Por Jorge Alemán, traduzido por Maria Caroline C. Gomes
O pequeno excerto abaixo se trata de uma intervenção no “Foro Nacional y Latinoamericano por una Nueva Independencia (Tucumán)”, com Ricardo Forster, Juan Carlos Monedero e Enrique Dussel, e foi publicado no livro Horizontes neoliberales en la subjetividad. Olivos: Grama Ediciones, 2016. É dedicado a Juan José Scorzelli.
Em primeiro lugar, o título “O retorno do político”, desde logo, implica que o político parece ser algo que nem sempre está presente, que não está lá, que se apresenta como algo estável, firme e consolidado. Se falamos de volta ou retorno do político, significa que o político pode ser evitado, pode ser reprimido, pode ser cancelado, pode ser esquecido, por isso para tratar desse tema vou usar o distinção entre o político e a política, e vou me referir a essa distinção clássica entre o político e a política através das trajetórias teóricas nas quais me senti envolvido e concernido.
Produção de subjetividade e singularidade irredutível
Uma diferença que é fundamental e que às vezes se sobrepõe ou se confunde no campo da filosofia, das ciências sociais e das ciências políticas. Uma coisa são as lógicas de poder, que na formação do neoliberalismo atual, como concretização do discurso capitalista, produzem subjetividades, o modo como as mídias de comunicação, as corporações tomaram como sua espoliação mais valiosa, a própria produção de subjetividade, e outra coisa é a própria constituição do sujeito por lalíngua, uma constituição que se inaugura antes do nascimento do sujeito e que continua depois de sua morte. São dois lugares absolutamente diferenciados, aliás, constituem a diferença absoluta.
A diferença absoluta
Uma coisa é a produção de subjetividade pelas lógicas de poder, que assume diferentes figuras: as produções do empreendedor, vivendo a vida como se fosse um negócio, a produção das palavras horríveis de autoajuda e autoestima, a produção do homem endividado, a produção do homem forçado e submetido aos imperativos de felicidade que o tornam a cada vez um ser mais atormentado, as indústrias farmacológicas, os coaches, etc.: e outra coisa é aquela singularidade irredutível que surge no advento com a lalíngua em sua existência falante, sexuada e mortal; Se essas duas coisas se confundem e acreditamos que o poder captura definitivamente aquele momento de emergência do sujeito, o crime é perfeito, então podemos dizer que as mídias de comunicação fabricam sujeitos, produzem sujeitos.
A singularidade não pode ser produzida
Não, a singularidade não pode ser produzida, chamo de político o instante em que o sujeito advém e chamo de política – por outro lado – as produções de subjetividade, e esta é uma diferença que me parece séria, e se isso se confunde, se é apagado aquele momento inaugural, estrutural, se vocês querem o “ontológico” da própria constituição dessa singularidade onde há em cada um algo irrepetível, aquilo que faz de cada um de nós ser quem somos, se isso é apagado, e se confunde com a produção de subjetividades, como disse antes, então o poder finalmente realizou seu crime perfeito, e não há nenhum lugar nem para exercer resistência, nem para recuperar legados históricos, ou praticar a remememoração e a invenção. Então essa é minha primeira distinção chave entre o político e a política, a política é tudo isso que surge dos dispositivos de poder do Capital, e ao invés disso eu chamo de político o que é “inapropriável”.
O inapropriável
Se o discurso do Capital, a lógica da circulação da mercadoria, a capacidade que tem a mercadoria para tratar as subjetividades como se fossem fluidas, líquidas, voláteis, consegue apagar essa singularidade, efetivamente não há outra possibilidade senão pensar que o poder tomou posse de todas as existências. Então, nesse aspecto, considero que é um exercício fundamental do pensamento pensar o inapropriável. O que é inapropriável? Aquilo que o discurso do Capitalista não pode capturar. Como nomear o que o discurso do Capitalista não consegue capturar? Essa singularidade, que surge no advento da lalíngua, e que é o lugar onde os retornos, inclusive o retorno do político, podem ser realizados.
Diferenciar Capitalismo de Hegemonía
Minha segunda distinção, diferenciando-me de certas construções teóricas, embora não vá dar nomes de autores, vou diferenciar Capitalismo de Hegemonia. Eu mesmo digo lexicalmente ou idiomaticamente: “a hegemonia neoliberal”, “a hegemonia do capital”, etc., como modo de falar. No entanto, creio que o capitalismo, por sua capacidade de conectar lugares, expandir-se transversalmente, carecer de barreiras, expulsar tudo que seja impossível, absorver todas as crises e empoderar-se através da crise, porque as crises são sofridas pelos povos, nações, famílias e sujeitos, mas nunca a lógica do Capital. O capital é um movimento circular, ilimitado, onde a todo momento o novo chama ao novo que se anule como novidade e não produza nenhum acontecimento, onde o diferente chama ao diferente para que a diferença nunca surja, e é nesse sentido que considero que o Capitalismo não é uma Hegemonia. O capitalismo é um poder.
A Hegemonia é sempre vazia
A hegemonia, por outro lado, se constrói com singularidades e, portanto, é sempre vazia, tem como ponto de partida a heterogeneidade, nunca pode apagar as diferenças: pensemos, por exemplo, na própria construção hegemônica quando falamos das demandas não satisfeitas pelas instituições do neoliberalismo e como essas diferentes demandas entram em uma cadeia equivalente, essas diferenças nunca são apagadas na lógica da articulação hegemônica, por isso oponho à estrutura do discurso do Capitalista – que considero um poder -, dos projetos hegemônicos.
