Fascismo e dominação imperial

Por Pedro Vuskovic, via Nueva Política, num. 1: El fascismo en América (1976), traduzido por Danilo Moraes Nascimento e Rodolfo Rodrigues Machado.

“A América Latina enfrenta essa situação com dupla desvantagem. Por um lado, as derrotas do imperialismo no Sudeste Asiático fazem dela a sua zona natural de recuo, com a consequência imediata de que ele necessariamente busca aqui acentuar os termos de sua dominação. Em segundo lugar, porque a fascistização de uma parte já muito importante da região, onde as condições de subordinação e dependência se extremam, tornam muito difíceis, senão francamente inviáveis, as possibilidades de definições e ações que envolvam efetivamente a região como um todo: é difícil que se constitua alguma posição latino-americana relevante com os Pinochets em seu interior.”


  1. A situação peculiar da América Latina no mundo atual.

Até pouco tempo atrás, era muito generalizada a imagem de uma América Latina que se colocava no plano mundial em posição de construir um conjunto de países cujas oportunidades de desenvolvimento poderiam levá-los, em um período histórico relativamente curto, a expandir e fortalecer o mundo ocidental, com seus valores, seus níveis de produção, formas de vida material e seus sistemas característicos de organização social e política. Em poucas palavras: uma entrada enriquecedora no capitalismo internacional, que, aliás, havia demonstrado a aptidão do sistema capitalista para superar os problemas do subdesenvolvimento; e a viabilidade de uma cooperação internacional capaz de oferecer benefícios recíprocos tanto aos países subdesenvolvidos quanto para as grandes potências capitalistas industrializadas, apoiando a consolidação das novas sociedades capitalistas  independentes.

Para isso, contava-se com a proximidade dos valores culturais e com uma longa tradição de relações políticas e econômicas; com formações nacionais sustentadas por um longo período de independência política formal, e com organizações sociais e aparatos estatais relativamente avançados; com estruturas econômicas que colocaram a América Latina a meio caminho entre os países desenvolvidos e os mais atrasados em outras áreas geográficas; com relações confortáveis e até generosas entre população e dotação de recursos naturais.

Em grande medida, a própria realidade se encarregou de dissipar essa imagem, frustrando a esperança latino-americana que era existente. O quadro que a substitui é a de um grupo de países cada vez mais subordinados e dependentes, um campo aberto à penetração de transnacionais e outras formas de dominação econômica estrangeira generalizadas; seu crescimento capitalista, manifesto com certa intensidade nos níveis mais elevados de renda média e em mudanças significativas de sua estrutura econômica, limita suas expressões de progresso a estratos minoritários da população, que concentram a apropriação de altas proporções da renda nacional em detrimento da pobreza generalizada das demais camadas e, inclusive, da crescente exclusão e marginalização de diversos estratos sociais, com elevadas taxas de desemprego e subemprego.

As expectativas de melhoria e mudança social, ampliadas na última década, foram frustradas, acentuando tensões e conflitos. Suas políticas econômicas ou de desenvolvimento foram esterilizadas ou fracassaram, desembocando em uma alteração dos esforços estabilizadores e desenvolvimentistas, que não alcançam estabilidade nem resolvem os problemas de crescimento. E no plano político geral, longe de representar um aperfeiçoamento democrático progressivo em conjunto, vários dos países se transformam em terrenos onde o fascismo ressurge, mais de trinta anos após sua erradicação quase completa na Europa, e devasta todo quadro institucional há muito estabelecido.

É precisamente sobre este último ponto, sobre suas raízes e causas subjacentes, que se propõem aqui algumas observações gerais. Pois, apesar do que foi escrito recentemente sobre o fascismo na América Latina, parece sempre apropriado insistir em pelo menos três aspectos: a estreita relação que existe entre os problemas que o imperialismo enfrenta nesta fase e a imposição na América Latina de regimes fascistas como seu esquema alternativo de dominação; a potencial ameaça que isso envolve e que não devemos subestimar de forma alguma: a expansão do fascismo a todo conjunto da região latino-americana; e o aprofundamento insuficiente, apesar do exposto, de uma consciência definitivamente antifascista em camadas muito amplas da população de nossos países.

