As raízes da violência sexual

Por Sandra Bloodworth, via Marxist Left Review

“Não há soluções fáceis, mas os socialistas têm que partir da realidade e do que tem a possibilidade de um resultado progressivo, não cair atrás de campanhas cínicas por aqueles em posições de autoridade que são responsáveis pelas condições que reproduzem a violência sexual. Sentimentos de atomização, a noção de que todos nós somos apenas indivíduos sujeitos a forças além de nosso controle é um dos pilares do capitalismo e um sentimento que desmobiliza a classe trabalhadora. Essa atomização empurra os trabalhadores a procurarem uma força que possa oferecer alguma proteção contra ameaças individuais. Como não há atualmente nenhuma força de massa organizada da classe trabalhadora que possa realisticamente prevenir o comportamento antissocial, a preocupação com a violência leva virtualmente inevitavelmente a uma maior identificação com a autoridade.”

Os problemas mais profundos da vida moderna fluem da tentativa do indivíduo em manter a independência e individualidade de sua existência contra os poderes exteriores da sociedade, contra o peso da histórica herança e da cultura externa e da técnica da vida.

Georg Simmel, “The Metropolis of Modern Life” [A Metrópole da Vida Moderna, tradução livre] (1)

O que os [indivíduos] são coincide com sua produção, tanto com o que eles produzem e como eles produzem. Por isso, o que os indivíduos são depende das condições materiais de sua produção…[Não partimos do] que os homens dizem, imaginam, concebem, nem dos homens narrados, pensados, imaginados, concebidos, para chegar aos homens na carne; mas do real, os homens ativos e na base de seu real processo de vida nós demonstramos o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e os ecos desse processo de vida.

Marx e Engels, A Ideologia Alemã. (2)

 

Vinte e cinco anos atrás o slogan “Quebrar o silencio sobre a violência sexual!” ecoou em torno dos campos universitários e das ruas da Austrália. Em 1991 os governantes foram forçados a ao menos aparecerem para levar o problema da violência contra a mulher a sério. O governo Vitoriano desenvolveu uma série de propagandas de TV voltadas a mudar as atitudes da comunidade sobre violência doméstica. Durante os governos da década de 1980, forças policiais e corpos oficiais realizaram um número sem precedentes de inquéritos e conferências sobre violência contra as mulheres, cada vez mais concentrando na violência doméstica. Até mesmo a polícia federal australiana publicou Violência Doméstica: Notas para a Orientação de Oficiais da Polícia! (3) Em 1993 a violência doméstica foi o tópico da discussão na mídia. No dia 3 de junho o The Age publicou duas manchetes, “A Guerra Contra as Mulheres” e “A Epidemia da Violência”. (4)

Nas duas décadas intervindas, ocorreram significativas rupturas no discurso público circundando a questão da violência masculina contra as mulheres. Uma enquete de 2014 do Guardian dos chefes de polícia de cada estado encontrou apoio unânime entre eles por campanhas destinadas a “enfrentar” a violência doméstica e uma vontade de reconhecer as inadequações da ação policial no passado. (5) O então comissário de polícia Vitoriano Ken Lay culpou “a ampla cultura onde atitudes vulgares e violentas às mulheres são comuns.” A maioria deles referiram-se à necessidade de definir sistemas e serviços de suporte para sobreviventes de violência familiar. (6) Nenhum se referiu à onde as mulheres caminham à noite ou as roupas que elas usavam - muito longe do silêncio que antes cercava a violência doméstica ou das velhas suposições de que as mulheres devem ter pedido por ela, ou simplesmente inventado mentiras. Tony Abbott, mais conhecido pelo chauvinismo masculino na sua cara do que pelo apoio aos direitos das mulheres, tornou a violência doméstica uma prioridade urgente para o Conselho dos Governos da Austrália em 2015 e apontou Ken Lay e a australiana do ano Rosie Batty como membros fundadores de um painel consultivo sobre violência contra as mulheres.

Muito foi, portanto, mudado em relação a violência doméstica e a vontade das autoridades em reconhecê-la. Positivo como isso é em muitos aspectos, o foco na violência doméstica criou, no entanto, uma impressão distorcida do fenômeno da violência sexual na sociedade como um todo, que pode formar um impedimento a compreender completamente o problema e como lidar com isso. A evidência de abuso generalizado e variado é incontestável: abuso entre parceiros íntimos LGBTI; abuso de crianças, os idosos, enfermos e doentes mentais nas escolas, igrejas e outras instituições encarregadas de seu cuidado; estupro masculino; violência masculina contra as mulheres nas forças armadas; e a utilização de intimidação e violência sexual em regimes de guerra e tortura. Nesse artigo eu irei argumentar que a violência sexual contra as mulheres só pode ser completamente compreendida no contexto desse abuso sexual muito mais amplo. Ao considerar evidências concretas, recorrerei principalmente à experiência australiana, embora algumas sejam dos EUA, um país com padrões de vida e tradições políticas comparáveis. Embora seja verdade que a violência contra mulheres seja intratável na Austrália e nos EUA, em países onde os direitos das mulheres são ainda menos reconhecidos e os níveis de violência suportados são frequentemente mais extremos. Uma análise comparativa próxima será necessária de modo a explicar diferenças e similaridades entre diferentes culturas e experiências históricas.

Eu argumento nesse artigo que o abuso sexual é profundamente enraizado nas estruturas do capitalismo. O capitalismo é um sistema em que a produção de mercadorias e a criação de riqueza é um processo que domina os seres humanos, não sob nosso controle democrático e subordinado as nossas necessidades. Esse é o contexto social em que a existência e a predominância do abuso sexual precisam ser compreendidas. Nesse contexto eu explico porque hierarquias de autoridade e status são todas situações de abuso, e examinando a sexualidade sob o capitalismo, eu sugiro porque tanto desse abuso é sexual. O capitalismo é além disso um sistema instável de crises, então eu também analiso o impacto nas últimas três décadas de neoliberalismo, a principal forma pela qual a classe capitalista tem procurado lidar com o fim do longo boom do pós-guerra. Isso ajuda a explicar as respostas inadequadas dos governos, e porque eles não fizeram nenhum impacto notável sobre os níveis de violência sexual.

Essa analise aponta para o que os marxistas têm sempre sustentado, que embora seja possível mitigar a violência contra as mulheres (7), ela nunca será erradicada enquanto o capitalismo governar. Uma sociedade sem violência sexual, e uma na qual as mulheres são realmente livres e iguais, apenas será possível quando o capitalismo for destruído em suas raízes e galhos. (8) Esse tipo de programas, campanhas e ações designadas para eliminar completamente a violência sexual irá, portanto, apenas ser efetiva na medida em que elas ajudem a contribuir pela construção de uma necessária consciência de classe, solidariedade e organizações coletivas que serão vitais para conquistar esse fim.

Por que os governos não enfrentam realmente a violência doméstica

Em um primeiro olhar pode parecer que a violência e abuso sexual é entrincheirado por causa do silencio no qual é tradicionalmente envolto, particularmente dentro da igreja e outras instituições. Mas apenas quebrar esse silêncio tem feito bem pouca diferença. As manchetes e artigos da mídia comum ainda proclamam haver uma “epidemia” de violência familiar, e muitos sugerem que isso está ficando pior. (9) É muito difícil obter uma imagem clara da prevalência da violência sexual contra as mulheres. Devido à polícia ter bem sucedidamente convencido as mulheres que as denúncias seriam levadas a sério, as taxas de relatórios estão crescendo. Mas um crescimento de relatos não necessariamente se correlaciona com um crescimento em instâncias atuais de violência ou abuso. Taxas atuais e suas tendências acompanhantes são notoriamente difíceis de mensurar. Algumas estatísticas são utilizadas de formas que não distinguem entre violência sexual e outras formas de violência ou abuso familiar. E pesquisadores têm apontado que mesmo em entrevistas privadas muitas pessoas não admitem o abuso, porque isso as faz sentir vergonha, sofrendo por ideias internalizadas que elas devem de alguma forma ter contribuído por isso. Para outros, isso ainda parece um assunto privado difícil de discutir. Na enquete do Guardian acima, contrariamente a maioria das afirmações e percepções públicas do aumento das taxas de violência, Tasmânia, o Território Norte e Queensland reivindicaram que a agressão de violência familiar tem diminuído no último ano. Mas qualquer que seja a tendência subjacente, há uma evidência muito pequena para sugerir que os níveis de violência de parceiros íntimos têm diminuído significativamente há mais de quatro décadas, a despeito de um número de reformas que tem melhorado a posição das mulheres.

Mulheres casadas não podiam trabalhar no serviço público até 1966. Até a década de 1970 as mulheres não podiam servir em um júri e podiam receber menos que um homem realizando o mesmo trabalho; o divórcio era muito difícil, o cuidado infantil quase inexistente, as mulheres solteiras eram ridicularizadas e o benefício de apoio para mães se tornou disponível apenas em 1973. Claramente as mulheres não eram cidadãos iguais. O primeiro refúgio de mulheres, nomeado Elsie, foi aberto apenas em 1974 no interior de Sydney. Ainda é muito difícil para as mulheres deixarem um homem violento, mas era virtualmente impossível para a maioria apenas três décadas atrás. A participação das mulheres na força de trabalho paga tem crescido constantemente de 48% em 1992 a 59.1% hoje, aumentando a possibilidade de independência econômica. (10) Isso indica que a combinação de propaganda para mudar atitudes masculinas, a conquista de algum grau de igualdade formal para as mulheres e o estabelecimento de serviços básicos para ajudar as mulheres deixarem relações violentas —todas as reformas que marxistas e feministas argumentaram serem necessárias para reduzir a violência sexual —parece ter feito pouca diferença. Isso precisa de alguma explicação.

O radicalismo de fins da década de 1960 e 1970 foi imbuído com otimismo; parecia que a reforma era inevitável e as lutas dos oprimidos estavam empurrando uma porta entreaberta que poderia se abrir, mesmo que fosse preciso um empurrão. Mas a recessão de 1975, os ataques da classe dominante e uma resposta política grosseira dos líderes sindicais do Labor Party [Partido Trabalhista] resultou em um declínio drástico na filiação do sindicato —de cerca de 54% de trabalhadores sindicalizados para 17% hoje. Essa ofensiva política criou uma crescente despolitização e um ambiente de direita. Isso por sua vez estabelece uma base para uma agenda neoliberal da classe dominante impor compreensivelmente uma ideologia de direita, o ataque no direito de se organizar dos trabalhadores e o corte de taxas sobre negócios. Os cortes nos gastos do governo em bem-estar, na saúde e educação colocou muitas famílias e indivíduos sob constante estresse. Esses ataques também realçam como a opressão das mulheres é estruturada dentro do sistema. a disparidade salarial entre homens e mulheres está aumentando, parcialmente explicada pelo fato de que 46.4% das mulheres trabalham apenas meio período, tornando-se quase 70% de todos os trabalhadores de meio período, mas também porque as indústrias onde as mulheres são dominantes tende a pagar menos do que onde os homens estão aglomerados. (11) O resultado tem sido uma redistribuição de riqueza da classe trabalhadora para a classe capitalista por mais de quatro décadas. (12) Mas isso não sacia a sede deles por mais. O orçamento da guerra de classe do governo Abbott de 2014 foi um movimento para avançar esse processo. (13)

Ao mesmo tempo que os governantes falam sobre confrontar a violência doméstica, alinhar oportunidades de foto no White Ribbon Day (N.T.: Dia Internacional para a Eliminação da Violência Doméstica, 25 de novembro, é o dia internacional em que as pessoas usam uma fita branca para mostrar que não toleram a violência contra as mulheres), configurar comissões reais, inquéritos e conferências intergovernamentais, eles estão cortando e “reestruturando” serviços sociais em maneiras que asseguram que a violência familiar irá continuar inabalável. Essa hipocrisia é o resultado de governos procurando cada vez mais promover, de forma oportunista, campanhas contra violência sexual para seus próprios interesses, enquanto ao mesmo tempo implementam políticas neoliberais de cortes e privatização.

Através dessas campanhas o Estado pode ser retratado como o protetor da integridade moral da sociedade, e ação contra violência sexual pode reforçar medidas repressivas como leis mais duras contra perpetradores e mais cadeias para fornecer os resultados. Isso encaixa com mais campanhas gerais de lei e ordem que refletem e reforçam mais terreno da direita na ausência da resistência que era possível na década de 1970. Mas mais do que isso, a interpretação de “preocupação” e apoio para mulheres contra crimes abomináveis aumenta potencialmente a posição da polícia na sociedade. Os governos sentem que pode aumentar sua credibilidade para implementar outras políticas reacionárias. Por causa da tendência à direita dentro do feminismo e com a esquerda seriamente enfraquecida, não há virtualmente nenhuma sobre pressão para implementar políticas que realmente fariam a diferença.

E isso é refletido no catálogo das medidas governamentais que enfraquecem a independência e a habilidade das mulheres saírem de relações abusivas. O governo Abbott alocou um orçamento desprezível de 16.7 milhões de por mais de três anos para a Campanha Nacional de Conscientização para Reduzir a Violência contra as Mulheres e suas Crianças em 2015. Financiamento para serviços legais de sem tetos e aborígenes totalizando 255.4 milhões ridiculamente inadequados, não oferecem segurança para esses dois programas por mais de dois anos. (14) Isso não compensa quase US $300 milhões em cortes nos serviços que afetam as mulheres que escapam da violência familiar.

