Por Cássio Coutinho[1]
Por meio deste trabalho, pretende-se precipuamente apresentar uma das ideias expressadas pelo jurista e professor Alysson Mascaro em sua obra Crise e golpe, qual seja a de que o direito brasileiro na atualidade tem como referencial o ano de 1964. À luz da referida obra, pretende-se, ainda, debater as causas para que o ano de 1964 seja determinante em diversos fatos das áreas jurídica, política e econômica que o sucederam e como um evento golpista ocorrido há quase 60 anos pode exercer influência significativa em uma disputa eleitoral pela Presidência da República. Não estão excluídas do presente trabalho considerações sobre a disposição (ou falta de) de setores de esquerda para ser contraponto a atos lesivos da burguesia contra a classe trabalhadora e referências a livros e artigos a tratar diretamente de fatos políticos temporalmente situados entre 1964 e 2022.
1) Considerações iniciais
O dia 31 de março e os primeiros dias do mês de abril costumam impulsionar historiadores e juristas a fazer exercícios de memória. Como se trata de país onde o autoritarismo político tem posição de destaque na racionalidade de parcela significativa da população, os exercícios de memória resultam, por vezes, em menções de exaltação ao golpe político promovido por setores militares em parceria com o capital em 1964. Para além das abordagens positivas, o golpe de 1964 foi alçado ao papel de marco determinante da forma jurídica no Brasil. No entanto, tal assertiva somente pode ser considerada verdadeira se fatores jurídicos de uma sociedade são pesquisados e estudados em conjunto com fatores políticos e econômicos.
Desprezar 1964 para tomar 1988 como referência para o Brasil atual é equívoco recorrente entre juristas condicionados a pensar o direito como área de conhecimento na qual as normas prevalecem. Poder político e, sobretudo, determinação econômica não podem ser tratados como elementos secundários para a compreensão do fenômeno jurídico em Estados nacionais. Ambos determinam as normas que valem, quando e como as mesmas normas serão desconsideradas e quando e como elas serão revogadas. Destarte, tem-se que a forma jurídica é posta a serviço de quem domina determinado Estado nacional e a sociedade que se encontra dentro das fronteiras do Estado.
Em virtude da vocação autoritária do Brasil – independentemente do que se encontra escrito no documento jurídico denominado Constituição – a alta burguesia encontram-se em condições privilegiadas para dar as cartas em disputas eleitorais, pois as instituições liberais estão sempre disponíveis para ser tomadas de assalto por agentes de experiências autoritárias simpáticos a frações dominantes do capital. No Brasil hodierno, o referido agente já se encontra no poder para buscar o prolongamento de sua gestão e, por conseguinte, do capitalismo neoliberal, caracterizado pela voracidade contra a existência digna e o nível de renda da classe trabalhadora. Em verdade, não há ineditismo no fato de um governo ditatorial ou com traços ditatoriais fascistas conduzir políticas econômicas extremamente prejudiciais à parcela majoritária da sociedade que se constitui como classes dominadas.
No presente escrito, discorrer-se-á sobre a importância de considerar norma, poder e determinação econômica em conjunto para a correta análise da forma jurídica. Em seguida, expor-se-ão potenciais razões para a prevalência de fatos políticos e econômicos da década de 1960 sobre normas jurídicas do ano de 1988 compiladas em um diploma normativo teoricamente posicionado no topo da hierarquia jurídica. Por fim, passar-se-á a projetar possíveis cenários para a influência de 1964 sobre uma disputa pela presidência a ocorrer 58 anos depois. Todas as ideias expostas neste trabalho têm inspiração principal no livro Crise e golpe, escrito pelo jurista e professor Alysson Mascaro no ano de 2018.
2) O jurídico, o político e o econômico
O que determina o direito? Para responder à pergunta, pode-se imaginar um mergulho gradual no mar, no qual passa-se uma determinada quantidade de tempo na superfície, outro intervalo temporal em profundidade intermediária e, no momento seguinte, mais duradouro que os anteriores, atingem-se águas profundas.