Há um fato óbvio a reconhecer e valorizar em todo o seu significado: já hoje, a maioria da população latino-americana vive sob regimes fascistas ou fascistizantes. É também um fato que este quadro geral apresentado pela América Latina contrasta marcadamente com o que, entretanto, se passa em outras regiões do mundo: no Sudeste Asiático, na África, na transformação revolucionária de Portugal, nas mudanças que se insinuam muito próximas de ocorrerem como na Espanha. E também contrasta com as perspectivas que pareciam caracterizar a própria região latino-americana em meados da década de sessenta, tão fundamentalmente diferente destas que agora definem o início da segunda metade dos anos setenta.

A este respeito, basta recordar como a triunfante revolução cubana iniciou a sua tarefa de construir o socialismo, de transformar Cuba no primeiro país socialista da América Latina; e como alternativa à sua trajetória, ergueram-se as bandeiras da Aliança para o Progresso, simbolizando um esforço conjunto do capitalismo norte-americano e da burguesia nacional latino-americana para consolidar, por meio de concessões reformistas, os regimes democrático burgueses e seus projetos de desenvolvimento sob o signo do capitalismo. As opções, então, pareciam polarizar-se entre a revolução socialista e a consolidação de uma democracia burguesa um pouco mais progressista e modernizante; e ao seu redor se localizavam, de um lado, os movimentos revolucionários, e de outro, o surgimento de governos reformistas, apoiados no início pelo governo norte-americano e imbuídos das orientações das quais o mandato democrata-cristão de Eduardo Frei no Chile foi o seu expoente mais proeminente.

Hoje as opções são outras. Alguns poucos países da região ainda se esforçam para conter a dependência dentro de margens que permitam preservar a capacidade necessária para sustentar os projetos nacionais, sem necessariamente acompanhá-los com esforços semelhantes para transformar internamente e redefinir substantivamente seus objetivos sociais e padrões de desenvolvimento; para tanto, buscam a proteção da institucionalidade internacional e sua adaptação gradativa a tais exigências, bem como sua vinculação e atuação conjunta com os demais países subdesenvolvidos. Nos outros, a alternativa real potencializa suas características extremas: novos projetos de libertação da dependência e transformação interna de nítido conteúdo socialista; ou o aprofundamento extremo da dependência e da dominação monopolista, que, por sua vez, demandam como requisito político o estabelecimento de ditaduras com um óbvio sinal fascista.

As explicações para essa mudança, em um período histórico relativamente tão curto, devem ser buscadas tanto na evolução do capitalismo internacional – em meio às exigências da dominação imperialista -, quanto no esgotamento, mais avançado em alguns casos e menos manifesto ainda em outros, das possibilidades latino-americanas de desenvolvimento sob esquemas de capitalismo dependente.

E aquelas opções que tendem a polarizar as possibilidades reais, deixam menos espaço para ambiguidades, obrigam a esclarecer os termos em que os problemas são apresentados, redefinir objetivos, questionar instituições e ordenamentos jurídicos. Não é por acaso que em muito pouco tempo presenciamos os seguintes eventos: a divulgação das atividades da CIA, de outras agências do governo norte americano, e sua justificativa por parte das autoridades daquele país proclamando sua legitimidade para intervir no interno assuntos de outros países; a morte oficial da Aliança para o Progresso; a crise da OEA e o questionamento dos mecanismos políticos, militares e econômicos que constituem o sistema intra-americano; as propostas para estabelecer um sistema econômico latino-americano (SELA); a promulgação pelas Nações Unidas da Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados; A organização dos países exportadores de petróleo (OPEP) e o aumento substancial do preço deste produto; as reações ameaçadoras das maiores autoridades porta-vozes do imperialismo; e assim por diante.