Um sumário de alguma das consequências dos cortes e negligências torna isso claro. Em toda a Austrália, metade das mulheres procurando lugares para refúgio precisam ser hospedadas temporariamente em hotéis. O tempo esperando por um lugar está crescendo a todo momento porque os refúgios estão preenchidos com mulheres que não conseguem encontrar casas a preços acessíveis e não tem mais nenhum lugar para ir. Cinco anos atrás, as mulheres em Victoria tinham de esperar apenas uma noite em um hotel; agora elas precisam esperar uma média de cinco noites. Pesquisas mostram que 50% das mulheres que precisam ir para um quarto de hotel retornam no dia seguinte à casa em que elas saíram porque é apenas muito difícil. Apenas três em cada 100 locações de dois quartos eram acessíveis para uma mãe solteira que vivia com assistência social no trimestre de dezembro de 2014. Não há programas para mudar essa situação, ainda que embora seja bem conhecido que a lacuna de hospedagem é uma das principais razões de as mulheres não conseguirem deixar uma relação abusiva. No entanto, o governo cortou o financiamento para o acordo de Parceria Nacional para os Sem-Teto de $44 milhões, sem orçamento alocado para ele após 2015. Se a parceira é cancelada, como muitos esperam que seja, ao menos alguns serviços para sem-teto serão forçados a fechar. (15)

O ministro Liberal para as mulheres de NSW (Nova Gales do Sul, em inglês: New South Wales, abreviado como NSW), Pru Goward, proclamou no começo de 2015 que o governo está enfrentando a violência doméstica através das reformas “históricas” It Stops Here (Isso Para Aqui). Um valor miserável de $3.25 milhões por ano foi alocado por apenas três anos! (16) O que é “histórico” é o fato de que em seu orçamento de 2014, o financiamento para refúgios para mulheres e serviços especializados em violência doméstica e para mulheres sem-teto foi cortado e “reestruturado”.

É um labirinto deliberadamente complicado e complexo de mudanças— mas os resultados são claros como cristal. Ao menos 20 refúgios para mulheres em Sydney, alguns operando por mais de 50 anos, e dezenas de outros serviços para sem-teto e mulheres através do Estado, tiveram seu financiamento cortado. Nos últimos dois anos, 80 serviços foram perdidos; mais de 400 prestadores de serviços especialistas em violência doméstica para mulheres e sem-teto foram reduzidos para menos de 70. (17)

 

O resultado dessa reestruturação é verdadeiramente chocante. Os serviços foram informados que não poderiam licitar, em um processo de licitação a que todos foram submetidos, apenas para os serviços que vinham prestando. Além dos 20 abrigos restantes para mulheres, o restante foi entregue principalmente a instituições de caridade religiosas. Até mesmo o comissário assistente de polícia de NSW, Mark Murdoch, expressou preocupação: “É como OK, estávamos fazendo bom uso daquele abrigo, agora temos que encontrar outro lugar para encaminhar as vítimas.” (18)

Agora as mulheres abusadas procurando por um lugar em um refúgio precisam ficar em linha com todos os sem-teto. Frequentemente em estruturas frágeis, mulheres traumatizadas, os doentes mentais, até mesmo homens violentos são “protegidos” juntos. Em Maitland, Jan McDonald, CEO da Carrie’s Place, que tem sido um refúgio por 35 anos, disse ao Maitland Mercury sobre as consequências de não se permitir oferecer um refúgio apenas para as mulheres. Mulheres e homens da mesma família tiveram que ser acolhidos. Quase imediatamente eles tiveram a situação onde um homem “virou-se e vangloriou-se à mulher ‘Ha-ha, eles estão me ajudando também’.” (19)

Nós poderíamos adicionar muitos outros exemplos. Cortes para qualquer número de serviços que pode não parecer diretamente relevante tem um efeito em cascata. “Reestruturação” (leia-se: cortes) de Cuidados Médicos Locais pelo governo Abbott reduziram-nos de 61 para 31 em toda a Austrália. Muitos tem sido subordinado dentro de “super regiões”, com alguns realocados muitos quilômetros distantes, tornando-os inacessíveis. Muitos dos habitantes locais financiam centros de base que oferecem coisas como “gerenciamento da raiva para homens” e programas para melhorar a compreensão de questões relacionadas à violência sexual e educação sexual para jovens. (20) ao mesmo tempo em que todos esses cortes são impostos em nome do “balanceamento de orçamentos”, tanto o governo liberal quanto o trabalhista tem mantido determinado apoio ao programa de capelania notoriamente de direita em escolas no valor de um quarto de bilhão de dólares - um programa que promove estereótipos sexistas, homofobia e atitudes retrógradas que ajudam a alimentar a violência sexual não apenas contra as mulheres, mas também contra pessoas LGBTI, crianças e muitas outros em circunstancias vulneráveis. (21)

Os governos não podem simplesmente compreender mal as questões. Esse bastião da reação, a Comissão de Produtividade, instou os governos territoriais, estaduais e federais a aumentar o financiamento de serviços legais por $200 milhões, e o relatório da Allen Consulting, comissionado pelo Governo Abbott, descobriram que o financiamento para assistência jurídica já era inadequado para atender aos próprios objetivos do governo. Embora Michael Smith, o CEO do Centro Jurídico de Eastern Victoria, tenha dito a mídia Fairfax: “a violência familiar é cerca de um terço de todo o trabalho que os centros de comunidade jurídica estão realizando por todo o país, então é um pouco vazio falar sobre a violência familiar ser uma prioridade nacional enquanto você corta o financiamento desses serviços.” Quatorze centros em Victoria sozinhos perderam financiamento federal depois de o Governo de Abbott ter cortado $20 milhões dos centros de comunidade jurídica. (22)

Nem é preciso dizer que os cortes de serviços para comunidades indígenas tornam ainda pior uma situação já trágica. As mulheres indígenas têm 31 vezes mais chances de serem vítimas de violência doméstica do que as não indígenas. Os Serviços Jurídicos de Prevenção a Violência Familiar (FVPLS, na sigla em inglês), o único programa desse tipo dedicado às vítimas de violência familiar aborígenes e das ilhas do Estreito de Torres, sofreu um corte de $3.6 milhões no orçamento de Abbott de 2014. Em dezembro de 2014, quando o FVPLS se tornou a responsabilidade do primeiro-ministro Abbott, foi efetivamente reembolsado e não tem garantia de qualquer financiamento futuro. (23)

As prioridades do sistema não são as necessidades dos oprimidos e não visam melhorar as condições dos trabalhadores ou dar às pessoas mais controle sobre suas vidas. O lucro e o poder da classe dominante são a prioridade. Hoje isso significa mais cortes, menos direitos e menos influência sobre suas vidas para os trabalhadores e os oprimidos. A opressão das mulheres é um elemento-chave no arsenal que sustenta o sistema. E então o abuso sexual das mulheres está intimamente ligada as estruturas, necessidades e prioridades do capitalismo. (24) Nós iremos ver abaixo que as outras manifestações de violência sexual também são resultado dessa lógica.

Evolução da compreensão da agressão sexual

Antes do movimento de mulheres dos anos 1970, a maioria dos teóricos haviam sugerido que o estupro era uma perversão, que estupradores eram doentes mentais, alguns que o comportamento de estupradores era o resultado de uma socialização de uma figura materna forte ou uma figura paterna fraca; todos pintaram um quadro de indivíduos incapazes de controlar seus impulsos sexuais e agressivos, ou com medo de castração, tendências homossexuais e assim por diante. Como Donat e D’Emilio concluíram: “O foco era uma patologia.” (25)

Por mais de quatro décadas, a visão de feministas, marxistas e outros teóricos sobre violência sexual tem mudado continuamente. Os primeiros escritos da segunda onda do feminismo não lidavam com a violência sexual de uma maneira sistemática. (26) Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo - que foi em muitas maneiras um desafio para as ideias predominantes sobre as mulheres - argumentou que virtualmente todas as relações entre homens e mulheres constituíam violência. Ela usa toda a linguagem dos estereótipos de gênero do homem o parceiro forte e enérgico, as mulheres passivas, dominadas, submissas: a mulher é “tomada”, ela é “invadida”, ela “cede” aos avanços sexuais dos homens. (27) Para Beauvoir “a fêmea … é a presa das espécies.” (28)

Susan Brownmillher, uma feminista radical, quebrou o silêncio sobre estupro com seu livro Against Our Will [Contra Nossa Vontade, em tradução livre], publicado em 1975. Ela afirma que até uma discussão sobre estupro a que participou em 1970 ela pensava que “estupro não era uma questão feminista”, e que “o movimento de mulheres não tinha nada em comum com as vítimas de estupro.” (29) Diana Russel escreve que mesmo na década de 1980, feministas nos EUA eram relutantes em tomar a questão do estupro no casamento. (30) Quando ela eventualmente lidou com o assunto, Brownmiller fez um argumento cruelmente reducionista. As mulheres, ela afirmou, são psicologicamente vulneráveis ao ataque sexual, e uma vez que “os homens descobriram que podiam estuprar, eles começaram a fazer isso.” (31) Além de seus sérios erros teóricos e afirmações historicamente imprecisas, ela baseou seus argumentos sobre relatório de polícia, focando no perigo do perigo do estranho. Mas cedo a pesquisa revelou que a maioria dos abusos sexuais das mulheres era perpetrado por homens que elas conheciam - membros da família, amigos e vizinhos - e que a maioria da violência contra mulheres ocorre dentro das paredes do lar familiar. (32) Mesmo assim, a despeito do lento começo e da fraqueza teórica, os debates dentro do movimento de mulheres estabeleceram a visão de que o estupro masculino de mulheres como resultado da nossa cultura sexista. Alguns marxistas foram mais longe, argumentando que isso era resultado das estruturas do capitalismo e da alienação, sendo o sexismo o reflexo ideológico destes. (33)

A Realidade da Violência Sexual

Hoje, inquéritos dentro de igrejas e de cada instituição em que vulneráveis são colocados para cuidado tem revelado o fato frio e duro que o abuso sexual de crianças, tanto de meninas como meninos, e de idosos, deficientes e aqueles que sofrem de doença mental é comum em todos eles. Uma visão mais clara desse abuso sexual mais amplo é essencial para uma compreensão completa do abuso sexual de gênero e desenvolver estratégias para lidar com isso. Enquanto escrevo, a Comissão Real sobre Abuso Sexual Infantil Institucional está ouvindo evidências horríveis de uma rede de pedófilos de padres católicos em Ballarat, Victoria. Jesuítas, Irmãos Cristãos, freiras e outros em posição de autoridade em instituições católicas abusaram e traumatizaram um grande número de crianças em escolas da igreja e paróquias possivelmente desde a década de 1940, durante definitivamente a década de 1960, 1970 e 1980. Um terço da classe de uma testemunha desde então cometeu suicídio, parte de um padrão generalizado que enfatiza o abuso sexual endêmico sofrido por um número desconhecido de meninos e meninas. (34)

Por sua própria admissão, entre 1996 e 2013 a igreja distribuiu $48 milhões em compensação para as vítimas. Dado que o pagamento de compensação médio (baseado em figuras Vitorianas) é cerca de $36,000, isso em efeito é uma admissão de bem mais de mil casos de abuso sexual. Mais de 2,200 aproximaram-se do programa para compensação no meio de 2015, e muitas milhares de novas reivindicações de vítimas homens e mulheres são suscetíveis de resultar da comissão real. (35) Com negações e encobrimentos pela igreja, a defesa de abusadores por gente como o Cardeal George Pell e o bullying das vítimas, quem poderá dizer que acabou? Padrões similares têm sido revelados por inquéritos dentro de instituições como as igrejas Protestantes, escolas Judaicas e o Exército de Salvação. As crianças ainda são removidas por governos de famílias consideradas em risco e jogadas em situações onde, testemunhos em todas as investigações indicam, são muito propensas a sofrer abuso sexual.

Um número de estudos de abuso infantil na Austrália entre 2001 e 2010 foi resumido pelo Instituto de Estudos Familiares australiano (AIFS, na sigla em inglês). Eles se basearam em entrevistas com adultos com idades variando de 18 a 59. Todos esses pesquisadores perguntaram sobre abuso sexual com e sem penetração. Os abusos de meninas sem penetração relatados variaram de 20.6% a 33.6%, dos meninos de 10.5% a 15.9%. Mulheres relataram abusos com penetrações em taxas de 7.9% a 12% e homens de 4% a 7.5%. (36) Outra pesquisa conduzida em 2001 encontrou padrões similares se você comparar mulheres e homens: “Abusos sexuais sem penetração foi o dobro do comum entre mulheres (33.6%) do que homens (15.9%). Aproximadamente 12% das mulheres e 4% dos homens relataram experiências penetrantes não desejadas.” No entanto, os pesquisadores observaram que os homens mais velhos eram mais propensos a relatar abuso do que os jovens, e de mulheres que tiveram relações sexuais antes dos 16 anos, as mais velhas tinham maior probabilidade do que as jovens de dizer que não era consensual. Isso foi interpretado como implicado que as taxas de abuso sexual infantil estavam possivelmente declinando, mas isso é muito provavelmente uma suposição, especialmente porque a descoberta não é substanciada por pesquisas posteriores. (37) Outra fraqueza da pesquisa não mencionada no relatório da AIFS é que o sexo ou relação com o filho dos agressores (membros da família, professores, padres, etc.) não foi listado. Apesar das dificuldades, essas descobertas, mais clínicas do que as evidências anedóticas trazidas à vida pela comissão real, indicam que o abuso sexual de crianças não é insignificante e pode muito bem ser mais prevalente do que os números sugerem.