Na analogia proposta, a superfície corresponde a afirmar que o direito é determinado pelas normas emanadas por representantes do povo em sentido amplo[2]. Tais representantes foram previamente eleitos e são dotados de legitimidade popular para legislar – com primazia sobre quem gere e quem julga conflitos em Estados nacionais de poder tripartido – e, por meio da função legiferante, estabelecer as regras a possibilitar o alcance do bem comum, do bem-estar da coletividade. A crença na determinação do direito pelas normas jurídicas pressupõe teoricamente a observância a princípios como o devido processo legal, a legalidade, o contraditório, a ampla defesa, a segurança jurídica, o acesso à justiça, a duração razoável do processo, a igualdade formal, a autonomia da vontade, pacta sunt servanda[3] e outros inerentes a arranjos institucionais de inspiração burguesa.
A profundidade intermediária equivale à crença de que o poder determina o direito. O direito seria determinado, portanto, pelos agentes políticos em posição dominante, os quais teriam condições de exercer juízo de conveniência e oportunidade sobre a regra e a exceção e de ditar a clivagem amigo-inimigo na arena política, seja dentro das fronteiras nacionais ou na relação entre países. O poder pertenceria, por conseguinte, a agentes políticos com capacidade de decidir sobre a exceção e de quebrar regras impunemente. Essa abordagem do direito é crítica à anteriormente apresentada e à separação entre o conceito do político e o do jurídico, do cultural, do econômico e do religioso por exemplo (SCHMITT, 2008, p. 24). Apesar da correção ao afirmar-se que o poder determina o direito, a ideia expressada pela assertiva carece de completude.
Atingem-se as águas profundas. Considerando-se novamente a analogia, a resposta à pergunta inicial é distinta. Chega-se à determinação econômica do direito. O jurista que melhor discorreu acerca do direito determinado por aspectos econômicos foi Evguiéni Pachukanis. Para o jurista soviético o direito é a expressão de uma das formas sociais decorrentes do modo de produção capitalista. Trata-se da forma jurídica, composta por sujeitos de direito a coexistir em igualdade formal e dotados de autonomia da vontade para celebrar contratos entre si (PACHUKANIS, 2017). Os elementos fundamentais da forma jurídica existem essencialmente para proteger a propriedade privada, propiciar a circulação de mercadorias e possibilitar o processo de acumulação de capital. Já o direito penal possui a função precípua de encarcerar indivíduos indesejados e/ou dispensáveis para a circulação de mercadorias e para o processo de acumulação. A ponderação sobre quais seriam os indivíduos indesejáveis e dispensáveis passa pela configuração de cada sociedade em cada Estado nacional. Em um país como o Brasil, por exemplo, os recortes de raça e classe ainda são quase equivalentes, de modo que a população negra é maioria incontestável entre os punidos com penas privativas de liberdade.
Feitas breves considerações sobre o direito e elementos que o determinam, cabe dar um passo adiante e adentrar ao tema do peso exercido pelo ano de 1964 sobre os anos que o sucederam na história brasileira.
3) Por que 1964 e não 1988?
Além de afirmar a existência de um golpe político no Brasil em 31 de março de 1964, faz-se pertinente tratar de acontecimentos políticos da década de 1960 anteriores e posteriores ao momento do golpe e a ele relacionados, ainda que em palavras breves.
Após ser eleito para a Presidência da República em 1960, Jânio Quadros tomou posse em 31 de janeiro de 1961. Ressalte-se que, à época, as eleições para Presidente da República e para Vice-Presidente da República ocorriam em paralelo, de modo que o Vice-Presidente eleito foi João Goulart, que não era correligionário de Quadros. Este, por sua vez, renunciou em agosto do mesmo ano de 1961, após um pouco menos de sete meses da posse.