A América Latina enfrenta essa situação com dupla desvantagem. Por um lado, as derrotas do imperialismo no Sudeste Asiático fazem dela a sua zona natural de recuo, com a consequência imediata de que ele necessariamente busca aqui acentuar os termos de sua dominação. Em segundo lugar, porque a fascistização de uma parte já muito importante da região, onde as condições de subordinação e dependência se extremam, tornam muito difíceis, senão francamente inviáveis, as possibilidades de definições e ações que envolvam efetivamente a região como um todo: é difícil que se constitua alguma posição latino-americana relevante com os Pinochets em seu interior.

Daí os esforços de alguns países para buscar essas definições e ações nos marcos mais amplos do terceiro mundo. Em outras palavras, a dimensão do Terceiro Mundo tornou-se uma dimensão necessária para o enfrentamento com o imperialismo e seus propósitos de preservar e aprofundar a dominação por meio da imposição de regimes fascistas.

  1. As mudanças nas formas de dominação imperialista.

Essa imagem de um destino capitalista e democrático na América Latina estava intimamente ligada a uma etapa do desenvolvimento do capitalismo internacional que, por sua vez, foi superada em seu significado qualitativo. Por isso, as mudanças apresentadas foram, sem dúvida, determinadas fundamentalmente pelas modificações que, entretanto, ocorreram no capitalismo internacional e em suas formas de organização.

Há todo um percurso a ser identificado na evolução desse capitalismo, em seu crescente processo de monopolização, em sua expressão imperialista, que marca o caráter de suas relações com o mundo subdesenvolvido, sob o signo permanente da dominação e da extração de recursos. É o percurso que nos mostra como historicamente a apropriação dos excedentes e a exploração dos recursos dos países subdesenvolvidos foi – e continua a ser – um fator essencial para o avanço dos grandes centros capitalistas; e como esse mesmo processo limitou – e continua a limitar – seu avanço e, em alguns casos, aprofundou ainda mais seu relativo subdesenvolvimento. Mostra-nos também como o caráter e as modalidades dessa relação vêm mudando, em consonância com as exigências do desenvolvimento capitalista.

Quando o ponto central eram os recursos naturais, o acesso e seu controle no mundo subdesenvolvido, então predominam as formas de dominação colonial ou apropriação territorial.

Quando mais recursos foram necessários para aumentar a acumulação e mais estímulos foram necessários para a expansão industrial dos centros capitalistas, tendeu a ocorrer uma divisão internacional do trabalho entre os produtores de produtos industriais e produtos primários, em que os primeiros se apropriaram de uma parte da renda gerada pelos últimos, por meio da relação de preço de troca entre um tipo de produto e outro. Suas indústrias receberam o incentivo das demandas para construir nos subdesenvolvidos a infraestrutura econômica adaptada a esta divisão do trabalho, com as necessárias vias de comunicação interna, as ferrovias, as instalações portuárias, etc. E suas capitais, na medida do necessário, foram deslocadas para assegurar o domínio direto das produções primárias estratégicas, constituindo enclaves[i] estrangeiros, buscando responder às exigências da economia externa e completamente isolados do resto das economias internas.

Quando se consolida um mundo socialista diante de tal presença competitiva, é necessário oferecer fórmulas mais generosas de convivência, e quando esta coincide com as exigências de uma expansão rápida e mais diversificada dos mercados externos que contribuem para sustentar a expansão contínua de grandes indústrias capitalistas, se abre a oportunidade para fórmulas mais flexíveis: os centros do capitalismo estão interessados ​​no empoderamento da periferia como um mercado comprador e, portanto, seu crescimento e modernização são apropriados; bem como o seu desenvolvimento industrial, com a única condição de acomodar certos padrões de dependência, bem como o impulso às reformas agrárias que permitam a incorporação de grandes massas da população rural ao mercado. Parece, então, que se formou a melhor oportunidade para o desenvolvimento de um capitalismo dependente, e é justamente a América Latina, região subdesenvolvida, que aparenta exibir os melhores atributos para isso.