O website LGBT Same Same relata:

É considerado coloquialmente que a comunidade LGBT sofre violência doméstica em taxas similares a comunidade hetero. Os dados da CON observam que 41% das lésbicas e 28% dos homens atraídos pelo mesmo sexo experimentaram alguma forma de abuso em um relacionamento, combinando isso com 61.8% de homens transgêneros e 42.9% de mulheres intersexuais. (38)

Um estudo Vitoriano de 2008 encontrou que 26% dos entrevistados LGBT tinham experimentado esse abuso. Outra pesquisa indica que os estereótipos de gênero, homofobia e transfobia todos criam pressões que contribuem para níveis de abuso e dificuldade para acabar com ele. Mulheres relataram mais violência de parceiros íntimos do que homens gays. No entanto, pode ser mais difícil para homens admitir homens admitirem o abuso por razões relacionadas ao estereótipo de masculinidade e em particular de homens gays:

Coerção [s]exual entre homens gays têm sido considerada virtualmente oximorônica. Discursos dominantes de masculinade e sexualidade masculina…tornam a possibilidade de que o sexo pode ser indesejado para os homens como uma proposição quase impensável. (39)

 

Bianca Fileborn, uma pesquisadora da AIFS, comentou que alguns autores

tem argumentado que homofobia e heterossexismo são fatores fundamentais para distinguir entre violência em relações heterossexuais e LGBTQI, tanto em termos de habilidade dos agressores explorarem isso para sua vantagem, quanto em termos de formação de barreiras únicas para reconhecimento e denúncia de violência nas relações LGBTQI.

Ela concluiu:

a teoria feminista sobre violência sexual tem, em geral, excluído a possibilidade da ocorrência de violência sexual dentro de relacionamentos do mesmo sexo (e particularmente relacionamentos lésbicos, que as vezes foi descrito como uma “utopia” para as mulheres) focalizando quase exclusivamente ou conceituando a violência sexual como algo feito por homens a mulheres. Até certo ponto, isso contribuiu, embora não necessariamente de forma intencional, para a oclusão da violência sexual sofrida e/ou perpetrada por indivíduos LGBTQI. (40)

Também podemos dizer que fez com que o estupro masculino fosse uma área seriamente pouco pesquisada. Ficou claro que as taxas de abuso sexual que os homens experimentam são possivelmente consideravelmente mais altas do que se reconhecia anteriormente. Por um lado, sabe-se que o problema que os pesquisadores têm em entrevistas e subnotificação à polícia é ainda mais pronunciado entre os homens. Isso é particularmente um resultado da inadequada compreensão do estupro. Nos debates entre feministas, a palavra “estupro” foi interpretada por quase todas em um sentido muito estrito, como se houvesse estupro, ponto final: penetração da vagina por um pênis. Isso ignora os múltiplos tipos de estupro e especificamente as diferentes circunstâncias do estupro. (41) Como Lynne Segal argumenta contra feministas como Susan Grifin e Brownmiller que sustentou que homens não são estuprados, as mulheres são capazes de abusar sexualmente e estuprar homens, e homens são estuprados por outros homens. (42) Até 2012 o FBI definiu o estupro como um crime cometido apenas contra mulheres. Isso levanta a possibilidade de que o estupro de homens seja mais predominante do que se pensa, ao menos nos EUA essa definição serviu de base para pesquisa. (43) O entusiasmo por esse tópico por grupos de homens reacionários lançou uma sombra que desencorajou pesquisadores de esquerda a admitirem que homens são abusados e que algumas mulheres abusam. No entanto, o estereótipo dominante de gênero do homem agressivo e dominador nos encorajou a pensar nos homens como menos propensos a serem vítimas, ao contrário das mulheres “submissas”. Mesmo muitas pesquisas feministas foram afetadas por essas suposições e qualquer pessoa como as feministas socialistas Lynne Segal e Linda Gordon, que reconheceram que os homens são estuprados e que as mulheres podem ser abusadoras sexuais, foi recebida com hostilidade.

Em um artigo de 2008, Segal menciona 200 peças de pesquisa nas últimas décadas que concluiu que “as mulheres são tão fisicamente agressivas, ou mais agressivas, do que os homens em seus relacionamentos com seus cônjuges ou companheiros.” (44) Vinte anos antes Linda Gordon escreveu que “em certas circunstâncias, as mulheres eram tão propensas quanto os homens a usar violência física contra parceiros ou filhos”. Também impopular foi seu estresse sobre “pobreza e outras formas de privação material e deslocação cultural” como fatores contribuintes na violência doméstica. (45) Isso foi pensado para desviar da compreensão da dominação masculina. E tem acontecido que, por décadas, a maioria dos teóricos assumiu inquestionavelmente que o abuso sexual é um meio de dominação masculina das mulheres. Mas essa definição não nos equipa para entender o papel das mulheres em algo como a tortura na prisão Abu Ghraib, que ocorreu enquanto a General Janis Karpinski estava em comando. Soldados estadunidenses, cerca de metade dos quais são mulheres, participaram em práticas que incluíram, mas também outros métodos sexuais carregados de humilhação, tanto de homens quanto de mulheres. Prisioneiros masculinos foram forçados em poses que podiam ser fotografadas para estimular sexo oral. As humilhações incluíam ser forçado a vestir roupas íntimas femininas ou se masturbar na frente de seus algozes. Lynndie England, cujas poses de riso em meio a essa tortura sexual se tornaram uma imagem central associada à exposição dos crimes de soldados americanos, mais tarde diria no tribunal que as poses e atos eram todos para diversão dos soldados e ela não achava que era errado. O fato de os soldados terem enviado imagens desses ultrajes para a internet dá peso às suas declarações, embora ela mais tarde as tenha retirado em seu novo julgamento. (46)

No entanto, é o caso de pesquisadores como Richard Gelles, muito citado por grupos de homens que argumentam que os incidentes de violência doméstica são razoavelmente iguais entre mulheres e homens, aponta que os aponta que os níveis de danos infligidos pelos homens são significativamente piores, deixando as mulheres com mais sérias feridas. Embora o homicídio não seja um indicador dos níveis de abuso contínuo, as estatísticas de homicídio confirmam o argumento de Gelles. Dos 877 homicídios denunciados em NSW por mais de 10 anos até 2010, 108 foram mulheres assassinadas por seus parceiros íntimos. Ao longo de todos os dez anos, “não houve casos onde uma mulher foi uma abusadora de violência doméstica que matou um homem vítima de violência doméstica.” (47) Mesmo assim, como Segal argumenta contra seus críticos:

O ponto de admitir a existência da agressão de mulheres não contradiz de nenhuma maneira com a realidade cultural de que “masculinidade” é significada em termos de práticas de força física, assertividade e dominância sobre mulheres. (48)

Uma Pesquisa Nacional de Vitimização de Crimes de 2012-13 nos EUA, encontrou que em 40,000 famílias 38% daqueles que vivenciaram algum tipo de abuso sexual foram homens e 46% afirmavam a mulher como perpetradora. Não serve aos interesses das mulheres enterrar os fatos, nem negar aos homens que experimentaram abuso o apoio que eles precisam, simplesmente porque essas descobertas combinam com percepções ou expectativas sobre o abuso. (49) A publicação desses números causou uma tempestade indignada entre aqueles que estão envolvidos em campanhas pelas mulheres violadas por homens. No entanto, as ideias sobre abuso sexual evoluíram ao longo das muitas décadas, à medida que a pesquisa iluminou cantos sombrios da vida das pessoas, desafiando ideias preconcebidas. Quando a acadêmica jurídica feminista Lara Stemple leu o relatório do NCVS, ela ligou para consultar os resultados. Talvez eles tenham cometido um engano? Agora nós temos os resultados de um estudo e pesquisa exaustivos de dois anos por ela e Ilan Meyer, publicado no American Journal of Public Health, que encontrou “vitimização sexual difundida entre homens nos Estados Unidos”. Essa não é a bem conhecida propaganda antifeminista sobre “direitos masculinos”. Pelo contrário, sua pesquisa inovadora é descrita por eles como explicitamente baseada em “princípios feministas que enfatizam equidade, inclusão e abordagens interseccionais; a importância da compreensão de relações de poder; e o imperativo de questionar as premissas de gênero”. Eles argumentam:

A vitimização sexual das mulheres foi ignorada por séculos. Embora continue tolerada e enraizada em muitos lugares do mundo, as analises feministas percorreram um longo caminho para revolucionar o pensamento sobre abuso sexual de mulheres, demonstrando que a vitimização sexual de mulheres está enraizada nas normas de gênero e é digno de intervenção social, jurídica e de saúde pública. Nosso objetivo foi construir sobre este importante legado, chamando atenção para a vitimização sexual masculina, uma área de estudo esquecida.

Damos uma nova olhada em várias descobertas recentes a respeito da vitimização sexual masculina, explorando explicações para os persistentes erros que a cercam.

Eles concluem:

Representações da vitimização sexual reforçam o estereótipo do paradigma da vitimização sexual, compondo perpetradores masculinos e vítimas femininas. Como nós demonstramos, a realidade em relação a vitimização sexual e de gênero é mais complexa. (50)

A violência sexual contra homens em prisões é agora o tema de pesquisa nos EUA, onde um número tão grande de homens está encarcerado, não poderia mais ser ignorado. Em um artigo de Jill Filipovic no The Guardian intitulado “É o EUA o único país onde os homens são mais estuprados que mulheres?” indicando a grandeza da questão vindo à luz com pesquisa preliminar. (51) O que reflete parcialmente os números horrendos em prisões nos EUA. Na Australia a questão do abuso sexual em prisões continua pouco pesquisado. David Heilpern fez a única pesquisa série sobre homens estuprados em prisões que eu vi. Ele encontrou que mais de quarto daqueles que ele entrevistou denunciou terem sido abusados sexualmente. Mais da metade disseram que ter sofrido de ameaça abuso sexual. (52)

Não apenas é revelado agora o predomínio difuso do abuso sexual, mas todas as evidências demonstram que as instituições supostamente respeitáveis, tidas como pilares de uma sociedade decente, tomam medidas extraordinárias, como ameaças, manobras, milhões de dólares em batalhas judiciais ou ofertas de suborno, para silenciar os sobreviventes. Centenas de milhares de pessoas ao longo de dois séculos na Austrália branca olharam de outra forma—isto é, se eles não fossem cúmplices dos crimes. Violência sexual—não apenas entre parceiros íntimos, não apenas contra mulheres ou adultos, mas também contra qualquer grupo vulnerável ou oprimido—é endêmico nessa sociedade.

A violência sexual contra mulheres não está acontecendo isoladamente desses exemplos generalizados. Isso levanta questões fundamentais: por que as pessoas abusam sexualmente daquelas em seu cuidado e por que instituições respeitáveis fecham os olhos? Para responder, nós precisamos nos voltar para a totalidade do sistema capitalista e as consequências de como este é organizado.

Capitalismo, exploração, opressão, alienação

Assim que você nasce eles fazem você se sentir pequeno

Não lhe dando tempo ao invés de tudo

Até que a dor seja tão grande que você não sinta nada

Eles te machucam em casa e eles te batem na escola

Eles te odeiam se você é esperto e eles desprezam um tolo

Até você ficar tão louca que não consiga seguir suas regras

Quando eles te torturaram e ameaçaram por 20 anos estranhos

Então eles esperam que você escolha uma carreira

Quando você realmente não consegue funcionar, você fica tão cheio de medo

Manter você dopado com religião, sexo e TV

E você se acha tão inteligente, sem classes e livre

Mas vocês ainda estão fodendo camponeses, pelo que posso ver

Há uma sala no topo; eles ainda estão dizendo a você

Mas primeiro você deve aprender a sorrir enquanto mata

Se você quiser ser como o povo da colina

John Lennon, Working Class Hero

Para Marx “toda servidão humana é envolvida na relação do trabalhador com a produção, e todas as relações de servidão são não nada mais que modificações e consequências dessa relação.” (53) Simplificando, todos os horrores e opressão que vemos em nosso entorno surge do fato básico da exploração da classe trabalhadora pelo capital e a maneira particular como isso é realizado. As análises que consideram as questões isoladas permanecem explicações parciais, porque elas oferecem apenas uma descrição desse “mundo encantado, pervertido, às avessas” divorciado de suas estruturas fundamentais. (54) Se nós queremos compreender a violência sexual nós precisamos começar com o fato mais básico do capitalismo e desenvolver uma imagem das estruturas e relações sociais, as ideologias e práticas estatais que tornam possível esse abuso generalizado.

A exploração em que o capitalismo se baseia dá origem à opressão da classe trabalhadora. Como essa opressão existe para a vasta maioria, ela é invisível comparada com a intolerância e discriminação experimentada por grupos que são reconhecidos como sofrendo de opressão específica. Mas o governo de uma minoria significa que a classe trabalhadora deve ser excluída sistematicamente de qualquer tomada de decisão real como classe. E como as letras selvagens de John Lennon resumem, está muito mais profundamente enraizado na experiência da classe trabalhadora do que simplesmente na tomada de decisões econômicas ou políticas. Como uma pequena minoria poderia viver explorando uma vasta maioria se aqueles que produzem a riqueza eram autoconfiantes, com um senso de autoestima? Lillian Rubin, uma escritora americana, resumiu a experiência dessa opressão e sugeriu alguma de suas consequências em seu livro Worlds of Pain: Life in the Working-Class Family [Mundos de Dor: a Vida na Família da Classe Trabalhadora, tradução livre]:

As crianças sabem. Elas sabem quando seus professores são desdenhosos sobre suas famílias… Elas sabem que não são os trabalhadores fabris, não são os caminhoneiros, não são os trabalhadores de construção que são os heróis dos programas de televisão que elas assistem. Elas sabem que seus pais não são aqueles que “contam”… E talvez o mais devastador de tudo, elas sabem que seus pais sabem dessas coisas também… Por que mais eles carregariam dentro de si tanta raiva – raiva que ataca irracionalmente em casa, raiva que é deslocada do mundo exterior, onde sua expressão é potencialmente perigosa? (55)

Sob o capitalismo, grupos particulares como as mulheres, povos indígenas, migrantes, pessoas LGBTI, minorias religiosas, crianças, os idosos e incapazes sofrem opressões específicas que dividem trabalhadores em uma miríade de maneiras, sujeitando algumas pessoas a múltiplas opressões.

