Por Gabriel Miranda
“O que é necessário explicar não é que o faminto roube ou que o explorado entre em greve, mas porque razão a maioria dos famintos não rouba e a maioria dos explorados não entra em greve.” – Wilhelm Reich
Em referência a Robinson Crusoé [1], Karl Marx empregou o termo “robinsonada” de maneira a satirizar os economistas políticos liberais, que entendiam os sujeitos como inteiramente livres e apartados das relações sociais nas quais se inserem. A sacada de Marx é que tal ideia absurda apenas pode parecer plausível se considerarmos a hipótese de um sujeito que vive em uma ilha deserta. Do contrário, no concreto do mundo real, o que existe são indivíduos que se situam em realidades sociais objetivas. Nesse sentido, em uma sociabilidade capitalista, a liberdade plena com que sonham os ideólogos do liberalismo não pode figurar como nada além de um desejo. Afinal, nossa liberdade é sempre coagida de alguma maneira pelo “deus dinheiro”.
Ainda que os liberais insistam nesse disparate de liberdade no capitalismo, como se esses termos não fossem autoexcludentes, um rápido jogo de perguntas e respostas pode colapsar o argumento liberal tal qual o WhatsApp , o Facebook e o Instagram colapsaram no início do mês. Farei as perguntas e deixarei as respostas a serviço daqueles que porventura leem este texto. Vamos lá! A liberdade de ir e vir é um direito civil fundamental, é verdade. Mas, se não tenho dinheiro para pagar pela minha locomoção, sou livre para “ir e vir”? Do mesmo modo, concordo que a liberdade de expressão é imprescindível. Todavia, é possível efetivá-la plenamente em um país em que os grandes meios de comunicação são monopolizados por menos de uma dezena de famílias? Por fim, se me encontro impossibilitado de obter alguma fonte de renda, sou livre para quê? Morrer de fome?
Recentemente, a notícia de que uma mãe teve a sua prisão decretada após furtar de um comércio uma quantidade de alimentos avaliada em menos de 22 reais revoltou a todos aqueles que ainda carregam consigo a capacidade de se indignar diante das injustiças. De modo a piorar a situação, no dia 7 de outubro, a prisão foi mantida pela 6ª Câmara de Direito Criminal de São Paulo. De acordo com matéria veiculada na Ponte Jornalismo em 11 de outubro, os argumentos utilizados pelo promotor e pela juíza para validar a prisão preventiva versavam sobre a “necessidade de manter a ordem pública”, tendo em vista que a mulher “representa um risco à sociedade”, principalmente pelo fato de já ter praticado furtos outras vezes.
Duas expressões do discurso jurídico supracitado são importantes destacar: “manter a ordem pública” e “risco à sociedade”. Em relação à primeira, não podemos dizer que é falaciosa a justificativa de que tal prisão pretende preservar a ordem. De fato, o que se deseja manter intocável – e é para isso que o Direito, enquanto um conjunto de saberes e fazeres, se presta – é a ordem. A ordem da desigualdade, da pobreza, da fome, da violência e do racismo que vigoram no Brasil desde a sua fundação. Trata-se da mesma “ordem” produtora de sujeitos que, por serem violados de todas as formas, encontram no furto e em outras ilegalidades uma estratégia de sobrevivência.
Além disso, em relação ao argumento de que a acusada oferece “risco à sociedade”, cabe indagar qual o risco que uma mulher que cometeu um crime sem violência e sem vítimas pode oferecer para a sociedade. É evidente que eles não se referem do risco à vida. Afinal, quem furtava o fazia sem armas e sem grave ameaça. Mas a mulher acusada acarreta sim um risco à sociedade: à sociedade capitalista. Pois, com o seu ato, ela confronta a propriedade privada, um dos pilares sob o qual se erige o capitalismo. E anuncia – mesmo que não tenha consciência disso – que a vida e o alimento dos seus filhos valem mais do que as leis que foram criadas para defender os interesses da classe dominante. Isso o Direito e os seus deuses de toga não podem admitir.
