanalítico: a ilusão de um Outro do Outro, a ilusão de um lugar fora do universo para julgar universalmente qualquer coisa no universo, que é a ilusão do universalismo europeu subjacente à consciência colonial. Uma das consequências de tal ilusão é o que Santiago Castro-Gómez chamou de “arrogância do ponto zero”, entendendo-a como uma arrogante “ignorância da espacialidade” pela qual se pretende “carecer de lugar de enunciação” e se acredita ter “um ponto de vista sobre o qual não é possível adotar nenhum ponto de vista”.[16] Essa crença em um Outro do Outro, em uma metalinguagem fora de qualquer linguagem, é ameaçada pela psicanálise, que nos remete incessantemente ao nosso ponto de vista, à nossa posição no discurso do Outro, ao nosso lugar de enunciação como lugar nossa verdade. Não há lugar aqui nem para o que Walter Mignolo concebe criticamente como “suposta deslocalização do pensamento europeu”[17] nem para o que Ramón Grosfoguel exclui na forma de “possibilidade de conhecimento para além do tempo e do espaço”, conhecimento de um sujeito carente de “todo corpo e território”, sujeito sem “sexualidade, gênero, etnia, raça, classe, espiritualidade, linguagem ou localização epistêmica”.[18] Este sujeito da colonialidade é também o da psicologia. É um fantasma que deve ser percorrido na psicanálise.

12. Ao nos fazer atravessar o fantasma colonial desencarnado e desterritorializado, a psicanálise nos permite aceder ao sujeito da enunciação, aquele que tem seu território na linguagem, o mesmo sujeito que sofre a falta de seu corpo despojado, marcado por uma castração que pode assumir várias formas históricas, incluindo a colonial. O contexto da colonialidade faz com que a castração constitutiva do sujeito se torne consistente na “mutilação dos colonizados pelo regime colonial” a que se refere Fanon”.[19] Esta mutilação reconfigura a nossa castração e a representa como uma ferida colonial, uma ferida que liga internamente o nosso desejo à colonialidade, à Europa, como lugar da nossa falta. O resultado é a fantasia de ser um pedaço de um ser que só podemos conceber como europeu. Temos a fantasia de que, por não ser totalmente europeus, somos apenas parcialmente o que somos, “não de todo”, como disse Homi Bhabha.[20] Somos assim não-todos, como qualquer outro sujeito, é claro, mas com uma incompletude especificamente colonial, dependentes colonialmente de uma completude universal que nossa fantasia projeta na Europa. Nossa emancipação dessa dependência do europeu exige o desligamento de nossa condição colonial da castração que nos constitui e da qual certamente não podemos nos libertar. Para tanto, o meio psicanalítico pode ser um dos mais eficazes.

13. A eficácia da psicanálise é mudar a relação com o europeu e não nos purificar do europeu. Em todo caso, essa purificação seria impossível porque também somos o que nos colonizou. Nossa colonização também foi um processo irreversível de europeização, alienação, transmutação em outros de quem fomos e ainda somos. O que resulta, a experiência de ser outro, não é exclusiva de nós. O europeu não é apenas um, mas também é sempre outro, não europeu. Devemos atender a Cheikh Anta Diop revelando-nos o negro do egípcio[21], assim como devemos prestar a maior atenção ao velho Freud quando nos revela o egípcio do judaico-cristão.[22] O que aprendemos aqui, com Edward Said, é que o outro está inevitavelmente no núcleo do um.[23] Foi também para tratar essa condição alienada que Freud inventou a psicanálise. Agora podemos usar sua invenção para enfrentar nossa alienação na colonialidade, não para curá-la ou remediá-la, mas simplesmente para viver e lidar com ela, elaborá-la e superá-la, não nos deixando perder, confundir ou sermos totalmente absorvidos por algumas de suas manifestações. O método psicanalítico poderia, assim, nos oferecer uma margem de manobra diante dos efeitos alienantes de nossa condição pós-colonial como os analisados por Stuart Hall, entre eles o de ser outro no “híbrido”, o de estar em outro lugar no “diaspórico”, o desdobrar-se nas “inscrições duplas”[24] ou “ver-nos e experimentar-nos como outros” nos regimes europeus de representação.[25] Talvez possamos até nos reapropriarmos da alteridade subjacente aos efeitos alienantes por meio de um trabalho psicanalítico de ressignificação. Conseguiríamos então com a psicanálise o mesmo que já havíamos conseguido com operações como a que Oswald de Andrade chamou de “antropofagia”[26] ou a outra que Rodolfo Kusch chamou de “fagocitação”, entendendo-a como “absorção das coisas boas do Ocidente pelas coisas da América” e como confirmação de que“ tudo o que é dado em estado puro é falso e deve ser contaminado pelo seu oposto ”.[27]