Em segundo lugar, o fato de que esse é um sistema baseado na produção universal de mercadorias tem profundas implicações para as relações humanas e a maneira como a sociedade é organizada. A massa de produtores é despojada de qualquer controle dos meios de produção; a habilidade dos trabalhadores de trabalhar é tornada a si mesma uma mercadoria, seu preço definido no mercado e pago pela hora. Os trabalhadores trabalham não para produzir o que eles precisam, mas para receber um salário. Esta mesma atividade, que deveria ser criativa e afirmativa, torna-se nada mais que escravidão, produzindo riqueza para aqueles que dominam nossas vidas, e de fato aumentando seu poder sobre nós. Os produtos do labor dos trabalhadores permanecem como objetos alienados, como um poder acima e se opondo a eles. Essa alienação significa que, para o trabalhador, a vida parece ser dominada pelos produtos de seu trabalho. Parece que nossas vidas estão sob o controle de forças estranhas e incontroláveis como “a economia” e “o mercado”. Nas palavras de Marx:

A desvalorização do mundo dos homens cresce na proporção direta do crescimento do valor do mundo das coisas. O trabalho não produz apenas mercadorias; ele também produz a si mesmo e os trabalhadores como uma mercadoria. (56)

O fato de que tudo é trocado, não entre aqueles que fazem as coisas, mas no mercado impessoal, obscurece como o capitalismo funciona. Trabalhar para produzir mercadorias para um mercado impessoal obscurece as conexões sociais entre aqueles que as fabricam e aqueles que irão utilizá-las eventualmente. Os trabalhadores não têm o que dizer sobre o que é produzido e extremamente pouco sobre o que eles vão produzir. Eles geralmente não têm o luxo de decidir que preferem fazer algo útil, como painéis solares, em vez de armas. E então “o caráter social do trabalho os homens aparece para eles como um caráter objetivo estampado nos produtos de seu trabalho… [A] define as relações sociais entre homens…assume, em seus olhos, a forma fantástica de uma relação entre as coisas.” (57) Como Marx argumentou anteriormente no capítulo um d’O Capital, ele conclui perto do final do terceiro volume. “No capital… nós temos a completa mistificação do modo de produção capitalista, a conversão das relações sociais em coisas.” (58)

Isso resulta no afastamento de um ser humano de outro, e o mundo é experimentado como estranho e fragmentado. Como Bertell Ollman diz, “o todo se fragmentou em várias partes, cuja inter-relação com o todo não pode mais ser verificada. Esta é a essência da alienação.” Esta “fragmentação da natureza humana em uma série de partes equivocadas”, (59) e a atual dominação do capital sobre nossas vidas, cria no explorado a sensação de impotência e lança um véu de mistificação sobre as estruturas de exploração. O mercado, mais o fato de que nossa habilidade do labor é uma mercadoria, pago não pela qualidade ou pela utilidade do que nós fazemos, mas por hora, obscurece como o capitalismo funciona. Sendo assim, é difícil rejeitar as ideias dominantes—ideias do senso comum que parecem refletir a experiência, como a de que nós precisamos de patrões para organizar a sociedade, nós somos todos indivíduos, responsáveis pelo que nós fazemos em nossas vidas, as mulheres não são adequadas para desempenhar assuntos de estado, a única relação sexual “natural” é heterossexual e assim por diante. Isso explica por que a massa do povo aceita alguma versão da ideologia da classe dominante.

Marx desenvolveu ainda mais nossa compreensão desse sistema “cujas leis inerentes se impõem apenas como meio de irregularidades aparentemente sem lei.” Quem sabe se o valor social atual, medido pela quantidade de trabalho necessário para sua produção, corresponde atualmente ao seu preço no mercado? Ao contrário de um sistema de troca simples, não é previsível. E então “o preço deixa de expressar totalmente o seu valor. Objetos que não são em si mesmos mercadorias, como a consciência, honra, etc., são capazes de serem oferecidos para venda.” (60) E assim tudo pode se tornar uma mercadoria no capitalismo para ser comprada e vendida, incluindo lazer, a promessa de gratificação sexual real por um preço, até mesmo prestígio e status. O atendimento aos vulneráveis está à venda e tem lucro, assim como a tortura e a perseguição.

Ha aqueles que argumentam que a alienação afeta a todos e dessa forma não poderia explicar algo como o abuso sexual porque nem todo mundo é abusado. É verdade que a alienação não é apenas sobre a experiência individual, é uma condição abrangente e onipresente do capitalismo. É precisamente por isso que é o nosso ponto de partida, não porque todo ato individual ou grupal possa ser lido a partir desse insight de alguma forma reducionista e mecânica. Mas fornece uma explicação básica do porquê tais comportamentos podem ocorrer de qualquer maneira e porque o abuso não é apenas um fenômeno de gênero, mas pode assumir várias formas. O método de Marx é passar do abstrato ao concreto. O concreto, especialmente no capitalismo, onde as estruturas sociais são tão obscurecidas, só pode ser compreendido em uma estrutura teórica. Os fatores de mediação que influenciam como essa alienação é expressada e experimentada precisa ser investigado para entender o abuso sexual. Nós precisamos analisar fatores como o papel dos estereótipos das mulheres como objetos sexuais para serem controlados e utilizados para satisfazer as necessidades dos homens, a socialização de homens para assumir seu direito de dominar outros, a promoção por aqueles em posição de autoridade e influência de homofobia, transfobia, atitudes lascivas em relação ao sexo, a discriminação contra incapazes e assim por diante. O papel da família, instituições que têm influência e controle sobre os vulneráveis, ideologias que justificam algumas formas de abuso, todas devem ser compreendidas em um contexto de uma sociedade particular, suas tradições, níveis de consciência de classe, o estado da luta de classe. Nada é atemporal ou imutável.

György Lukács, em História e Consciência de Classe, fornece uma importante exposição da marxista da alienação. Como parte disso ele explica como as burocracias estatais e instituições hierárquicas nivelam todas as relações humanas e amortecem a empatia humana. O sistema como um todo tem que se basear em cálculos e racionalizações; os trabalhadores se tornam pouco mais do que medições de tempo—os meios cronômetros, os cronômetros completos. Por exemplo, a comissão real sobre o abuso infantil retira qualquer identidade daqueles que relatam seus traumas e coloca os perpetradores e aqueles que esconderam seus crimes no mesmo nível de suas vítimas, referindo-se às “partes interessadas”. A resposta das instituições às acusações de abuso são notáveis pela sua humanidade. Por exemplo, a igreja Católica, que se promove como preocupada com o bem estar espiritual e temporal de seus seguidores, não pode responder de uma maneira humana e cuidadosa a pessoas que são claramente traumatizadas pela brutalidade de seus padres pedófilos. De acordo com Broken Rites, o objetivo de seu programa Towards Healing (Rumo a Cura, tradução livre) não é compensar monetariamente as vítimas, mas “é realmente uma estratégia de negócios, designada para proteger os ativos da igreja e sua imagem corporativa”. (61)

As hierarquias de autoridade exigem ordem e regulamentação, de modo que colocam algumas pessoas no comando de outras, com a responsabilidade de manter a ordem, disciplinando aqueles que não se submetem facilmente a sua autoridade. Mas as relações de mercado, o sistema de produção e competição de mercadorias são instáveis, contraditórias e destruídas por crises. Isso “requer que cada manifestação da vida” precisa exibir o fato de que os indivíduos são dominados pelo capital; que eles “são apenas parte de um mecanismo que pertence ao capitalista”. (62) O “destino dos trabalhadores” é típico da sociedade como um todo em que essa auto objetificação, esta transformação de uma função humana em uma mercadoria revela em toda a sua severidade a função desumanizada e desumanizante da relação de mercadoria.” (63)

No contexto dessa mistura tóxica, nós podemos começar a considerar porque o comportamento violento, controlador e autoritário é possível onde algumas pessoas têm autoridade e controle sobre os vulneráveis e oprimidos. O abuso não é apenas o produto de indivíduos disfuncionais. Pessoas são transformadas em predadoras quando desempenham um papel opressivo na hierarquia. Elas se tornam ferramentas para o papel ideológico que os executores de uma burocracia devem cumprir. Suas ações não são vistas como anti humanas, apenas “necessárias”. Pense no ministro e nos oficiais no departamento de imigração; para eles, refugiados e imigrantes são apenas objetos para fins de controle e propósito políticos. A maioria das instituições, como igrejas ou escolas ou igrejas, são fundadas com base do racionalismo formal. É sobre isso que Foucault está falando em Vigiar e Punir: eles regimentam estritamente a vida, em nome do “melhoramento” das pessoas que estão sujeitas a sua autoridade.

No entanto, existe uma suposição de que as pessoas são máquinas racionais, o que obviamente não são. Consequentemente, pelo menos alguns dos integrantes dessas instituições ficam um tanto ressentidos e às vezes resistem. Os guardas ou instrutores passam a se ressentir de suas acusações e desumanizá-los. Mas também, as pessoas responsáveis por uma hierarquia devem parecer modelos de racionalidade e disciplina iluministas. Isso significa que as pessoas que defendem uma hierarquia são tão reificadas (nos termos de Lukács) quanto aquelas que estão subordinadas a ela—com uma diferença importante sendo que seu sustento e status social estão ligados à sua reificação.

Por que abuso sexual?

Mas por que a intimidação e abuso sexual ocorre tão amplamente?

A alienação existe até certo ponto em todas as sociedades de classe porque os produtores não controlam toda a sua produção. Isso é levado ao extremo no sistema capitalista. Essa alienação é experimentada e expressa de diferentes maneiras. Marx e Engels identificaram a habilidade humana de trabalhar—usando ferramentas, nós mudamos nós mesmos conforme mudamos o mundo ao nosso redor—como o que separa os humanos do mundo animal, ao mesmo tempo em que nós permanecemos parte do mundo natural. a sexualidade também é parte da natureza humana. (64) Como os humanos evoluíram dos macacos, a fabricação de ferramentas mudou esses macacos em animais qualitativamente diferentes. O desenvolvimento de um ser sociável e cooperativo foi acompanhado por uma evolução na forma como se vivenciava o sexo. A sexualidade humana evoluiu de maneiras que envolviam um grau mais alto de prazer do que os macacos dos quais evoluímos, algo que se permite a qualquer momento e não está subordinado às necessidades de procriação. Ver a sexualidade como parte da natureza humana não é dizer que a maneira como humanos experimentam sexo, como nós vivenciamos a sexualidade ou exercitamos nossa capacidade de trabalho, são inextricáveis de alguma alma interior imutável. Cada sociedade constrói a maneira como a sexualidade é compreendida e vivenciada dependendo de como a produção e reprodução é organizada, (65) assim como nossa capacidade para trabalhar. Então, por instancia, o desejo pelo mesmo sexo claramente existiu em toda a história humana, mas foi interpretada e experimentada deformas radicalmente diferentes. Foi apenas com a ascensão do capitalismo, um modo de produção em que a noção de nós mesmos como indivíduos é intrínseca a ideologia dominante, que o conceito do indivíduo “homossexual” emergiu. Porque a sexualidade, como todos os aspectos da experiência humana, é socialmente construída. Como John D’Emilio comenta:

Alguns historiadores descartaram a visão de que a sexualidade é principalmente uma categoria biológica, um “impulso” ou “instinto” inato e imutável, imune às mudanças que caracterizam outros aspectos da organização social. Em vez disso, como um número de escritores argumentam, o erotismo é também sujeito às forças da cultura. Os seres humanos aprendem como se expressar sexualmente a si mesmos, e o conteúdo dessa aprendizagem é tão variado quanto as sociedades que mulheres e homens formaram ao longo dos tempos. (66)

 

Seguidores de Michael Foucault geralmente assumem que os dois conceitos—natureza humana e construção social—são contrapostos. Mas pelo fim da sua vida, Foucault estava lutando com o conceito de uma natureza humana durável, que ele introduziu em sua filosofia. Ele não achava que isso negasse sua tese de que a sexualidade é construída socialmente. Em vez disso, completou mais plenamente sua filosofia. (67)

Foucault, com quem eu discordo sobre questões do poder e o anti-humanismo que permeia muito de seu trabalho, forneceu-nos, não obstante, com uma estrutura útil para compreender a sexualidade na sociedade capitalista. Em sua História da Sexualidade Volume 1, ele delineia a especificidade da sexualidade sob a burguesia por meio de um relato histórico onde seus conceitos se tornam dominantes. Ele argumenta que a burguesia não poderia governar em virtude de linhas de sangue e direito herdado. Então, eles estavam obcecados pela regeneração saudável de sua classe. (68) Como resultado, essa burguesia ascendente no capitalismo inicial atribuiu ao sexo “um poder misterioso e indefinido; apostou sua vida e sua morte no sexo, tornando-o responsável por seu bem-estar futuro; subordinou sua alma ao sexo.” O desenvolvimento dessa sexualidade envolveu discussões intermináveis sobre o sexo, patologizando das chamadas perversões, explicações psiquiátricas. Instituições educacionais “delinearam áreas de saturação sexual extrema”. E “[a] família era… o infortúnio do sexo.” Discussão interminável e agonizante criou a imagem da “mulher histérica”, o “casal Malthusiano” e o adulto perverso. Gerou teorias sobre a sexualidade infantil como ameaçadora e antinatural, e sobre os perigos da masturbação. Uma lista de proibições foi articulada “para expelir da realidade as formas de sexualidade que não eram receptivas à economia estrita da reprodução.” (69)

A princípio eles deram pouca atenção às massas exploradas; mas por volta da metade do século dezenove, o enfraquecimento das condições terríveis ameaçava a própria reprodução da força de trabalho, a mercadoria mais importante do capitalismo. E a classe trabalhadora, começou a demonstrar habilidade de desafiar o poder de seus governantes capitalistas. E então, as ideias da burguesia de sexo e sexualidade foram implantadas “controle populações inteiras em uma maneira cada vez mais compreensível”. (70) O argumento de Foucault é paralelo à explicação marxista sobre a reorganização da família da classe trabalhadora no século dezenove, (71) embora expressada em termos diferentes. E sua descrição das consequências para os indivíduos ecoa a concepção marxista de alienação:

Dessa interação evoluiu … um conhecimento do assunto; um conhecimento não tanto de sua forma, mas daquilo que o divide, o determina talvez, mas acima de tudo faz com que ele seja ignorante de si mesmo (72)

 

Enquanto o trabalho é penoso, os trabalhadores desempregados falam sobre sentirem-se inúteis e rebaixados, sua força vital é drenada deles e eles sofrem angústia. Mas com sexo é diferente. Sexo pode ser vivenciado e praticado em maneiras gratificantes em que as pessoas se relacionam por meio da atividade sexual em mais que um nível físico, em maneiras que não se reduzem as genitálias. Mas porque o sexo e nossa sexualidade, como qualquer coisa, são transformados em mercadoria, comprado e vendido, utilizado para vender coisas, há também um alto grau de alienação nesse aspecto de nossa natureza. Isso transforma nosso corpo em um objeto, o sexo é objetificado, e o prazer sexual separado da interação humana. Para além disso, a regulação do comportamento sexual através de regras formais e informais governando o casamento e a família restringe e remove ainda mais o controle da sexualidade do ser humano, criando no processo uma distinção entre as formas de expressão sexual “ilícitas” e “lícitas”.