Contudo, o show de robinsonadas ficou a cargo do desembargador Farto Salles, que, em sua decisão de manter a prisão – acompanhada pelos outros desembargadores Eduardo Abdalla e Ricardo Tucunduva –, argumentou, de acordo a matéria da Ponte Jornalismo, que a mulher apresentava “índole indiscutivelmente voltada à delinquência ou persistência na senda do crime, revelando-se a segregação imprescindível para se obstaculizar risco real de novas recidivas, considerado o caráter nocivo próprio daqueles que fazem dos delitos seu modo de vida”. Referindo-se à ruptura do vínculo familiar entre a mulher e os filhos, Farto Salles acrescentou que “ela mesma seria a culpada de permanecer longe dos filhos pelo crime que cometeu”.
São três as robinsonadas do parecer do desembargador que gostaria de comentar. Em primeiro lugar, ao defender a prisão utilizando como argumento o fato de a acusada apresentar uma “índole indiscutivelmente voltada à delinquência”, Farto Salles abraça a criminologia liberal, desconsiderando todos os fatores que estão envolvidos na produção de um ato definido como criminoso e se situam além do indivíduo. Ou seja, desconsidera a situação de vulnerabilidade na qual a mulher se insere. Para esse argumento tacanho, quem rouba gêneros alimentícios que totalizam míseros 22 reais o faz porque tem má índole e não porque as condições adversas tornaram aquela prática uma opção de sobrevivência.
Em segundo lugar, ao optar pela pena privativa de liberdade em detrimento de uma medida alternativa para a responsabilização de um crime sem vítimas, o desembargador adota o encarceramento em massa como estratégia de gestão da miséria. Repetindo a ladainha liberal, diz ele que a segregação é imprescindível para aqueles que fazem dos delitos seu modo de vida, como se a acusada tivesse optado de livre e espontânea vontade por furtar comida para alimentar a sua família. Por causa de robinsonadas como essas é que o sistema penitenciário brasileiro é o que é: um depósito de pobres, com cor e endereço bem delimitados, onde cerca de 35% dos presos ainda não foram sequer julgados. A terceira robinsonada que chamo atenção é o fato de Farto Salles, de modo vil, culpar a mãe – que roubou para alimentar seus filhos – pela medida privativa de liberdade que lhe separa das crianças. Aqui, de forma cínica, age como se a prisão fosse a única forma de proceder no caso e ainda transfere a responsabilidade para a acusada.
Ademais, nenhuma palavra a respeito da condição de pobreza envolvida no processo de produção do crime em questão é mencionada ao longo do parecer. Ao contrário, o desembargador afirma que “fosse a dificuldade financeira, por si só, suficiente para delinear o estado de necessidade, a maior parte da população receberia um bill de indenidade [garantia de impunidade] voltado à prática dos mais diversos delitos, algo temerário”. Nesse trecho, nota-se o esforço de Farto Salles em criar um espantalho da situação a fim de causar pânico social. Um espantalho, pois, como faço questão de reiterar ao longo do texto, trata-se de um furto de alimentos no valor de 22 reais, cujo meio para responsabilizar a acusada não necessitaria ser a prisão, ainda que não estivéssemos tratando de uma mãe que cuida de seus filhos pequenos.
Em nenhum momento Farto Salles tece alguma consideração sobre a necessidade de alterar a condição de pauperismo que assola a população brasileira. Trata tal fato como natural e preocupa-se apenas em punir aqueles que, porventura, infrinjam a lei, não em garantir oportunidades para evitar que furtar ou praticar outra ilegalidade se apresente como uma estratégia de sobrevivência para largos setores da população brasileira. No frigir dos ovos, o que tal discurso pretende é trabalhar a fim de que a prisão da acusada sirva de exemplo para que outras pessoas não ousem atravessar a barreira sagrada de defesa da propriedade privada.