14. A contaminação do colonizador pelo colonizado significa que a alienação do sujeito nunca é total, que o eu nunca é apenas outro, que o mestiço não é apenas europeu, já que o europeu, como se apresenta no mestiço, está sempre já contaminado pelo indígena. Em termos lacanianos, o Outro já está sempre barrado, riscado, porque é também uno e por isso mesmo nenhum. E ainda assim aparece como Outro. O sujeito não deixa de existir com respeito à alteridade alienando-se nela. Sua alienação também é uma divisão. É por estar dividido que o sujeito sofre de estar alienado, mas é também por sua divisão que ele resiste à sua alienação, existindo a respeito do Outro em que está alienado. Essa situação de existência e resistência, sistematicamente reprimida pela modernidade europeia, retorna sintomaticamente na psicanálise, que, ao contrário da psicologia dominante, pode ajudar o sujeito a se reconhecer e se assumir como sujeito dividido que existe e resiste contra a mesma alteridade que o habita. O mestiço pode assim encontrar na psicanálise respaldo para afirmar e reafirmar sua estrutura de borda, sua condição identitária, não sintética ou unitária, mas dupla, tão indígena quanto europeu, como um como outro, dividido e dilacerado, “cindido” em seu ” próprio espírito”, disse Villoro[28]. Jairo Gallo nos mostrou em uma conversa informal que essa dupla condição, da qual somos baluartes nos quais os indígenas continuam existindo e resistindo, pode ser caracterizada de forma insuperável com o conceito aimará de Ch’ixi recuperado por Silvia Rivera Cusicanqui para descrever a “coexistência em paralelo” de culturas que “não se fundem, mas se antagonizam ou se complementam”.[29]

15. É claro que a cultura indígena não existe mais em seu estado puro na população mestiça e nem mesmo na maioria dos povos originários. Nossa subjetividade pós-colonial perdeu para sempre sua identidade pré-colonial e o melhor que pode fazer agora é consumar seu luto, seguindo assim o conselho de Stuart Hall de evitar o “conluio” com as potências coloniais que nos “congelam” em um “passado primitivo, imutável ”.[30] Sem embargo, iluminado pela psicanálise, nosso luto pode nos revelar dois aspectos do perdido: sua eternidade sob uma forma simbólica inconsciente de nosso ser e sua presença e transformação incessantes em uma lógica retroativa. Esses dois aspectos nos fazem nunca deixar de ser, não os índios que éramos na origem desconhecida, mas os que teremos sido conforme o que somos agora e de acordo com nosso interesse político atual, como acontece no famoso “uso estratégico do essencialismo” proposto por Spivak.[31]

16. Na realidade, o indígena que teremos sido não deveria ser decidido apenas pelo nosso interesse político, mas também e sobretudo pela política do nosso desejo, que é também o da psicanálise. Precisamos da abordagem psicanalítica para dar lugar àquele desejo inconsciente que é irredutível a qualquer interesse e que representa a principal forma como o excluído aparece em um sistema de exclusão como o colonial. Nas regiões colonizadas, como já observou Martín-Baró, não podemos adotar uma abordagem positivista que “não reconhece nada além daquilo que é dado”, ignorando “o que a realidade existente nega, ou seja, o que não existe mas que seria historicamente possível, se outras condições fossem atendidas”[32]. Esse possível e negado, com uma existência puramente negativa, é o que se manifesta no desejo que ouvimos na psicanálise. É algo ainda pendente e futuro, mas também passado, que insiste desde o ponto mais remoto da nossa história, desde o pré-colonial, tão eterno como tudo no inconsciente.