Foucault transmite por que o sexo e o abuso estão entrelaçados: “O que é, de fato, peculiar as sociedades modernas, não é que eles consignaram o sexo a uma existência sombria, mas que se dedicaram a falar dele isso ad infinitum, enquanto exploravam como um segredo.” (73) E “O poder que assim se encarregou da sexualidade passou a fazer contato com os corpos, acariciando-o com os olhos, intensificando áreas, eletrificando superfícies, dramatizando momentos perturbados … Essas atrações, essas evasões, essas incitações circulares traçaram em torno de corpos e sexos … espirais perpétuas de poder e prazer.” (74)

Espera-se que os perpetradores reificados da violência sexual institucional afirmem sua dominação e controle, o que por si só lhes dá a desculpa de descontar suas próprias frustrações naqueles que eles supervisionam, ou os encoraja a assumir que eles têm o direito de satisfazer seus próprios impulsos sexuais enquanto depreciam e desmoralizam suas acusações. a sociedade não defende abertamente esse comportamento, criando uma áurea de sigilo que reflete a privacidade a maioria das atividades sexuais, dessa forma erotizando o exercício de poder. Eu penso que os comentários perceptivos de Foucault indicando como as pessoas podem perceber que a agressão sexual é sentida como mais degradante do que um abuso ou outras formas de controle: “sexo [é] aquela agência que parece nos dominar e aquele segredo que parece estar por trás de tudo o que somos.” (75)

A angústia nas histórias de agonia e suicídio que flagelam as vidas daqueles abusados como crianças ou mulheres que foram abusadas em relacionamentos é palpável, assim como o horror difundido no uso do abuso sexual em tortura; considerando que não parece haver nada parecido com esse impacto das surras muitas vezes severas de meninos antes que os castigos corporais fossem proibidos, homens batendo uns nos outros em brigas de bêbados e coisas do gênero. O tropo que encapsula as experiencias dos homens na prisão é o medo do estupro—visto como o pior que pode acontecer a um homem. É alimentado pela homofobia, mas também intimamente relacionada a ser reduzido ao status de uma mulher. Então o abuso sexual, ou mesmo a ameaça dele, pode ser uma forma mais completa de impor o poder, devastando a vontade das vítimas de resistir, do que outras formas de disciplina e punição em situações institucionais, ou uma maneira de exercer controle pessoal em uma relação.

A posição dos trabalhadores nas burocracias institucionais é afundada por contradições. aqueles que devem exercer o controle não tem nenhum poder real, sujeito que estão aos caprichos da burocracia, cortes governamentais, ameaças de demissões, baixo pagamento e todas as outras indignações que os trabalhadores sofrem. O sigilo que cerca o abuso não é diferente da privacidade do lar, uma esfera da vida que fornece imunidade à descoberta. Em todos os níveis, entende-se que esses abusos não deveriam realmente acontecer, embora sejam tolerados e ativamente encobertos, e os denunciantes, e não os abusadores, sejam vítimas. Então padres, professores escolares e assim por diante, na medida em que incorporam um estilo de vida estrito e disciplinado, podem muito bem estar infelizes e insatisfeitos. Porque seus papéis os treina para tratar pessoas como objetos, é um pulo curto para eles tratarem as pessoas como objetos de seus impulsos—frustração, raiva ou necessidade sexual. Pode haver uma linha tênue entre ignorar as necessidades da pessoa sob sua autoridade, coerção psicológica ou física e abuso sexual de todos os tipos.

Dado os limites estruturais da escolha individual e a dinâmica nas burocracias em direção a desumanização, é um ponto de otimismo sobre a humanidade que nem todo mundo tentando assegurar a ordem e a disciplina que devem manter termine abusando daqueles em seu “cuidado” ou sob sua autoridade. Mesmo aqueles em posições autoritárias de dominação nao apenas criações robóticas da hierarquia. Nós não somos apenas objetos das estruturas sociais, nós ainda temos a capacidade para ação e reflexão subjetiva. Alguns, pelo menos, mantêm algum senso de responsabilidade para proteger as pessoas nas instituições que trabalham. Em um exercício interessante em 2001, mulheres ativistas do Sisters Inside, com sede em Queensland, assumiram a plataforma em uma conferência de funcionários correcionais que trabalham em prisões femininas:

Algumas mulheres desempenhando guardas, outras desempenhando os papeis de prisioneiras, dramatizaram uma revista … a reunião ficou tão repelida por esta promulgação de uma prática que ocorre rotineiramente em prisões femininas em todo lugar, que muitas das participantes sentiram-se compelidas a dissociarem essas práticas de si mesmas, insistindo que isso não era o que elas faziam. algumas das guardas… simplesmente choraram assistindo as representações de suas próprias ações fora do contexto da prisão.

Como Amanda George comentou em um documentário sob o título, “sem o uniforme, sem o poder do Estado, [a revista] seria agressão sexual.” (76)

Fora da situação criada pela hierarquia institucional, aqueles com autoridade sob outros podem ter atitudes e respostas bem diferentes. Eles não são apenas monstros com nenhuma subjetividade. E, portanto, alguns podem ser convencidos a não tratarem mal aqueles que eles supervisionam, e outros nunca serão. Fatores como as ideias de solidariedade de classe, compromisso aos direitos humanos e suas próprias experiências de opressão também influenciam como eles agem fora de seu papel.

O Estado e a Violência Sexual

Ha muitas maneiras onde a violência sexual é utilizada aberta e deliberadamente pelo Estado para instilar, rebaixar e humilhar minorias oprimidas e para impor autoridade.  O estupro de mulheres em celas policiais é temido com razão. Angela Davis mostrou que mundialmente, “o abuso [s]exual é sorrateiramente incorporado em um dos aspectos mais habituais do encarceramento de mulheres, a revista.” (77) Amanda George e Debbie Kilroy, ativistas da Sisters Inside argumentam:

A revista obrigatória é vivenciada de uma maneira discriminatória pelas prisioneiras. Prisioneiras, como um grupo, possuem uma incidência alta de histórico prévio de abuso sexual do que a comunidade geral e elas frequentemente experimentam a revista como um novo abuso. Não há evidência que a revista obrigatória carrega atualmente o seu propósito estatal, a prevenção de contrabando. Qualquer revista é um abuso injustificado de prisioneiras pelo Estado. (78)

 

Em regimes de tortura, humilhação e violência sexual são comuns, assim como são ameaças de tal violência contra as famílias daqueles sendo torturados. Toque de genitálias, estupro utilizando armas e outros instrumentos, a chamada alimentação retal, que é nada mais que estupro anal, são todas documentadas. Na notória prisão Abu Ghraib, nós vimos vários aspectos unindo-se.  Em ações designadas para induzir medo, humilhação e desmoralização, soldados estadunidenses estupraram meninos jovens na frente de suas mães enquanto soldadas filmavam. O estupro de mulheres e meninas, como uma arma de guerra, é impregnado—Dos EUA no Vietnam em 1960 a Bósnia e Herzegovina onde foi um meio de limpeza étnica ao Peru, Ruanda, Bangladesh, Camboja, Chipre, Haiti, Libéria, Somália, Uganda e pela Índia em Caxemira.

Em todas essas formas, o Estado legitima, normaliza e até mesmo promove a violência sexual como um meio de dominação e controle. De maneiras menos abertas do que o uso atual da violência sexual, os governos dão o aval a tais práticas de outras formas mais veladas e codificadas. Por exemplo, os encolher de ombros desdenhosos dos ministros da imigração quando o abuso sexual de requerentes de asilo é relatado sob o que é claramente um regime horrendo no centro de detenção em Nauru; a promoção fiel do governo de igrejas que são culpadas de abrigar predadores abusadores sexuais; governos que, por um lado, são conhecidos por sua lei e ordem, injustiças e atitudes punitivas para com os pobres e oprimidos, e por outro falham em agir contra o abuso sexual nas fileiras de suas forças armadas; o fato de que eles enfraquecem os serviços que oferecem apoio para vítimas de abuso sexual. Todos esses e muito mais sinalizam que o abuso sexual não é realmente considerado como um crime—ao menos que seja cometido por membros de um grupo oprimido como os muçulmanos ou aborígenes—a despeito da retórica sobre opor-se à violência familiar.

Abuso sexual e os oprimidos

No contexto do uso sancionado pelo Estado de abuso sexual, a cobertura deliberada pelas instituições religiosas e a defesa pelas classes respeitáveis daqueles implicados, o abuso sexual de grupos oprimidos não é uma aberração, nem atos de indivíduos irracionais. As estruturas sociais e econômicas subjacentes são apoiadas por ideologias que justificam a opressão e criam divisões na classe trabalhadora, deste modo alimentando atitudes que levam ao abuso sexual.

O estupro como um meio de difamação, controle e vitimização sempre foi uma terrível consequência do racismo. Grupos racialmente oprimidos são mais propensos a sofrer estupro e a serem acusados injustamente disso, a fim de manter uma ordem racista. Angela Davis explicou como isso era essencial para a dinâmica da opressão racista em seu livro Mulheres, Raça e Classe: “uma arma de dominação, uma arma de repressão, cujo objetivo secreto era extinguir a vontade de resistir das mulheres escravas e, nesse processo, desmoralizar seus homens.” (80) Um livro mais recente de Danielle Mcguire mostra a hipocrisia de racistas brancos que regularmente linchavam homens negros no Sul em nome da proteção de “suas” mulheres brancas, enquanto de forma sistemática abusavam sexualmente de mulheres negras. Ele carrega o título esclarecedor At the Dark End of the Street [No Fim Escuro da Rua, tradução livre]. Em Moree, no oeste de NSW, estava nas margens escuras do rio. Os passeios pela liberdade de 1965 a cidades no Oeste de NSW expuseram a mesma hipocrisia racista. Processos similares são comuns em relatos da indústria pastoral como a Sally Morgan’s My Place. Como Amy McQuire argumenta, um pânico moral agitado por liberais brancos sobre abuso sexual masculino de mulheres e crianças (provado mais tarde ser infundado pela Comissão Criminal Australiana) (81) foi usado para ganhar aceitação para a racista NT Intervention, que visava desmoralizar e, em última análise, expulsar comunidades inteiras de suas terras. (82) Em uma nota um pouco diferente, a cobertura obsessiva de uma série de estupros de gangues por homens libaneses em Sydney em 2000 foi utilizada como um veículo para o racista governo trabalhista de Carr para alimentar sentimentos anti-libanes e anti-muçulmanos em NSW. A colunista de direita Miranda Devine caracterizou os estupros como crimes de ódio contra pessoas brancas. (83) Qualquer pessoa que soubesse sobre as gerações espoliadas sabia que meninas aborígenes roubadas eram frequentemente enviadas para casas de classe média onde elas eram abusadas. Agora nós sabemos que eles e os meninos também eram abusados nas próprias instituições da igreja.

A narrativa racista do ameaçador impulso sexual incontrolável de homens negros e os medos alimentados sobre o perigo de um estranho tem uma afinidade subjacente, embora pervertida, com o estereótipo de masculinidade promovido pelas escolas, pela mídia e pela cultura popular e erudita. A homofobia internalizada pode levar homens que vivenciam atração sexual pelo mesmo sexo a estuprar homens como uma maneira de agir simultaneamente sobre seu desejo e reafirmar uma masculinidade agressiva ou “normal”. Dessa forma alienada, o estuprador demonstra que ele é “normal”. Alguns estupros de homens podem ser calculados para humilhar, reduzindo um homem ao status de uma mulher. Como Segal colocou, a noção de que afirmar a masculinidade é ‘penetrar’ no corpo de outra pessoa, ou buscar prazer sexual ‘ativo’ e controle sobre ela, por quaisquer meios” (84) é embutida em nossa cultura. Quer seja um padre com autoridade sobre crianças vulneráveis, um professor com desejos por pessoas jovens, um carcereiro com pouca restrição sobre a difamação de prisioneiros, o abuso sexual por homens é entrelaçado com a masculinidade a que os meninos são ensinados a aspirar. Portanto, compreender o papel integral dos estereótipos sexuais de masculino e feminino para a cultura do capitalismo, junto com o racismo e a homofobia que se inter-relacionam com eles, é importante para compreender muitas das variadas formas que o abuso sexual assume.