Daí a coerência formal com que se define então um projeto continental e uma política norte-americana para a América Latina, bem como o enriquecimento dos instrumentos de que  se dotou o sistema interamericano. Acima dos antagonismos subjacentes, cada um define suas respectivas responsabilidades: o compromisso dos Estados Unidos de canalizar a cooperação econômica exterior de magnitude suficiente para contribuir para uma decolagem econômica definitiva; a das burguesias nacionais para assegurar a cota correspondente do seu esforço próprio, amparadas pelo reconhecimento de um certo grau de autonomia e também estimuladas a empreender impulsos democratizantes e reformistas políticos. A imagem da dominação é borrada, substituindo, aparentemente, as relações bilaterais por fórmulas multilaterais: surge o Comitê Interamericano da Aliança para o Progresso (CIAP) e personalidades latino-americanas se incorporam aos nove sábios, que examinam planos e programas e recomendam a superalocação de recursos financeiros de ascendência norte-americana; É lançado o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), como intermediário mais independente entre quem fornece e quem solicita esses recursos e, posteriormente – entre outros – a Corporação Andina de Fomento (CAF); A legitimidade de demandas específicas da América Latina é reconhecida por meio da CECLA, ou de associações privadas desses países por meio de esquemas de integração econômica regional: a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), o Mercado Comum Centro-Americano e o Pacto Andino.

Mas o esquema não é muito bem-sucedido nem muito duradouro. Diante das forças expansivas do capitalismo internacional e das exigências de sua dinâmica interna, as relações de dependência baseadas principalmente no comércio internacional e a presença dos enclaves tornam-se insuficientes, quando esse capitalismo atinge um estágio superior de internacionalização e, consequentemente, sente a necessidade de planejar em escala global a disposição e a utilização dos recursos do mercado, adicionar à sua própria acumulação uma maior parcela das potencialidades da periferia, recompor geograficamente a localização das atividades com base na disponibilidade relativa de recursos e até mesmo a partir de problemas ambientais, o esquema desmorona. É necessário buscar um novo ordenamento econômico capitalista em nível mundial e, para isso, é necessário penetrar diretamente e de forma generalizada nas economias subdesenvolvidas, a fim de organizar e controlar internamente suas linhas de produção, seus instrumentos financeiros, etc. Tudo tem que estar subordinado a este projeto: a variedade de formas de apropriação das receitas das economias subdesenvolvidas, desde de as tradicionais por meio dos termos de troca aos ganhos com investimentos estrangeiros muito mais extensos e generalizados, as retribuições por tecnologias e patentes, os ganhos financeiros derivados do elevado e crescente endividamento acumulado; acesso privilegiado a recursos locais para financiar a expansão de empresas estrangeiras; o domínio dos mercados; a adequação da infraestrutura econômica; a imposição ainda mais profunda dos valores culturais e das formas de consumo do capitalismo industrial. E para tudo isso, o instrumento ideal encontra-se nas grandes corporações transnacionais, capazes de consolidar em seu interior as políticas necessárias: transferência de tecnologia, substituição de importações, abertura de mercado e desenvolvimento de novas linhas de exportação, complementação e integração regional, planejamento, regulação de preços, e assim por diante.

A aliança para o progresso deixa de ser necessária e, após o enfraquecimento que se segue ao seu efémero período de euforia, é finalmente emitida a sua certidão de óbito formal. Os nove sábios do CIAP encerram seu trabalho. O Sistema Interamericano está entrando em crise, principalmente a OEA. O multilateralismo das organizações financeiras regionais (o BID, a CAF) pesa menos em sua conduta real do que as sugestões do Departamento de Estados dos Estados Unidos. E o próprio Chanceler Kissinger simboliza tudo isso na escassa deferência com que atende aos requisitos para sua apresentação em reuniões regionais. O instrumento privilegiado da política dos Estados Unidos para a América Latina reside mais uma vez principalmente nas atividades da CIA.