17. Nosso desejo é traído pelo Eu, o que não deveria nos surpreender, considerando que o Eu sempre foi um instrumento de repressão, dominação e colonização. Dussel deve ser levado a sério ao revelar o “ego conquistado”, o eu conquistado da civilização europeia, dentro do “ego cogito”, o “penso, logo existo” em que a própria civilização foi encerrada. Como Ramón Grosfoguel muito bem explicou, o “solipsismo” do eu isolado está no centro do mito do europeu autogerado na “racionalidade universal que se confirma como tal”.[33] O universalismo europeu é inseparável do narcisismo do Eu que é questionado na psicanálise. O questionamento psicanalítico do narcisismo pode servir para tornar transparente o espelho europeu de nossa identidade colonial, quiça desaparecendo não apenas o outro especular de nosso eu, o indivíduo isolado com seu egoísmo e solipsismo, mas também o universalismo e o imperialismo como expressões coletivas da mesma individualidade solipsista e egoísta.

18. Liberando nossa palavra, a palavra em que duvidamos de nosso Eu e de tudo o que ele se imagina com absoluta certeza, a psicanálise está sitiando e ameaçando o mais poderoso bastião da colonialidade no sujeito. A identidade, a certeza de ser idêntico a si mesmo, constitui a garantia última do europeu com o qual nos identificamos. Ao permitir a desidentificação, o método psicanalítico já está minando a colonialidade no sujeito. Também o está minando ao permitir que nos separemos de nosso ser, que nos desatemos dele, que existamos com respeito ao que a colonialidade nos destinou a ser. Ao nos desvencilharmos dessa maneira de nossa essência e de nossa identidade, talvez já estejamos efetivamente nos libertando da opressão colonial com a ajuda da psicanálise. Talvez, em última análise, como sugeriu Thamy Ayouch, o método psicanalítico já esteja nos descolonizando ao contribuir para nossa desidentificação e desessencialização.[34]


[1] Aníbal Quijano, Colonialidad y Modernidad/Racionalidad, Perú Indígena 13 (29) (1992), p. 20

[2] Bronislaw Malinowski, La sexualité et sa répression dans les sociétés primitives (1932), París, Payot, 2016.

[3] Jacques Lacan, Les complexes familiaux dans la formation de l’individu (1938), em Autres écrits, París, Seuil, 2001.

[4] Jacques Derrida, Géopsychanalyse and the rest of the world (1981), em Psyché. Inventions de l’autre (1987), París, Galilée, 1998, p. 328.

[5] Ignacio Martín-Baró, I. (1974). Concientización y currículos universitarios. Em Psicología de la liberación (pp. 131-160). Madrid: Trotta, 1998, p. 135

[6] Frantz Fanon, Peau noire, masques blancs, Paris, Seuil, 1952, p. 8

[7] Ibid., p. 75

[8] Aníbal Quijano, Colonialidad y Modernidad/Racionalidad, Perú Indígena 13 (29) (1992), p. 12

[9] Ibid., p. 16.

[10] Jacques Lacan, Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Seuil (poche), 1990, p. 307

[11] Jorge Alemán, Conjeturas sobre una izquierda lacaniana, Buenos Aires, Grama, 2013.

[12] Stuart Hall, Cultural Identity and Diaspora. En Jonathan Rutherford (Ed.), Identity: Community, Culture, Difference (pp. 222-237). Londres: Lawrence & Wishart, 1990, p. 232

[13] Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme (1955), París, Présence Africaine, 2004, p. 24.