Esses estereótipos estão enraizados na família, uma instituição chave que sustenta o sistema capitalista. Fornece um meio barato de reprodução da classe trabalhadora, socializada para aceitar hierarquias de poder e autoridade, apta para vender sua força de trabalho, a mercadoria mais importante do sistema. (85) Nesse sentido, a família tem muito em comum com as burocracias e outras instituições discutidas acima. Está destruída por contradições e distorcida pela alienação como qualquer outra instituição social. O controle sobre as crianças estimula atitudes autoritárias nos pais; as crianças são destinadas a se submeter a estrutura de autoridade quer elas respeitem os adultos ou não.

Relacionamentos na família, que são considerados amorosos e sob nosso controle, e as expectativas deste mundo privado são mais frequentemente destruídas pelo impacto das realidades da vida, criando tensões que criam as condições para o abuso. Isso é especialmente de tal modo entre os trabalhadores, pobres e oprimidos que possuem poucas opções para mudar sua posiçao nessa realidade mais ampla.

Em relações pessoais heterossexuais, nós não estamos lidando com uma situação de poder material explícito sobre o outro em um país como a Austrália, onde as mulheres possuem direitos básicos. Mas as mulheres entram em relações sob condições desiguais com os homens, e não apenas por causa de premissas sexistas. Os estereótipos de gênero são apoiados pelas estruturas do trabalho e da família (86) e, portanto, as mulheres vivem com assédio sexual, desde comentários maliciosos e sugestivos a toques, perseguições, avanços sexuais indesejados e abusos sexuais diretos em todas as áreas, desde o local de trabalho até a família.

Os estereótipos gerados pela família servem para fazer da sexualidade LGBTI, no melhor dos casos, algo a ser “tolerado” ou ignorado, ambos promovendo a suposição de que é de alguma forma “anormal”. Mais frequentemente, é denegrido, proibido por ditames religiosos ou regras que proíbem parceiros do mesmo sexo em eventos sociais escolares. Uma investigação da Comissão de Direitos Humanos em 2015 revelou que mais de 70% das pessoas LGBTI entrevistadas disseram ter vivenciado violência, assédio e bullying com base em sua orientação sexual, identidade de gênero ou status de intersexo. Mais de 90% disseram que conheciam alguém que tiveram. (87)

Contudo, por mais fundamentais que sejam, a família e a forma como a sexualidade é vista e vivenciada, têm sido capazes de ser reestruturados para atender às necessidades do sistema atual. Como os sociólogos e comentaristas mais previdentes argumentaram após o impacto do movimento das mulheres, a maneira certa de fortalecer a família era ampliar sua definição. Pais solteiros, casais gays—pouco importa no processo de reprodução da força de trabalho, desde que seja privatizado e principalmente gratuito para a classe capitalista e o estado. (88) O sistema, a despeito das atitudes repressivas contínuas ao sexo, tem sido capaz de incorporar a esperança das mulheres e da liberação sexual da década de 1970, com mudanças superficiais que são uma caricatura trágica desses sonhos. E a despeito das mudanças, o ideal ainda é baseado em estereótipos velhos; basta testemunhar os argumentos contra os direitos do casamento LGBTI.

Os estereótipos sobre as mulheres também mudaram. Cinquenta anos atras as mulheres viviam sob o peso do estereótipo de dona de casa e mãe; estupro no casamento não era considerado um crime. Mesmo o estudo mais sério sobre a questão disponível em 1992 mostrou que as mulheres encontravam dificuldade em nomear suas experiências de sexo não desejado com maridos como “estupro”. (89) Nós vivemos agora em uma sociedade saturada com imagens semipornográficas de mulheres objetificadas em uma miríade de maneiras. A pornografia não é mais vendida no balcão. Retratando de tudo, desde sexo hetero a pedofilia, está disponível online para qualquer pessoa.

“Liberdade” sexual sob o capitalismo tem significado uma indústria sexual multibilionária. Jovens crescem com essas imagens pornográficas como a forma mais comum de aprender sobre sexo. Porque enquanto a sociedade fala sobre isso o tempo todo e a cultura popular lida com isso abertamente, inevitavelmente de maneiras sexistas e degradantes, ainda há muita pouca educação sexual ou discussão aberta sobre sexualidade nas escolas. Nessa era de cultura       vulgar, a crescente mercantilização do sexo, mais explícito do que na década de 1950, ainda enfatiza as mulheres como meros objetos sexuais. Raramente as mulheres tem sexo com um homem em filmes onde seus próprios desejos são centrais e explícitos. As mulheres são consistentemente retratadas como gostando, não do sexo como tal, mas encontrando satisfação em satisfazer as necessidades de um homem, deleitando-se em subordinar-se para o prazer dos homens. Uma marxista britânica mesmo notou:

a sinistra ironia é que dois livros recentes do novo feminismo (Full Frontal Feminism [O Frontal Completo do Feminismo, tradução livre.] e The New Sexism [O Novo Sexismo, tradução livre.]) tem troncos de mulheres nuas em suas capas. as autoras podem ter pouco ou nenhum controle sobre o design de capa, mas isso mostra que mesmo quando se publica uma crítica da mercantilização dos corpos das mulheres, alguém em algum lugar julgue necessário fazer exatamente isso para vender os livros. (90)

As feministas Deborah Tolman e Anastasia Powell (91) confirmam muito claramente, com seus estudos sobre relacionamentos de jovens, o que Russel encontrou em sua pesquisa de mulheres casadas e o que argumentei em 1992: o que na verdade é estupro, é muitas vezes considerado sedução. Mesmo quando homens admitem que eles coagiram uma mulher em um sexo, muitos parecem acreditar genuinamente que isso não é estupro. Nas palavras de Powell:

O [p]ornô chique foi retratado como a sexualidade libertada e empoderada para mulheres jovens …

Mulheres jovens são encorajadas, e até mesmo esperadas, a exibir uma sexualidade ativa e “exposta” por meio de seu comportamento e vestimenta, mas continuam a trilhar uma linha impossivelmente tênue entre serem julgadas como vadias se forem longe demais ou frígidas se não abraçarem sua “recém-descoberta liberdade sexual”. (92)

Tanto Powell quanto Tolman descobriram que as jovens sentem que se não conseguirem manter um relacionamento, elas “falharam” de alguma maneira. Isso confunde a distinção, mesmo em suas próprias mentes, entre pressão, coerção e estupro, porque elas instintivamente sentem que se elas não fizerem o que ele gosta, ele pode ir embora. Isso não se confina a jovens ou heterossexuais. Em todas as idades, ansiamos por um relacionamento estável, apaixonante, um refúgio em um mundo sem coração. E se não encontramos, muitos tem a sensação de que falharam de alguma forma. O romance do dia dos namorados, a imagem do casal heterossexual sorrindo, também impacta casais do mesmo sexo, o que explica em muito os níveis de abuso denunciados entre eles. Powell também argumenta:

Nesse contexto pós-feminista, tem se tornado difícil ser abertamente crítico dos costumes sexuais (mesmo aquelas relacionadas ao consentimento e violência sexual) sem ser rotulado como anti-escolha, anti-sexo e visto como rejeitando as próprias liberdades sexuais que o feminismo lutou para alcançar. (93)

Mas não são apenas os estereótipos de gênero e a necessidade sentida por uma relação estável. Há a escravidão do trabalho, horas longas, pagamento baixo, as humilhações infligidas pelos gerentes, a sentimento de não ter nenhum controle sobre sua vida, talvez uma demissão inesperada, corte de pagamento ou aumento de velocidade. Por outro lado, há a expectativa de que as relações pessoais são a única área das nossas vidas onde nós temos controle. No entanto, é principalmente ilusão. a imagem da caixa de chocolate, o sonho de estabilidade e amor (geralmente heterossexual) é extremamente difícil de se realizar para a maioria dos casais, dado a realidade do restante de suas vidas. Isso faz com que todos os relacionamentos sejam casas potencialmente perigosas de esperança frustrada. Onde alguém descarrega as frustrações e a raiva geradas pela sociedade em geral? Em entes queridos que sentem que não vão ou não podem ir embora. As pessoas vão aguentar muito para manter a esperança de realizar esse sonho. Qualquer insegurança econômica ou vulnerabilidade—como estar no armário no trabalho ou sendo transgênero, sofrendo uma incapacidade ou doença, a falta de moradia, a falta de acesso a segurança social—tudo torna muito mais difícil afirmar a autonomia de alguém. Por outro lado, um parceiro pode minar a sensação de estabilidade nesta área da vida ao encontrar outro relacionamento, levando a tentativas frenéticas de afirmar o controle e, por fim, a perseguição e outros comportamentos de controle.

E, portanto, por muitas razões diferentes, o controle sutil em um relacionamento pode cruzar a linha muitas vezes confusa, para se tornar coerção e até mesmo brutalidade total. O abuso em todas as suas formas pode permear relações em um ciclo de dominação e submissão que pode ser muito difícil quebrar, tanto por causa dos papéis aprendidos quanto pelas opções limitadas impostas pela realidade do trabalho, desemprego e falta de acesso às necessidades básicas. E, como Lillian Rubin sugeriu, é muito mais perigoso descarregar frustrações e agredir os outros em espaços públicos do que na privacidade de casa ou em um relacionamento.

Tome as crianças—elas não têm direito a autonomia, elas são virtualmente as posses de seus pais sem direito de dizer qualquer coisa sobre suas vidas. Se o Estado julga que esses pais não são confiáveis elas podem ser tomadas, sem o seu consentimento, no que é chamado paradoxalmente de “cuidado”—instituições em que o abuso é endêmico. Na família, o local de todas as tensões que delineei, as crianças são as menos capazes de fazer valer os seus direitos ou independência não apenas contra os pais, mas também contra as mães. Por que os adultos não iriam abusar das crianças na família? Elas “pertencem” ao seus pais, espera-se que os pais produzam filhos dos quais se orgulhem e que não incomodem os adultos. a combinação de controle, expectativas e alguém mais fraco em quem desabafar torna o abuso uma forte possibilidade. Um relatório de 2015 pelo Instituto de Criminologia da Austrália, encontrou que de 1088 casos onde alguém foi assassinado por um membro da família, 21% eram crianças, com mais mães assassinas do que pais. (94) O fato de que as crianças não têm direito a autonomia, somado a sua inexperiência e diferença em força, torna-as extremamente vulneráveis em casa e nas instituições públicas. As atitudes dos filisteus em relação ao sexo, o medo da sexualidade infantil e a obsessão com a manutenção de um verniz de respeitabilidade garantem que, se denunciarem o abuso, tenham pouca chance de serem acreditadas e menos ainda de ação para removê-las do perigo.

Ou pense nos idosos, cada vez mais agrupados em “vilas de aposentados” ou sobrevivendo em lares de idosos. Eles não são definidos por seus direitos, mas puramente por suas necessidades físicas; eles geralmente não têm voz sobre seu tratamento e são frequentemente intimidados por drogas de alteração mental que os tornam dóceis. Fora dessas instituições eles vivenciam pobreza, discriminação, falta de recursos designado para sustentar suas necessidades e assim por diante, os tornando sujeitos a abuso em suas famílias.

Os oprimidos são alvos constantes de comportamento alienado por parte de seus responsáveis ou com um status que aos olhos da sociedade justifica—ou ao menos endossa—atitudes de controle e dominação. Homens em relação às mulheres, pais, professores e outras figuras de autoridade em relação às crianças; padres e seus paroquianos e assim por diante. Essa dinâmica é fortalecida quando as instituições são insuficientes, os trabalhadores são mal treinados, geralmente mal pagos e com pouca organização sindical para contra atacar a existência fragmentada e alienada do trabalho sob o capitalismo.

Por sua vez, as instituições que limitam a liberdade impactam a humanidade daqueles encarcerados nelas. Por exemplo, Daviv Heilpern concluiu pela sua pesquisa sobre agressão sexual em prisões masculinas australianas que:

agressão sexual na prisão não é sobre sexo, frustração sexual ou homossexualidade latente—é sobre poder.

Desenvolvem-se rígidas estratificações hierárquicas dentro do ambiente fechado de uma prisão e o pênis é uma arma de controle, propriedade e dominação. Não deixa hematomas ou cicatrizes visíveis; e a vergonha, o medo e a cultura do silêncio significam que é facilmente escondido ou negado pelas autoridades.