Nesse processo, as formas políticas de dominação também são inevitavelmente comprometidas. Uma vez estabelecida a realidade das contradições e dos antagonismos, dissipadas as esperanças de sua harmonização no quadro de uma suposta comunidade de interesses, restabelece-se a vontade de resolvê-los pela força sempre que for necessário ou conveniente para a potência hegemônica, e está sente-se portadora ou comprometida com um projeto democrático que supostamente seria de sua responsabilidade preconizar e ajudar a sustentar nos países latino-americanos. Ao contrário, o que fica em primeiro plano são as garantias de preservação de seus interesses, de aprofundamento de seu domínio, independentemente se para isso é necessário destruir o quadro institucional vigente, não só interrompendo suas possibilidades de desenvolvimento democrático, mas também substituindo por regimes fascistas subordinados e dependentes. É a ameaça do fascismo na América Latina, que se apresenta, antes de tudo, como expressão das novas exigências da dominação imperialista.

  1. As raízes internas do fascismo.

Não são tempos, porém, que permitam o exercício dessa dominação revivendo velhas formas abertamente coloniais. Esta mesma evolução do imperialismo criou, nas suas consequências sobre os países subdesenvolvidos da América Latina, as condições para que as forças do interior desses países sejam as encarregadas de administrar a dominação e a dependência sob novos esquemas políticos. Para isso contribui um conjunto de fatores, alguns objetivos e outros de natureza bastante ideológica, que influenciam o comportamento das camadas nacionais da grande burguesia monopolista, muitas vezes também das forças armadas e de outros setores sociais.

Em primeiro lugar, há evidências concretas de que a penetração das transnacionais está reduzindo progressivamente o espaço econômico da burguesia nacional latino-americana. Linhas completas dos ramos industriais mais dinâmicos, que até recentemente constituíam a principal reserva para estender os esforços nacionais de industrialização substitutiva, são instaladas e desenvolvidas pelas grandes empresas transnacionais; essas penetram também em diversos ramos das indústrias transnacionais, instalando novas unidades dotadas de todas as vantagens para prevalecer sobre a concorrência ou comprando empresas nacionais existentes; seu controle sobre as tecnologias e seu domínio dos mercados externos do mundo capitalista reforçam sua posição; se estendem a mecanismos financeiros internos, o que lhes permite canalizar uma parcela crescente das potencialidades nacionais de acumulação. Em suma, sua presença avassaladora debilita as burguesias nacionais, adormece ou erradica suas condutas ou projetos nacionalistas, e as induz, ao contrário, a buscar sua associação com interesses estrangeiros, a se tornarem sócios menores ou simples agentes destes. Abundam os sinais e indicadores recentes sobre o crescente grau de desnacionalização das economias latino-americanas, particularmente nos setores industrial e financeiro.

Essas condutas são também influenciadas pelas sucessivas frustrações e fracassos das políticas de desenvolvimento que têm expressado o propósito de buscar a afirmação de um desenvolvimento capitalista, com certo grau de autonomia, sob um esquema de capitalismo dependente, e de encontrar nele uma solução para os problemas e demandas mais cruciais.

Em momentos distintos e com intensidade diferente, os países da região têm enfrentado sinais de esgotamento deste esquema, expresso em desequilíbrios e tensões que não podem ser superadas e cuja raiz está, juntamente com os fatores externos mencionados, no próprio padrão de desenvolvimento interno que vem tomando forma. Isso tem demonstrado um caráter essencial e necessariamente concentrador, seja do ponto de vista da distribuição de renda, das tendências pronunciadas e precoces a altos graus de monopolização da atividade econômica, seja da assimilação do progresso técnico em determinados setores ou estratos de atividades produtivas, seja na distribuição regional da atividade no interior dos territórios nacionais. Sem entrar na análise das causas que determinam tais tendências, nem na descrição de sua mecânica de funcionamento e de suas inter-relações, basta apontar algumas de suas principais consequências do ponto de vista do assunto que aqui nos interessa.