Embora a Constituição de 1946 não deixasse dúvidas acerca da sucessão presidencial, frações da cúpula militar e classes dominantes eram contrárias à posse de João Goulart. Alimentava-se o extremamente infundado temor da formação de uma república sindical no Brasil e, por meio dela, da chegada de comunistas às mais altas instâncias do poder político. Segundo tal tese fantasiosa, o suposto perigo vermelho tornar-se-ia real com a chegada de uma figura como João Goulart à Presidência da República. Fundamental para garantir que João Goulart tomasse posse foi a atuação do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola. Em conjunto com o III Exército, iniciou a campanha da legalidade com o intuito de garantir que fosse observada a regra da sucessão presidencial prevista na Constituição de 1946. Por fim, em 7 de setembro de 1961, chegou-se a uma solução negociada, segundo a qual João Goulart seria presidente, mas sob regime parlamentarista. Este durou somente até ser rejeitado em consulta popular de janeiro de 1963 (FAUSTO, 2010, p. 442-443 e p. 455).
A defesa de reformas de base, como a reforma agrária e a reforma urbana, serviu como pretexto para que os mesmos setores militares e o alto empresariado defendessem a deposição de Goulart. O golpe ocorreu, então, em 31 de março de 1964. Operado por militares e apoiado pelo alto empresariado, deu início a um período ditatorial que pode ser denominado empresarial-militar.
A experiência autoritária iniciada a partir de então significou o aumento da concentração de renda e a deterioração das condições de vida das classes socioeconômicas não detentoras de meios de produção. Durante o mandato do primeiro dos ditadores (Humberto de Alencar Castelo Branco), tomaram-se medidas que, na prática, foram indubitavelmente nocivas aos interesses da classe trabalhadora. Sob o pretexto de combater um cenário de combater um cenário de “estagflação”[4], lançou-se o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG). O PAEG foi profundamente influenciado pelo diagnóstico do Ministro do Planejamento Roberto Campos. No que concerne à classe trabalhadora, a pressão salarial era apontada como uma das causas para o processo inflacionário, desconsiderando-se por completo o fato de que salários também estavam defasados por conta do processo inflacionário. As medidas do PAEG significaram, na prática, a manutenção da defasagem salarial, pois compreendiam uma regra de correção salarial a considerar um período em que os valores recebidos pela classe trabalhadora já se encontravam deteriorados em termos reais: o biênio anterior à implementação do plano (GIAMBIAGI et al., 2011, p. 51-53).
Entre as reformas estruturais do governo Castelo Branco prejudiciais à classe trabalhadora, está aquela que aboliu a estabilidade do empregado após o período de dez anos no emprego para dar lugar ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o qual era (e ainda é) formado pelo depósito de um percentual da renda do trabalhador em uma conta vinculada ao fundo e que somente poderia ser acessado em situações específicas previstas em lei (atualmente a Lei 8.036/90). Estava embutida na criação do FGTS a crença liberal de que a flexibilização de direitos trabalhistas ocasionaria o aumento das contratações, e não das demissões de trabalhadores.
Com o objetivo de aumentar a arrecadação, implementou-se uma reforma tributária e entrou em vigor o Código Tributário Nacional. Ocorre que o aumento da arrecadação deveu-se ao reforço do caráter regressivo do sistema tributário brasileiro, com ênfase na tributação sobre o consumo e com menor peso na tributação da renda. Destarte, as classes sociais assalariadas, notadamente as de menor renda, foram punidas pelo fato de que o Estado pretendia arrecadar quantias maiores.
Sem o objetivo de esgotar o debate econômico sobre as consequências das medidas adotadas pelos governos que se sucederam entre 1964 e 1985, cabe um salto temporal até a década de 2010, quando mais um golpe teve lugar no Brasil.