É o resultado inevitável do desempoderamento sistemático e deliberado de homens em um mundo fechado e hierárquico, onde o Estado anula a liberdade como um meio de punição. (95)

 

Embora a maioria dos abusos sexuais seja cometido por homens, as mulheres, em circunstâncias particulares abusam outras mulheres, homens e crianças. as raízes desse comportamento são nutridas pelas mesmas condições sociais e econômicas: a produção de mercadoria, alienação, mercantilização da sexualidade e objetificação dos corpos. as mulheres em posições de controle sobre vulneráveis em instituição estão sujeitas a mesma desumanização que os homens. Os homens são considerados de alto status. As mulheres não são socializadas para assumir seus próprios direitos, o direito de dominar outros, mas nessa situação reificada, elas alcançam um status sobre outros. Adicione a isso a normalização do abuso sexual, a dinâmica da sexualidade cercada pelo sigilo, as pressões para manter controle autoritário e as mulheres podem se tornar abusadoras sexuais. Na família, a contradição entre a ideologia da família como um refúgio do mundo público e a realidade da vida sob o capitalismo, as mulheres podem e descarregam suas frustrações nos filhos, pela falta de autonomia que têm, ou mesmo atacam seus parceiros. Os estereótipos de gênero garantem que uma grande proporção de abuso sexual seja infligida as mulheres por homens. Mas está longe de ser a única forma de abuso. Nem todos os homens são tão dominantes, autoconfiantes ou agressivos quanto o estereótipo diz que devem ser. Nem todas as mulheres são fracas, passivas e carinhosas. afirmar o contrário seria assumir que os indivíduos são controlados completamente pela ideologia, o que eles claramente não são.

O que deve ser feito?

Com a mídia promovendo regularmente campanhas contra a violência doméstica e os múltiplos informes sobre abuso de crianças e outros em cuidado, é imperativo que os socialistas não apenas caiam atrás de ideias populistas do que deve ser feito. Praticamente todas as respostas do governo às demandas de ação contra a violência sexual alimentam uma agenda de lei e ordem. Tipicamente, a submissão do governo trabalhista vitoriano à comissão real sobre violência familiar definida em 2015 recomenda apenas medidas punitivas, como uma nova acusação relacionada especificamente a infratores de violência doméstica. Previsivelmente, a oposição da Coalizão também apresentou propostas de sentenças mínimas obrigatórias. O que qualquer uma das propostas faria para diminuir os níveis de violência não é explicado. Nenhuma das inscrições mencionou fundos para garantir que haja acomodação para quem tentar sair de uma situação de violência ou uma mesada decente para sustentá-los. (96) Mas elas não fazem nada para reduzir a violência sexual. ao lado do fato de que a prisão só ocorre após o evento, estudo após estudo tem mostrado que elas não detêm os transgressores. O resultado dessas medidas é apenas diminuir os direitos civis de todos em um momento onde os direitos humanos e civis estão sob ataque em todas as frentes. Em Victoria, como um resultado direto das demandas pelos ativistas após o estupro e assassinato de Jill Meagher em um subúrbio de Melbourne em setembro de 2012, as sentenças suspensas foram abolidas em todos os tribunais. Como o executivo chefe do Jesuit Social Services [Serviços Sociais Jesuítas], Julie Edwards, disse, “A remoção de penas suspensas como uma opção para crimes menos perigosos não trará comunidades mais seguras.” (97)

Ha um corpo crescente corpo de trabalho de criminologistas e feministas, especialmente nos EUA onde as consequências de tais campanhas se tornou claro anos atras, que mostra a natureza problemática dos movimentos políticos que focam na violência contra as mulheres. Sempre houve feministas que argumentaram que essa ênfase mina a confiança das mulheres, promovendo a imagem de nós como vítimas eternas. (98) É importante enfrentar a questão não apenas das demandas, mas das campanhas que por si mesmas dão vida a qualquer tipo de agenda de lei e ordem no contexto do neoliberalismo e do crescimento do aparato punitivo estatal. Criminologistas antissexistas como Kristin Bumiller, Dianne L. Martin e Aya Gruber, todas escreveram extensivamente sobre esse assunto.

Em 2009, Gruber identificou o problema dessa maneira: “[nos] últimos anos, o feminismo tem se tornado cada vez mais identificado com o controle do crime e a acusação de homens que cometeram crimes contra as mulheres.” Algumas estudiosas feministas começaram a expressar grande preocupação sobre serem associadas com “uma agenda punitiva e voltada para a retribuição.” Ela concluiu que as feministas deveriam “desembaraçar” suas posições contra a violência sexual “de um sistema de justiça criminal atualmente reflexo da hierarquia e incapaz de produzir justiça social.” (99)

Kristin Bumiler, em seu livro In an Abusive State: How Neoliberalism Appropriated the Feminist Movement against Sexual Violence [Em um estado abusivo: como o neoliberalismo se apropriou do movimento feminista contra a violência sexual, tradução livre], descreveu o objetivo do livro como sendo formular:

Uma compreensão do ambiente político contemporâneo que produziu … as reações estatais cada vez mais coercivas a crimes incluindo violência sexual…[N]o começo da década de 1970… [havia] um crescente fenomenal no aparato de controle do crime, incluindo aumento do poder do Ministério Público, sentencias obrigatórias e uma ascensão sem precedente da população carceraria. ao mesmo tempo, a violência sexual se tornou importante para a agenda do “estado terapêutico”, uma rede de profissionais, assistentes sociais e agentes do governo fornecendo prestação de serviços aos pobres e desfavorecidos. Esses clientes do Estado de bem estar eram predominantemente mulheres e seus filhos… Como resultado, o movimento feminista se tornou um parceiro no crescimento imprevisto de uma sociedade criminalizada, um fenômeno com consequências negativas não apenas para as minorias e grupos imigrantes de homens, mas também para aquelas mulheres que são sujeitas ao escrutínio dentro do Estado de bem-estar. (100)

 

Ela mostra que não é apenas através de sentencias mais duras e taxas mais altas de encarceramento que o Estado é fortalecido, mas também através de medidas geralmente consideradas serem alternativas de esquerda a isso—mais abrigos de violência doméstica, serviços para vítimas e centros de crise de estupro. Ela argumenta que esse se tornou outra forma em que mulheres e homens são atraídos pelo sistema de justiça criminal e seus direitos minados. Espera-se cada vez mais que as mulheres que vão aos abrigos tomem ações jurídicas contra o autor do abuso. Os refúgios recusam-se cada vez mais a aceitar qualquer pessoa que não processe porque não recebem financiamento do governo para aqueles que não o fazem.

Isso enreda as mulheres no trato com seus parceiros, mesmo que elas queiram apenas se afastar deles. Tendências semelhantes estão decolando na Austrália. Isso começou na década de 1980 sob a influência de feministas, cuja orientação era a retribuição contra os homens. O subsídio de paternidade ficou vinculado aos esforços da mulher para forçar um ex-parceiro a pagar alimentos ao invés de um direito em si. “Os homens devem pagar” era o sentimento, mas aprisiona as mulheres, limitando sua capacidade de receber a mesada integral sem contato potencialmente estressante com um ex-parceiro. Hoje as coisas estão se tornando muito piores. Taxas de prisão dupla (tanto mulheres e seus parceiros homens sendo presos pela polícia durante casos de violência doméstica) estão crescendo na Austrália como um resultado das políticas de prisão obrigatória e uma ênfase maior na intervenção do Estado para resolver conflitos domésticos. Frequentemente, isso pode resultar em mais acusações não relacionadas para as mulheres (por porte de drogas, multas não pagas etc.), o que por sua vez pode gerar problemas com a custódia de crianças e até mesmo encarceramento em alguns casos. É auto evidente que isso é um problema sério para as mulheres aborígenes que temem as mortes sob custódia e já têm taxas muito mais altas de contato com o sistema de injustiça do que seus pares não indígenas.

A incorporação da provisão de serviço dentro do aparato do Estado (muitas vezes sob pena de cortes de financiamento) é outra forma pela qual as mulheres, assim como os homens, podem acabar sendo vitimizadas pelas medidas do Estado para combater a violência sexual. Leis recentes aprovadas em NSW agora dão o direito à polícia de acessar informações sobre as mulheres que recebem serviços de apoio e o paradeiro de seus parceiros masculinos, hábitos de drogas e outras informações pessoais, sem o consentimento das mulheres ou homens interessados. Tais invasões nos direitos do povo, justificada apelando a uma preocupação a violência sexual, não aborda a causa de tal violência. ao invés, elas servem principalmente para dar ao Estado mais direitos de intervir de formas negativas nas vidas das pessoas. Também se destaca que virtualmente não há demandas não problemáticas que podem ser levantadas que abordem diretamente ou trabalhem para prevenir a violência contra as mulheres. Conforme Bumiller descreve a experiência nos Estados Unidos:

A aliança feminista com o Estado é em larga extensão inevitável. Em relação aos crimes violentos contra as mulheres, é difícil imaginar políticas que não dependessem, em última análise, das capacidades carcerárias do Estado. Claramente, existem alguns casos de dano grave que requerem a segregação dos infratores para a proteção da sociedade. Ainda assim, nos Estados Unidos e em outros contextos nacionais, é importante estar atento às potencialidades e limitações da utilização do poder do Estado para avançar os interesses das mulheres. O crescimento das políticas neoliberais forneceu ainda mais razão para o ceticismo, já que as feministas encontram suas inovações incorporadas ao aparato regulatório e de justiça criminal. (101)

Uma das conclusões a que ela chega é que “não faz mais sentido destacar a violência contra as mulheres como uma questão específica para a formulação de políticas, porque há vantagens em vê-la como parte de um projeto mais amplo de capacitar as mulheres a serem cidadãs mais eficazes.” (102) Em outras palavras, lutar contra a opressão estrutural das mulheres é o meio mais efetivo para combater a violência sexual.

O pânico moral criado em torno do assassinato de Jill Meagher em 2012 provocou debates afiados sobre se a esquerda deve ficar por trás das marchas de rua lideradas por chefes de polícia, o primeiro-ministro liberal e o prefeito de Melbourne, Robert Doyle, o ex-líder do Partido Liberal do estado, em meio a pedidos de medidas de lei e ordem aumentadas. Doyle havia apenas algumas semanas antes de ordenar a remoção violenta do protesto Occupy Melbourne [Ocupar Melbourne] da City Square.  Ele se levantou para melhorar sua imagem com um liberalismo pequeno de alguma forma, saltando neste movimento que explorava o horror de tal violência sexual. Como Viktoria Ivanova descobriu dezoito meses depois, esta campanha teve exatamente o resultado previsto pelos opostos à participação e é claramente vista desta forma:

Em Victoria, as abrangentes “reformas” da lei e da ordem resultaram no aumento de 14% da população prisional no último ano—esse é o maior aumento no país. ” A mudança na política do governo Vitoriano”, escreveu em julho o jornalista da ABC, Sean Rubinsztein-Dunlop, “pode ser rastreada até o clamor público sobre o assassinato brutal de Jill Meagher em 2012, que desencadeou um endurecimento das leis de liberdade condicional, condenação e fiança”. (103)

Louisie O’Shea pontuou na época: “Pânicos morais sobre crime ou violência entre os indivíduos, em particular a necessidade de proteger as mulheres e crianças brancas do perigo, são quase sempre usados pelos governos para promover ideias reacionárias e justificar ataques aos direitos das pessoas.” (104) O seu ponto, infelizmente, foi vindicado. Ironicamente, mas tragicamente, as mulheres—particularmente as mulheres aborígenes—são agora o grupo de prisioneiros que mais cresce rapidamente na Austrália. Mas na época sua posição foi recebida com gritos de indignação por muitos na esquerda. Alguns argumentaram que a esquerda deveria fazer parte de tais eventos afins de influenciar seu resultado. Mas vai contra a realidade pensar que a esquerda, pequena como é e sem autoridade em qualquer camada mais ampla da sociedade, possa possivelmente influenciar qualquer projeto dirigido por figuras das classes média e dominante. Mesmo se a esquerda tivesse enraizamento nas massas, para influenciar—ou mais ao ponto, derrotar—qualquer projeto empurrado pelo Estado e pela sociedade respeitável, levaria uma enorme mobilização, não como participantes, mas como oponentes. Em menor grau, muitos na esquerda ficaram desorientados pelo motim de Cronulla de 2005 em face da invocação do premiê trabalhista Bob Carr do tropo racista dos homens libaneses ameaçando a pureza das mulheres “brancas”. Muitos que participaram em um comício antirracista uma semana anterior, insistiram que tínhamos de reconhecer o sexismo dos homens libaneses ao invés de simplesmente fazer uma declaração clara de oposição ao racismo que levou aos motins.

Não há soluções fáceis, mas os socialistas têm que partir da realidade e do que tem a possibilidade de um resultado progressivo, não cair atras de campanhas cínicas por aqueles em posições de autoridade que são responsáveis pelas condições que reproduzem a violência sexual. Sentimentos de atomização, a noção de que todos nós somos apenas indivíduos sujeitos a forças além de nosso controle é um dos pilares do capitalismo e um sentimento que desmobiliza a classe trabalhadora. Essa atomização empurra os trabalhadores a procurarem uma força que possa oferecer alguma proteção contra ameaças individuais. Como não há atualmente nenhuma força de massa organizada da classe trabalhadora que possa realisticamente prevenir o comportamento antissocial, a preocupação com a violência leva virtualmente inevitavelmente a uma maior identificação com a autoridade. Johanna Brenner, uma socialista feminista, comenta que à medida que a confiança na capacidade do movimento de ganhar reformas diminui, “a confiança no braço coercitivo do estado” pelas feministas nos EUA teve crescimento. (105) Afinal, o Estado é a força mais equipada na sociedade equipada para controlar o comportamento dos indivíduos. Ele dedica muito tempo e esforço para esse fim – muito dele sob o pretexto de “proteger” os fracos.

Cadeias maiores e leis mais repressivas não fazem nada para reconstruir a autoconfiança da classe trabalhadora e tradições de solidariedade—coisas que empurram contra a alienação no coração do problema. Com um movimento da classe trabalhadora mais forte, capaz e disposto a lutar por melhores condições para o auxílio que lhes deem sentido de dignidade e valorização, por programas que visem aumentar a consciência e minimizar preconceitos amparados por um ambiente menos preconceituoso em geral, é concebível que mesmo sob o capitalismo, o abuso possa ser minimizado tanto na vida pessoal quanto nas instituições públicas.