Os mais visíveis localizam-se nos desequilíbrios externos e internos: uma espiral de endividamento com o exterior permite evitar temporariamente os déficits da balança de pagamentos, até que se acumule uma dívida externa cujo serviço comprometa proporções extremamente elevadas da receita corrente das exportações e as situações tendem a se tornarem facilmente manejáveis; internamente, a luta pela participação na distribuição da renda – tanto mais acirrada quanto menor o seu crescimento -, as necessidades de investimento público para sustentar o desenvolvimento e a crescente demanda por expansão dos serviços sociais públicos que atenuam os efeitos da concentração de renda, são fatores que contribuem para a presença permanente de pressões inflacionárias e instabilidade monetária. O desequilíbrio externo e as manifestações inflacionárias internas tornam-se assim duas áreas de crescente preocupação, frente às quais se esterilizam as medidas diretas de correção, desde que não toquem as raízes profundas que as originam.

Igualmente visível, e com consequências sociais e políticas mais profundas, é a incapacidade que o sistema tem mostrado para absorver produtivamente o crescimento da força de trabalho, configurando um problema comum a quase todos os países latino-americanos, com taxas de desemprego relativamente altas, níveis mais elevados de subemprego e um volume crescente de marginalização de setores importantes da população. A modernização e os avanços na industrialização são evidentes; mas sua insuficiência também é clara, e sua orientação inadequada, de modo que o acesso que abrem a níveis e formas de vida similares àquelas dos países mais avançados se limita a setores de alta renda da população, enquanto permanece sem resolução os problemas essenciais da vida material de amplas camadas sociais, deforma-se a estrutura ocupacional e a miséria rural se transforma em marginalidade urbana. As políticas econômicas se deparam, então, com demandas contraditórias, e acabam alternando períodos que as caracterizam ora por esforços estabilizadores, com os quais se propõe enfrentar os desequilíbrios, e ora por objetivos desenvolvimentistas, com os quais se propõe enfrentar as insuficiências, como se fosse um problema unicamente de taxa de crescimento econômico global. Contudo, a verificação objetiva dos fatos está revelando a ineficácia de ambos, e abrindo o entendimento de que, em última instância, é o próprio padrão de desenvolvimento que é questionado, isto é, a possibilidade de que um esquema de capitalismo dependente e subdesenvolvido permita reproduzir, nas condições mundiais de hoje, um caminho de desenvolvimento capitalista que conduza ao tipo de sociedade e aos traços econômicos exibidos pelos países capitalistas avançados, aqueles que constituem a imagem para a qual se busca evoluir.

O momento e a intensidade com que surgem situações desta natureza, em cada caso nacional, dependem de uma série de fatores. Seria necessário considerar, entre eles, o tamanho absoluto do país, na medida em que isso determina, em parte, as possibilidades de extensão do regime a partir das demandas da parcela da população alta renda; a maior ou menor capacidade das diferentes camadas sociais de se mobilizarem ativamente na defesa de seus interesses em função da tradição e da força de suas organizações sociais e do grau de desenvolvimento de sua consciência política; o grau de dependência que se vem formando e a magnitude e diversificação de suas relações econômicas externas; a relativa dotação de recursos e as possibilidades de incorporação de recursos não utilizados que oferecem novos estímulos dinâmicos à expansão do sistema; etc.