À primeira presidenta mulher eleita no Brasil não foi permitido terminar o segundo mandato para o qual foi eleita. Independentemente de questionamentos à qualidade da gestão no exercício da Presidência da República, uma acusação de cometimento de irregularidades fiscais de materialidade questionável – para afirmar o mínimo – foi suficiente para abreviar o mandato presidencial. Além do fomento à aversão a grupos políticos que põem em marcha medidas minimamente benéficas às classes trabalhadores e de renda reduzida, o elevado grau de misoginia na sociedade brasileira fez a primeira presidenta mulher ser alijada do poder. Para tal, houve manipulação da opinião pública promovida pelos aparelhos ideológicos midiáticos e uma conjunção de forças políticas que se mostrou desfavorável à presidenta. Por fim, sua queda do governo foi ocasionada por um golpe no ano de 2016.
A gestão seguinte foi iniciada sob as bênçãos do grande capital e permaneceu comprometida com a adoção de reformas e de alterações econômicas que causaram danos uma vez mais às classes socioeconômicas mais baixas. O fato de as reformas terem sido incluídas em instrumentos normativos é, de per si, revelador da determinação econômica do direito, a qual primeiro fez valer a exceção para depor uma governante e, no momento seguinte, impulsionou a imposição de regras mais favoráveis a frações burguesas.
O ano de 2016 foi o da instituição de um teto de gastos para a Administração Pública por meio da Emenda Constitucional n. 95. Por meio da referida emenda, o gasto público permanece congelado por vinte anos e somente pode ser ampliado em termos nominais no limite dos índices oficiais de inflação. Trata-se de limitação posta que desconsiderou as necessidades de investimento em áreas como educação e saúde.
A reforma trabalhista impingiu uma desfiguração à Consolidação das Leis do Trabalho, enquanto a reforma do sistema previdenciário constituiu-se como mais uma frente de retirada de direitos da classe trabalhadora, pois a fragilização do sistema de seguridade social instituído pela Constituição da República de 1988 – outrora denominada “Constituição cidadã” – dificulta o acesso aos benefícios previdenciários estipulados pela Lei 8.213/91.
No que concerne aos preços dos combustíveis, a empresa estatal a cargo de sua extração e de seu tratamento (existente sob a forma de sociedade de economia mista) adota uma política de preços atrelada ao preço internacional dos insumos, cotado na moeda adotada como unidade de conta internacional, em franca desconsideração do fato de que salários da classe trabalhadora são pagos e cotados em moeda nacional. Tal cenário deixa trabalhadores ainda mais sujeitos às consequências nefastas da inflação de alimentos (transportados por veículos movidos a gasolina, etanol ou diesel) e à impossibilidade de adquirir um item básico para o preparo dos poucos alimentos que ainda podem ser adquiridos: o gás de cozinha. Em lugar de constituir-se como empresa estatal de ação estratégica para atendimento dos interesses populares, a grande petrolífera nacional tem, na prática, compromissos maiores com os saldos nas contas bancárias de seus acionistas privados.
Neste momento, encontramo-nos mais próximos da resposta à pergunta que inicia a seção atual deste trabalho. O ano de 1964 conforme posto no questionamento representa um golpe, enquanto 1988 representa – nos termos das concepções juspositivistas – a instauração de uma ordem jurídica. Segundo o professor Alysson Mascaro, golpes são “mudanças bruscas no controle, na estruturação, no funcionamento ou na dinâmica do campo político e social ou no arranjo relativo do poder entre classes, frações, grupos, corporações, instituições ou indivíduos, advindas de causas comissivas” (MASCARO, 2018, p. 89). A expressão mais comum dos golpes é o “golpe de Estado”. Este, por sua vez, além de não ser a única expressão dos golpes, não costuma permanecer restrito à forma política estatal. Sendo esta uma forma social do capitalismo, torna-se compreensível o fato de que mudanças no Estado representam mudanças da ou para a sociabilidade capitalista (MASCARO, 2018, p. 90).