Há coisas concretas a fazer campanha que podem contribuir para essa reconstrução. Isso inclui a luta contra cortes de orçamento pelos governos liberais e trabalhistas que corroem os padrões de vida da classe trabalhadora e aumentam as tensões nas relações pessoais; e em particular, fazer campanha por moradia decente e acessível, para aumentar a renda, para tornar o pagamento dos pais de apoio disponível até que as crianças fiquem mais velhas e desvinculadas da manutenção dos ex-parceiros, para que a creche seja barata e acessível. Também importante são campanhas como essa por direitos iguais de casamentos, apoio para estudantes que lutam contra a homofobia e transfobia nas escolas, defender o direito de as crianças terem voz sobre suas vidas e coisas como o acesso a seguridade social quando elas precisam deixar um lar violento, qualquer coisa que forneça às jovens imagens de homens e mulheres que não se baseiam nos estereótipos sexistas, campanhas por igualdade salarial. Nos sindicatos nós precisamos exigir que eles tenham agentes que possam atender um local de trabalho com acusações de assédio sexual de maneira coletivamente adequada, ao invés de dar aos empregadores uma desculpa para intervir.

Essas são todas as coisas que podem atualmente dar a qualquer pessoa, crianças, homens e mulheres, alguma habilidade para viver vidas independentes, para deixar parceiros ou parentes abusivos, para encontrar confiança em expor abusadores nas instituições e burocracias. Há muito pelo que lutar que não envolva o fortalecimento dos aspectos repressivos do Estado. Há formas de luta que podem unir trabalhadores sob uma base de classe, que podem aumentar a necessidade de sindicatos mais fortes e agentes sindicais mais responsáveis. Nem todos produzirão resultados imediatos ou necessariamente terão a violência sexual como foco principal. Mas as conexões entre as maneiras pelas quais o sistema nega o controle a massa do povo sobre suas vidas, trabalho e sexualidade, e como ele promove as condições que possibilitam e encorajam a violência sexual, tornam tal abordagem necessária. É a única forma para enfraquecer as raízes sociais da violência sexual.

Conclusão

Como Helen Razer disse em seu livro Fury: Women write about Sex, Power and Violence [Fúria: Mulheres escrevem sobre sexo, poder e violência, em tradução livre], muitas das discussões sobre a violência sexual sao focadas sobre suas experiencias como indivíduos, enfatizando que uma sociedade sexista produz a violência contra as mulheres. Isso pode significar que nós ignoramos a possibilidade de que nossas estruturas sociais gerem a violência em um nível ainda mais fundamental do que a diferença de gênero…

Trabalho, vigilância, psiquiatria, degradação ambiental e outras instituições nos afirmam fisicamente e emocionalmente. (106)

Claramente, o abuso sexual, desde o toque inapropriado a pressão, coerção ou estupro, é uma experiência traumatizante e difundida nessa sociedade. as causas sao múltiplas e complexas, e só podem ser compreendidas como enraizadas nas estruturas econômicas e sociais do capitalismo, uma sociedade de classe que levou a alienação ao extremo. A mercantilização do sexo e a objetificação dos nossos corpos, os estereótipos sexistas e o ideal de uma masculinidade agressiva criaram um ambiente propício ao abuso. Se o sexo está à venda, por que não usar corpos, que sao nada mais que objetos, para sua própria satisfação? Por que não seguir quaisquer desejos sádicos quando há outros com menos status ou sob seu controle? afinal, o Estado utiliza atualmente a violência sexual para impor sua autoridade, para aterrorizar indivíduos ou comunidades, e encorajar ativamente seus representantes a sonhar com novas formas inovadoras para humilhar e degradar pessoas. A indiferença de instituições respeitáveis que priorizam o bom funcionamento do sistema sobre os direitos individuais normaliza o abuso sexual como meio de afirmar e manter a autoridade.

A violência sexual pode ser um emprego consciente do terror ou da vontade de subordinar. Pode ser o resultado de indivíduos atacando por causa da experiência estressante de vida nesta sociedade. Pode ser o resultado de ambos. Os oprimidos, das mulheres as crianças ou idosos e pessoas LGBTI, sao alvos fáceis tanto pelas ideias dominantes que atribuem um status menor a eles, quanto pela discriminação material e desvantagem que limita sua habilidade de afirmarem sua autonomia. A alienação e o poder do estado e suas burocracias transformam os indivíduos em engrenagens de uma roda de desumanidade e esterilidade. Essa dinâmica na arena pública legitima o abuso nos aspectos mais íntimos e privados de nossas vidas.

O crescimento difundido de indústrias como trafico sexual, que envolve possivelmente milhões incluindo mulheres e crianças de ambos os gêneros, e pornografia infantil que envolve a tortura e até mesmo a morte de crianças com poucos meses de idade não pode ser entendido como uma aberração horrenda. Elas surgem do sistema pútrido do capitalismo voltado para o lucro. Elas florescem nos países mais pobres onde pais desesperados vendem filhos e as mulheres apostam em entrar em um país mais rico. Os produtos sao consumidos nos países mais ricos, alimentando os lucros de homens e mulheres que organizam a indústria do sexo, evidenciando a depravação absoluta e a desumanidade que o capitalismo alimenta. Esses extremos podem parecer desconectados na experiência do dia-dia de muitos parceiros íntimos, de pessoas vivendo em necessidade de cuidado ou sob o controle de figuras de autoridade. Mas elas ascendem da mesma estrutura e são produzidas pela mesma sociedade.

Como diz Lukács, o capitalismo “não conhece limites e despreza toda dignidade humana.” (107)

Essas são as raízes da violência sexual em nossa sociedade.

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Notas

(1) Simmel 1971, p324.

(2) Marx and Engels 1976, pp37 and 42.

(3) Eu listei 10 exemplos dessas conferências etc. Em Bloodworth 1992, p5.

(4) Robyn Dixon and Michael Magazanik, The Age, 3 June 1993.

(5) “How do we tackle domestic violence? Here’s what seven police chiefs said”, The Guardian, 3 November 2014.

(6) Gay Alcorn, “Culture of hostility to women leads to domestic violence, say police chiefs”, The Guardian, 3 November 2014.

(7) The difference between say India and Australia indicates this possibility.

(8) Para uma exposição completa desse argumento, ver O’Shea 2014.

(9) Uma pequena amostra: ABC News, Tracy Bowden, “Stephanie Scott: High-profile murder case sparks renewed calls for Australia to confront ‘epidemic’ of violence against women”, 14 April 2015; Phil Cleary, “Tony Abbott fundamentally misunderstands the violence against women epidemic”, The Age, 16 February 2015; Wendy Tuohy, “Our Shame: family violence deaths double”, Herald Sun, 18 February 2015.

(10) Fieldes 2013, p40.

(11) Workplace Gender Equality Agency 2014.

(12) Tom Bramble, “Intergenerational theft? No, it’s class theft”, Red Flag, 5 March 2015.

(13) Tom Bramble, “These bastards want to grind us into the dust”, Red Flag, 14 May 2014.

(14) Rachel Olding, “Government failed domestic violence test”, Sydney Morning Herald, 13 May 2015.

(15) Bianca Hall, “Women trapped by housing shortage”, The Age, 22 May 2015; Hill 2015.

(16) Hill 2015.

(17) Simone White, “Women’s services gutted in NSW”, Red Flag, 14 July 2014.

(18) Hill 2015.

(19) Hill 2015.

(20) Chris Johnston, “Growing Pain”, The Saturday Age, 30 May 2015.

(21) Hill 2015.

(22) Hill 2015.

(23) Hill 2015.

(24) Isso é importante porque é desorientador pensar que estamos confrontando duas estruturas, a do patriarcado e a do capitalismo. Bloodworth 1990.

(25) Donat and D’Emilio 1992.

(26) Segal 1990, pp233-34; Verifiquei todos os escritos feministas que tenho em minha biblioteca da década de 1970 e nenhum deles antes de Brownmiller lida com o estupro ou o abuso sexual.

(27) de Beauvoir 1987, capítulo sobre “Sexual Initiation”, pp392-423.

(28) de Beauvoir 1987, pp93 e 97.

(29) Brownmiller 1986, p8.

(30) Russell 1990, pxxii.

(31) Brownmiller 1986, pp5-6.

(32) Hence the literature since the 1980s has become predominantly concerned with domestic violence.

(33) Bloodworth 1990; Bloodworth 1992.

(34) Jane Lee, “Pell may have known of abuse by Ridsdale”, Konrad Marshall, “Cluster of suicides grows” and “Faith in the church is lost, but faith in justice returns”, The Age, 20 May 2015.

(35) Broken Rites researcher n.d.

(36) Australian Institute of Family Studies (AIFS) 2013.

(37) Dunne et al 2003.

(38) CTLiveris. ACON is the New South Wales leading health promotion organisation specialising in HIV prevention, HIV support and lesbian, gay, bisexual, transgender and intersex (LGBTI) health, http://www.acon.org.au/about-acon/who-we-are/.

(39) V. Braun, J. Schmidt, N. Gavey and J. Fenaughty 2009, “Sexual coercion among gay and bisexual men in Aotearoa/New Zealand”, Journal of Homosexuality, 53 (3), quoted in Fileborn 2012.

(40) Fileborn 2012.

(41) For an example of a debate which relied on this narrow definition see Henderson 2007; the problem with too narrow a definition of rape is discussed in Bloodworth 1992.

(42) Segal 1990, pp235-36.

(43) Smith 2015, p82.

(44) Martin S. Fiebert 2004, “References examining Assaults by Women on Their Spouses or Male Partners: An Annotated Bibliography”, Sexuality & Culture, 8

(3-4), p140, quoted in Segal 2008, p107.

(45) Segal 2008, p107; Linda Gordon’s arguments are from her book Heroes of Their Own Lives, quoted by Segal.

(46) Seymour H. Hersch 2004, “Torture at Abu Ghraib. American soldiers brutalized Iraqis. How far up does the responsibility go?”, The New Yorker, 5 May; CNN News, “Iraq prison scandal fast facts”, http://edition.cnn.com/2013/10/30/world/meast/iraq-prison-abuse-scandal-fast-facts/; Optus Zoo 2014.

(47) AIC 2015.

(48) Segal 2008, p109.

(49) Rosin n.d.

(50) Citado em Smith 2015, p82.

(51) Jill Filipovic, “Is the US the only country where more men are raped than women?”, The Guardian, 22 February 2012.

(52) Heilpern 2005.

(53) Marx 1975, p333.

(54) Marx 1959, p830.

(55) Citado em Amy Muldoon, “The oppressed majority”, Socialist Worker (US), 26 February 2015.

(56) Marx 1975, p324. Emphasis in original.

(57) Marx 1954, p77.

(58) Marx 1959, p830.

(59) Ollman 1971, p135.

(60) Marx 1954, pp104-5.

(61) Broken Rites researcher n.d.

(62) Lukács 1971, p102.

(63) Lukács 1971, p92.

(64) Este foi um assunto de debate na International Socialism sobre várias questões. Meu argumento baseia-se em McGregor 2011.

(65) For more argumentation, see McGregor 2011 and Harman 1994.

(66) D’Emilio 1983, p3.

(67) Callinicos 1988, pp24-26.

(68) Foucault 1978, p124.

(69) Foucault 1978, p36.

(70) Foucault 1978, p107.

(71) Bloodworth 1990.

(72) Foucault 1978, p70.

(73) Foucault 1978, p35.

(74) Foucault 1978, p45.

(75) Foucault 1978, p155.

(76) Davis 2003, pp82-83.

(77) Davis 2003, p81.

(78) George and Kilroy 2004.

(79) UNICEF 1996.

(80) Quoted in Smith 2015, p77.

(81) Nick McKenzie, “Pedophile ring claims unfounded”, Sydney Morning Herald,

5 July 2009.

(82) McQuire 2015; ver também Fieldes 2010.

(83) Na verdade, nem todas as vítimas eram brancas. Grewal 2007.

(84) Segal 2008, p112.

(85) O’Shea 2014.

(86) Isso é explicado em Fieldes 2013.

(87) Jason Dowling, “Human Rights Commissioner Tim Wilson calls for end to ‘state-sanctioned discrimination’ on marriage”, The Age, 10 June 2015.

(88) Sandra Bloodworth, “Women, capitalism and class”, https://digitalcollections.anu.edu.au/ bitstream/1885/42701/2/Women.pdf.

(89) Russell 1990.

(90) Orr 2010, p41.

(91) Tolman 2002; Powell 2010.

(92) Powell 2010, p.78.

(93) Powell 2010, p.78.

(94) Pia Akerman, “Children the forgotten victims in family violence campaign”, The Australian, 20 May 2015.

(95) Heilpern 2005.

(96) Nino Bucci, “Premier backs new criminal charge for family violence offenders”, The Age, 1 June 2015.

(97) “Suspended prison sentences now banned in all Victorian courts”, The Guardian, 1 September 2014.

(98) Uma resposta recente foi o surgimento do “feminismo físico”, que promove o treinamento de autodefesa para as mulheres. Eu não acho que eles encontraram uma solução, mas pelo menos eles entendem o problema. Henderson 2007.

(99) Gruber 2009, p582.

(100) Bumiller 2008, pxii.

(101) Bumiller 2008, p2.

(102) Bumiller 2008, pxv.

(103) Viktoria Ivanova, “Bitter fruit of law and order agenda”, Red Flag, 15 July 2014.

(104) Louise O’Shea, “Jill Meagher, Reclaim the Night and the political right”, Socialist Alternative (Australia) November 2012.

(105) Brenner 2006, pp264-66.

(106) Razer 2015, p190.

(107) Lukács 1971, p90.

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