Na medida em que as condições de esgotamento se cristalizam, as opções inevitavelmente tendem a se polarizar. O que vem à tona é a alternativa cada vez mais definida entre um esforço de libertação da dependência, de profundas transformações sociais e econômicas, uma redefinição substantiva do padrão de desenvolvimento ou um conjunto de ações não menos determinadas para a preservação do sistema. Este último exige aprofundar a subordinação e dependência externas – necessárias para sustentar e prolongar o modelo -, a imposição dos custos sociais de uma política estabilizadora drástica, que resolva os desequilíbrios e garanta taxas de lucro suficientemente elevadas para constituir incentivos capazes de reativar a acumulação e atrair novos investimentos estrangeiros. Com isso, acentuam-se as características de estrangeirização e concentração do sistema, a ponto de ser incompatível com o atual arcabouço institucional. Seja como reação ao avanço das forças progressistas e dos projetos de libertação e transformação do sistema, seja na busca de condições que garantam a preservação do modelo, avançam as forças que propõem diretamente a substituição das instituições democráticas por formas ditatoriais de exercício do poder político. Para isso, convergem os interesses do imperialismo e da grande burguesia monopolista, cada vez mais dependente e identificada com eles, e o imperialismo tem a oportunidade de resolver seus problemas de dominação através de setores da burguesia e das forças armadas nacionais, por meio da imposição, desta vez, de formas fascistas de dominação.

  1. As características do fascismo atual na América Latina.

Em suma, o ressurgimento do fascismo nas condições atuais da América Latina encontra sua força motriz nos propósitos do imperialismo de preservar e aprofundar sua dominação, e em sua capacidade para mobilizar burguesias a ele subordinadas em seus interesses objetivos. O fato de se sentir obrigado, sobretudo nesta fase, a recorrer a modalidades fascistas de dominação, decorre, por sua vez, de um conjunto de fatores: a incapacidade de regimes democrático-burgueses de suportar as consequências políticas e econômicas do esgotamento das possibilidades dinâmicas do capitalismo dependente; o avanço das forças sociais que propõe sua substituição, com projetos definidos de libertação e transformações revolucionárias, e que ameaçam tanto os interesses imperialistas quanto os das burguesias internas; a necessidade de estender ao máximo a penetração econômica estrangeira e eliminar qualquer obstáculo à instalação e ao funcionamento das transnacionais; a exigência de regimes de força para impor aos trabalhadores o deterioramento de suas remunerações reais e a diminuição das oportunidades ocupacionais, a fim de sustentar políticas estabilizadoras que absorvam os desequilíbrios do sistema e aumentem a taxa de lucro para acelerar a acumulação capitalista.

Não é surpreendente que a expressão mais pura desse fascismo latino-americano se dê no caso do Chile. Lá, os sinais de esgotamento do capitalismo dependente se tornaram particularmente manifestos, com um grau relativamente avançado de desenvolvimento industrial e um mercado interno relativamente pequeno, limitado pelo tamanho absoluto da população e concentração de renda. A classe trabalhadora teve uma longa tradição de luta e organização, na sua expressão sindical e representação política. O domínio estrangeiro sobre o cobre – estendido progressivamente a uma série de outras atividades – entregava o controle de um recurso decisivo para as receitas de exportação e para a capacidade geral de acumulação. As tensões sociais e políticas e os desequilíbrios decorrentes motivaram uma sucessão de experiências muito diversas na tentativa de sua resolução no interior do sistema: o populismo ibañista; a política estabilizadora, reacionária e estrangeirizante de Alessandri; o reformismo no mandato democrata-cristão de Frei, que contou ainda com o endosso categórico do governo norte-americano e dos mecanismos da Aliança para o Progresso; e após cada uma delas se aprofundou a dependência, aumentava o desequilíbrio exterior e os desequilíbrios econômicos internos, a marginalidade aumentava e os problemas mais imediatos da condição de vida material de amplas camadas da população não foram superados. Logo, foi ali onde se deu o mais incisivo projeto de libertação, de transformações sociais e econômicas profundas, de busca de um caminho de desenvolvimento, afetando seriamente os interesses imperialistas e da grande burguesia monopolista.

Sua própria origem, nos termos indicados, marca de modo inevitável algumas das características básicas dessas expressões atuais do fascismo na América Latina.