No que concerne à Constituição da República de 1988, em Crise e golpe, indicam-se aspectos da mais elevada relevância. Por mais que a atual Carta Magna seja comumente considerada um documento de impulso para lutas progressistas daqueles que ao mesmo tempo são defensores da ordem liberal e da implementação de medidas e de políticas governamentais de caráter inclusivo, tal interpretação desconsidera compromissos entre frações de classes socioeconômicas e políticas que resultaram em uma carta constitucional de manutenção do arranjo institucional e social da ditadura empresarial-militar (MASCARO, 2018, p. 101). Essa continuidade, a despeito de uma Constituição totalmente nova, possibilitou um golpe em 2016 que compartilha com o de 1964 a característica de aparência de legalidade ao momento de sua deflagração. Significa afirmar que, diferentemente da abordagem juspositivista, a qual atribui à Constituição de 1988 uma quebra, um marco divisório entre a ditadura e a democracia, ela representou a continuação do golpe da década de 1960 como modelo. Convém atentar às palavras de Mascaro sobre o tema:
Se 2016 está no espírito de 1988, é porque 1988 é uma variante do espírito de 1964. Proponho que os quase trinta anos que separam 1988 de 2016 sejam lidos, na verdade, como modulação de um processo estrutural que remonta a 1964, quando se dão as bases definitivas da relação de dependência entre capital nacional e capital externo, uso do Estado por setores burgueses e políticos assentados em modelos específicos de corrupção na interação entre os negócios públicos e privados, repressão e efetiva militarização do controle das populações e dos movimentos políticos, concreção do judiciário como instrumento do capital e do poder militar, tecnificação acrítica e conservadora dos agentes do Estado. O golpe de 2016 não é o fim de 1988, que por sua vez teria acabado com 1964: este último vive até hoje, 1988 foi apenas sua atualização variante, que ora chega ao cabo, restabelecendo um padrão de sociabilidade similar àquele de um povo marchando contra a corrupção e o comunismo e pela família cristã e que construía grandes e estranhas catedrais. A nuance de 1988 é que, sendo uma tênue fresta entre as nuvens autoritárias do modelo de capitalismo dependente brasileiro, ela agora se fecha. (MASCARO, 2018, p. 102-103)
4) Como 1964 pode interferir em 2022?
Cientes dos riscos inerentes à projeção de cenários para o porvir, passemos a tecer considerações acerca do pleito eleitoral seguinte à luz dos escritos de Mascaro em Crise e golpe.
Diferentemente da crença de setores políticos de convicções liberais (até de esquerda), vitória eleitoral não significa necessariamente vitória política. Vejamos como a afirmação anterior é aplicável a um país onde um governo de caráter autoritário e com traços neofascistas está no poder e prestes a passar por uma disputa eleitoral.
O governo atual trouxe consigo o aumento considerável do número de militares a ocupar cargos de primeiro e de segundo escalão governamental. Em maio de 2021, o número já ultrapassava o patamar de 6.000. Se milhares de militares ocupam cargos governamentais de primeiro e de segundo escalão e setores castrenses são conhecidamente simpáticos ao autoritarismo, não é desarrazoado projetar que não aceitem uma derrota eleitoral e a saída das posições em que se encontram após apenas quatro anos. Tem-se, portanto, um argumento contrário à defesa das instituições liberais e de seu calendário eleitoral, pois este e seus desdobramentos podem ser desconsiderados no todo ou em parte sempre que não forem do agrado do grande capital ou dos agentes políticos que o representam para colocar em marcha o capitalismo em sua forma mais aguda.
Ainda que um governo de esquerda assuma a presidência (o que é diferente de assumir o poder), estima-se que será um governo de esquerda adstrito ao campo liberal, do Estado democrático de direito, da defesa das instituições burguesas, do assim denominado devido processo legal e demais princípios relacionados à crença no dito império da lei e da forma jurídica. Após um período de capitalismo agudo combinado com um governo de inspiração autoritária, um governante da esquerda liberal estará em condição ainda mais frágil do que a das décadas de 2000 e de 2010. A posição consolidada da burguesia após um golpe seguido de largos prejuízos às classes não detentoras de meios de produção provavelmente significará resistência ainda maior a medidas governamentais minimamente progressistas.