Discurso do Capitalista e vontade acéfala
Chamo de política o discurso do Capital e sua vocação fundamental para realizar, como uma vontade acéfala a conexão de todos os lugares no circuito da mercadoria, e denomina como político o hegemônico, que é sempre em essência fracassado, instável e que tem que jogar seu jogo na brecha (é por isso que se coloca tão repetidamente a questão sobre o caráter irreversível ou não das mudanças), da estrutura de disposição do discurso do Capitalismo, que como vocês sabem já não podemos mais pensar que haja uma contradição interna que atribui a um sujeito um lugar previamente determinado que consiga sair do capitalismo. O capitalismo nos confronta com um paradoxo único na história que é, por um lado, que não possamos nomear sua saída, não possamos reconhecer sua exterioridade e, por outro, devemos continuar insistindo em seu caráter contingente e histórico.
A construção hegemónica
Então, como vocês já viram, eu fiz duas distinções entre a política e o político. A primeira, as fabricações de subjetividade dos dispositivos de poder da singularidade subjetiva. A segunda, o poder do Capital de construção hegemônica, a construção de uma lógica articulada e hegemônica, o modo como surge uma vontade popular, tem sempre como ponto de partida o heterogêneo, o diferente, o que não é suscetível de ser homogeneizado. O discurso do Capital é um campo que se estende transversalmente, de forma homogênea; A hegemonia nunca consegue conquistar nenhuma homogeneidade, e sua verdadeira força transformadora consiste justamente nessa heterogeneidade com a qual trabalha e pela qual é trabalhada.
Atos Institucionais e Instituições.
Minha terceira distinção, e a última, é a diferença entre atos instituintes – assim os designo, não uso termos de outras tradições como poder constituinte ou práxis instituinte – e instituições.
Um ato instituinte é o político
Como entendo um ato instituinte? Um ato instituinte é o político, entendo um ato instituinte e penso em sua inteligibilidade para dar conta de como o novo entra na história: o que caracteriza o ato instituinte é que, por um lado – e prestemos atenção nisso -, não é uma criação que vem do nada, não é uma criação – como poderíamos dizer – ex nihilo, é uma criação que requer tramas simbólicas, constelações históricas, heranças; porém, como ato instituinte, não é um mero resultado dessas condições históricas, é mais, exige a presença dessas condições históricas e é ao mesmo tempo uma ruptura em relação a elas.
Solidão: Comum
O novo entra na história pelo ato instituinte, e o ato instituinte é sempre realizado por um coletivo de singularidades que denominei em meus textos sob o nome de Solidão: Comum, porque ao mesmo tempo são singularidades e por outro lado operam no comum da lalíngua, e tornam-se outro nome do inapropriável; Assim como eu disse que o sujeito em sua singularidade e advento era inapropriável, agora digo que um ato instituinte também é outro nome para o inapropriável, como é a Hegemonia, que também nomeia o inapropriável.
Impossível-Contingente, Necessário-Possível
O que sempre nos interessou pensar é: o que o discurso do Capitalista não pode apropriar? Esse ato instituinte, como você sabe, o único destino possível que tem é fundar instituições, seu trajeto final é ser retomado pela instituição. Como na história de amor, há o encontro contingente e depois o desafio da permanência; do mesmo modo, o ato instituinte se joga na relação entre o impossível e o contingente, e a instituição se joga entre o necessário e o possível.
A aventura da permanência
A instituição é feita de hierarquias, burocracias, inércias, autoridades, e todo o desafio é como esse ato instituinte – que é o político – se aloja na política das instituições, de tal forma que a instituição não pode se fechar – ainda que seja uma tentativa, com relação a esse ato instituinte – , e, ao mesmo tempo, o ato instituinte caracteriza-se por não ter outra escolha senão passar pela aventura da permanência. Nesse aspecto, desse ato instituinte… dou três características: a angústia (porque sempre se faz a partir de um lugar de desamparo, sempre se faz sem… – embora haja uma constelação histórica que a precede -, no ato instituinte há uma solidão radical, embora sejam muitos os que intervêm); depois a certeza (a certeza sempre vem da angústia) e, finalmente, a antecipação.
Angústia, certeza e antecipação
Angústia, certeza e antecipação são as três formas do ato instituinte. A instituição ao é o que vai acolhê-la, e entendo por práxis militante aquela práxis capaz de trazer instabilidade, fragilidade, desamparo, angústia ao seio da instituição, mas também a certeza do ato instituinte.
Entre o ato instituinte e o instituído
Agora, ninguém pode identificar ou apropriar-se de um ato instituinte, porque seria uma contradição, é sempre um coletivo anônimo, que denominei como Solidão: Comum, mas nenhuma instituição pode, se quiser continuar em um projeto emancipatório e transformador, pode apagar a memória, a marca, a impressão daquele ato instituinte. Não há remédio a não ser viver o tempo todo com a tensão entre o ato instituinte e o instituído da política, entre o ato instituinte inapropriável do político e o instituído da política.
Sei, tenho plena consciência, que não falei de nenhuma das situações presentes e não indiquei ninguém, mas estou certo de que com a imaginação generosa de todos talvez possam inferir do que estou falando.
* Maria Caroline C. Gomes é psicanalista e mestranda em psicologia pela UFSJ. E-mail: [email protected]