Para além de representarem uma postura execrável, é necessário notar que não há propriamente uma irregularidade no ofício dos operadores do Direito citados ao longo deste texto. Os argumentos do juiz Farto Salles, por exemplo, não se situam à margem da lei. Se interpelado acerca de sua posição, provavelmente dirá: “é o meu trabalho, estou cumprindo a lei”. E, ao dizer isso, ele não estará mentindo. Na condição de operador do Direito, esse pode ser entendido como o seu trabalho. E uma decisão como essa, que está longe de figurar como um caso isolado, constitui-se como o padrão de funcionamento do poder judiciário: uma máquina de punir os pobres e manter ileso o direito sagrado à propriedade privada, não importa o que aconteça.
Além da situação descrita neste texto nos fornecer um conjunto de exemplos clássicos das robinsonadas do Direito Penal, temos também um caso que expressa com excelência a função que esse saber-fazer adquire no capitalismo. Função esta que poderia ser sintetizada na máxima de Eduardo Galeano, que nos lembra que “a justiça é como uma serpente, só morte os pés descalços”. Enquanto Bolsonaro e sua turma – com diversos crimes de responsabilidade e mais de 480 mil mortes [2] evitáveis provocadas por uma política deliberada de genocídio – seguem impunes, o Direito Penal continua, como sempre, direcionando suas acusações e suas sentenças aos que roubam para ter o que comer. Nesse contexto, ao mesmo tempo que a burguesia e seus burocratas dormem o sono dos anjos, a classe trabalhadora amarga as garras de um sistema de justiça classista e da violência policial.
Por fim, informo que com este texto não pretendo ensinar os juízes a executarem seus ofícios. Desejo apenas contribuir para tornar público o modo como suas práticas estão a serviço de um projeto societário excludente. Desse modo, interessa-me desmontar a falaciosa ideia, amplamente divulgada pela maioria dos juízes e outros profissionais, de que o Direito é neutro – ou pior, é justo. Todas as robinsonadas do Direito citadas no decorrer deste artigo são exemplos da maneira pela qual o discurso liberal, assentado na ideia de meritocracia, opera como um dispositivo de inversão do real, fazendo com que a vítima se torne o culpado e, nessa condição, tenha sua punição legitimada.
Embora a criminalização da pobreza seja algo que faz parte da formação social brasileira assim como a feijoada, indignar-se diante da barbárie ainda é uma tarefa necessária se quisermos superá-la. Que, então, nos indignemos e canalizemos nossa revolta na organização política de um projeto de transformação da sociedade em benefício daqueles que são explorados e oprimidos, ou seja, de nós mesmos. Como no título de um poema de Bertolt Brecht: é preciso agir!
É preciso agir!
Bertolt Brecht
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo
Gabriel Miranda é cientista social, professor e educador popular. Publicou, entre outros livros, “Necrocapitalismo: ensaio sobre como nos matam” (LavraPalavra Editorial, 2021) e, em conjunto com Ilana Paiva, “Juventude, crime e polícia: vida e morte na periferia urbana” (Editora CRV, 2019). Atualmente, é aluno do último ano do doutorado em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Notas:
[1] Personagem desenvolvido pelo escritor inglês Daniel Defoe no romance homônimo. Na história, após um naufrágio, Robinson Crusoé vive em uma ilha isolada da sociedade durante 28 anos.
[2] De acordo com os dados disponibilizados na plataforma Our World in Data, estima-se que pelo menos 480 mil mortes poderiam ter sido evitadas até o dia 10 de outubro de 2020 se a mortalidade por Covid-19 no Brasil tivesse acompanhado a média mundial, fato que se tornou inviável devido ao projeto negacionista que orientou toda a gestão da pandemia, atrasando, inclusive, a aquisição de vacinas.