Por fim, convém considerar a possibilidade de prorrogação do atual governo de extrema direita por meio das próprias urnas eleitorais. A ideia de que a economia determinará o resultado do pleito eleitoral não é verdadeira. Historicamente, a preferência por projetos de poder contrários aos seus interesses é recorrente nas classes trabalhadoras de países capitalistas. Trata-se de algo que sucede repetidas vezes em virtude da propagação da ideologia do capital por diversas instituições estatais e não estatais, como a mídia hegemônica, as escolas, as universidades, as igrejas, a família e o Poder Judiciário. Propiciam-se, portanto, as diversas oportunidades nas quais a escolha das massas populares coincide com os interesses do capital.
5) Considerações finais
Mais do que uma raiz política, a continuidade de 1964 no Brasil tem fundamentos econômicos. Sempre que as classes dominantes sentem a necessidade ou vislumbram a possibilidade de tornar o processo de acumulação capitalista mais voraz contra classes trabalhadoras, aquelas agem para que o poder político seja tomado por figuras mais simpáticas e mais comprometidas com seus interesses. São variadas as formas de ação para alcançar o mesmo objetivo. Com golpes operados pelas Forças Armadas, golpes a cargo de membros do Poder Judiciário ou manipulação da opinião pública em período eleitoral, a burguesia encontra o caminho para fazer prevalecer a aplicação da regra ou da exceção na forma jurídica com o intuito do melhor atendimento a seus interesses em detrimento de todos aqueles que, dentro do modo de produção capitalista, somente têm para vender a sua mão de obra.
Independentemente do que é consignado em cartas constitucionais, é a burguesia que determina quando as regras valem e quando elas são desconsideradas. Desconstituir essa verdadeira ditadura do capital é impositivo para pôr fim à existência de normas elaboradas em prol da circulação de mercadorias e do processo de acumulação e pavimentar a estrada rumo a um regramento e a uma sociedade redefinidos em padrões verdadeiramente inclusivos e solidários.
Referências bibliográficas
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed., 2. reimpr.. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2010.
GIAMBIAGI, Fabio et al.. Economia brasileira contemporânea: 1945-2010. 2. ed.. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
MASCARO, Alysson Leandro. Crise e golpe. 1. ed.. São Paulo: Boitempo, 2018.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 7. ed.. São Paulo: Atlas, 2019.
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do direito. 7. ed.. São Paulo Atlas, 2021.
MOTTA, Cláudia. Mais de 6 mil militares atuam em cargos civis no governo Jair Bolsonaro. Rede Brasil Atual, 2021. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2021/05/militares-governo-bolsonaro-6-mil-cargos-civis/. Acesso em: 07 abr. 2022.
PACHUKANIS, Evguiéni B.. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução: Paula Vaz de Almeida. 1. ed.. São Paulo: Boitempo, 2017.
ROCHA NETO, Antônio Soares. Os momentos da legalidade e exceção em Estado e Forma política e Crise e Golpe, de Alysson Mascaro. LavraPalavra, 2021. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2021/09/13/os-momentos-da-legalidade-e-excecao-em-estado-e-forma-politica-e-crise-e-golpe-de-alysson-mascaro/. Acesso em: 7 abr. 2021.
SCHMITT, Carl. O conceito do político – Teoria do partisan. Tradução: Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
[1] Servidor público da Justiça Federal do Rio de Janeiro; membro do Comitê Permanente de Equidade Racial e de Gênero da Seção Judiciária do Rio de Janeiro; membro do Coletivo Negro da Justiça Federal do Rio de Janeiro; pesquisador do Centro de Estudos para a Proteção Internacional de Minorias da Universidade de São Paulo (CEPIM USP); e-mail: [email protected].
[2] Não se pretende aqui adentrar às distinções entre os conceitos de povo, nação e população em sentido estrito, as quais costumam ser estudadas no direito internacional.
[3] Princípio e expressão latina que significa “os pactos devem ser cumpridos”
[4] Cenário da economia a reunir estagnação econômica e crescimento da inflação.