[14] Gayatri Chakravorty Spivak, G. C. (1988). Can the subaltern speak? (1988) En P. Williams & L. Chrisman (eds.), Colonial Discourse and Postcolonial Theory (pp. 66-107). Nueva York: Columbia University Press, 1994, p. 104

[15] Luis Villoro, Los grandes momentos del indigenismo en México (1950). Ciudad de México: FCE, 2005.273

[16] Santiago Castro-Gómez, La hybris del punto cero : ciencia, raza e ilustración en la Nueva Granada (1750-1816), Bogotá, Pontificia Universidad Javeriana, 2005, pp. 18-19

[17] Walter Mignolo, El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. En S. Castro-Gómez y R. Grosfoguel (Eds), El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global (pp. 25-46). Bogotá, Siglo del Hombre, 2007, p. 33

[18] Ramón Grosfoguel, Descolonizando los universalismos occidentales: el pluri-versalismo transmoderno decolonial desde Aimé Césaire hasta los zapatistas. En S. Castro-Gómez y R. Grosfoguel (Eds), El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global (pp. 63-77). Bogotá: Siglo del Hombre, 2007, pp. 63-64.

[19] Frantz Fanon, Les damnés de la terre (1961), París, La Découverte, 2002, p. 146.

[20] Homi Bhabha, Of Mimicry and Man: The Ambivalence of Colonial Discourse. October 28 (1984), p. 126.

[21] Cheikh Anta Diop, Nations nègres et culture (1955), París, Présence africaine, 2007.

[22] Sigmund Freud, Moisés y la religión monoteísta (1939). Obras completas XXIII, Buenos Aires, Amorrortu, 1998.

[23] Edward Said, Freud and the Non-European (2002), London and New York, Verso, 2003.

[24] Stuart Hall, ¿Cuándo fue lo postcolonial? Pensar el límite. En S. Mezzadra (comp.), Estudios postcoloniales. Ensayos fundamentales (pp. 121-144). Madrid: Traficantes de Sueños, 2008, p. 134

[25] Stuart Hall, Cultural Identity and Diaspora. En Jonathan Rutherford (Ed.), Identity: Community, Culture, Difference (pp. 222-237). Londres: Lawrence & Wishart, 1990, p. 225.

[26] Oswald de Andrade, Manifiesto Antropófago (1928), en J. Schwartz (comp.), Las vanguardias latino-americanas (pp. 171-180), Ciudad de México, FCE, 2006.

[27] Rodolfo Kusch, América profunda (1962), em Obras Completas Tomo II (pp. 1-254). Buenos Aires: Fundación Ross, p. 19

[28] Luis Villoro, Los grandes momentos del indigenismo en México (1950). Ciudad de México: FCE, 2005. 272-273

[29] Silvia Rivera Cusicanqui, Hambre de huelga y otros textos. Querétaro: La Mirada Salvaje, 2014, p. 76

[30] Stuart Hall, Cultural Identity and Diaspora, Op. Cit., p. 231

[31] Gayatri Chakravorty Spivak, Estudios de la subalternidad (1985). En S. Mezzadra (comp.), Estudios postcoloniales. Ensayos fundamentales (pp. 33-68). Madrid, Traficantes de Sueños, 2008, p. 45

[32] Ignacio Martín-Baró, Hacia una psicología de la liberación (1986). En Psicología de la liberación (pp. 283–302). Madrid: Trotta, 1998, pp. 289-290.

[33] Ramón Grosfoguel, Descolonizando los universalismos occidentales: el pluri-versalismo transmoderno decolonial desde Aimé Césaire hasta los zapatistas. Op. Cit., pp. 63-64.

[34] Thamy Ayouch, Psychanalyse et hybridité: Genre, colonialité, subjectivations, Lovaina, Leuven University Press, 2018.

  • David Pávon-Cuellar participou da coletânea Contribuições Psicanalíticas a uma Políticas dos afetos, lançada pela Editora LavraPalavra e disponível aqui.

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1 comentário em “A psicanálise em face da colonialidade: 18 possíveis usos anticoloniais da herença freudiana”

  1. Sensacional
    Porém como podemos usar além do processo de descolonização nos não europeus mas o processo de conscientização dos que são europeus?
    Ou é automático que o processo de descolonização do não europeu já enfrente a ideia da colonização do europeu e que a auto consciência da destruição causada pelo seu imperialismo fica de escolha própria?

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