Na medida em que responde às exigências da dominação imperialista – e é o imperialismo que o incuba e o sustenta – possui um caráter necessário e profundamente antinacional. Não são primordialmente as forças internas que o geram como instrumento de realização de projetos nacionalistas, ao contrário, essas forças têm unido, a partir de uma posição subordinada e secundária, seus próprios interesses aos interesses do poder imperial, e, consequentemente, agem em seu nome, tomando como sua a missão de aprofundar a dominação e a dependência. Por isso, assim que o fascismo é implantado, os estatutos do investimento estrangeiro são revistos, para lhe concederem o máximo de privilégios, as mais diversas atividades são desnacionalizadas, se retrocedem as ações anteriores de recuperação soberana dos recursos básicos do país, e as condições de entrada das transnacionais são garantidas indiscriminadamente com a maior impunidade em seu funcionamento, facilitando a apropriação e transferência ao exterior de todos os tipos de recursos nacionais. Na melhor das hipóteses, para não recorrer em excessiva imprudência, esses objetivos são disfarçados sob o manto de determinadas concepções de política econômica, cambial ou de comércio exterior que, em última instância, visam apenas facilitar esse aprofundamento da dependência.

Além disso, esse caráter antinacional não limita suas expressões às fronteiras nacionais, mas faz do país onde foi entronizado um instrumento que também atende aos interesses do imperialismo em relação a outros países latino-americanos. Em alguns casos, como o do Brasil, pode ser atribuída a função de atuar como uma espécie de sub-imperialismo nas relações de dominação sobre outros povos da região; em outros casos, como ocorreu claramente com o fascismo chileno, pode se converter em instrumento para a destruição de mecanismos de defesa regionais (o caso do Pacto Andino e seu acordo de tratamento comum ao capital estrangeiro) ou para esterilizar toda tentativa de definição de políticas comuns no âmbito regional.

Em segundo lugar, na medida em que responde nitidamente, no âmbito interno, aos interesses da grande burguesia monopolista, [o fascismo] [ii]precisa se impor afetando as mais diversas camadas sociais da nação. Acelera o processo de monopolização das atividades econômicas internas, destruindo médias e pequenas empresas e sacrificando, consequentemente, os interesses objetivos da pequena e média burguesia empresarial. As condições de superexploração dos trabalhadores, necessárias para atrair o capital estrangeiro e fortalecer as potencialidades de acumulação, castigam duramente a classe trabalhadora e outros setores populares. Ao constituir um modo de extrema subordinação aos interesses imperiais, e não de projetar – como ocorreu com o fascismo europeu – um domínio próprio sobre outros povos, nada tem a oferecer à pequena burguesia nacional, a menos que essa também compartilhe os sacrifícios envolvidos em sua retribuição aos interesses do imperialismo e da grande burguesia. Em última análise, trata-se de um esquema fascista que não tem possibilidade de se sustentar em um apoio social de massas, de camadas numericamente importantes da população. Os valores que exprime em sua demagogia podem penetrar temporariamente em setores da pequena burguesia, a ponto de se constituírem como agentes ativos na preparação do golpe fascista e como partidários do seu triunfo em uma primeira fase, porém, definitivamente, descobrem contradições que se vêm incapazes de superar.

Esta dupla caracterização que lhe é inerente, a do seu caráter profundamente antinacional, e da sua impossibilidade de se sustentar em um movimento organizado de massas, apoiado principalmente por parcelas importantes da pequena burguesia, tem alimentado certa polêmica acerca da propriedade conceitual da classificação de fascistas às ditaduras instauradas em diversos países latino-americanos, incluindo o caso do Chile. Isso, no entanto, não obscurece a questão central e decisiva: são situações em que a preservação dos interesses de classe (nesses casos, da classe dominante no poder imperial e, como tem sido chamada, da classe dominante-dominada no interior) leva à destruição de toda uma institucionalidade, à supressão de todos os direitos individuais e coletivos, a impedir qualquer forma de organização social que não a submetida e controlada pelo poder ditatorial, a sufocar todas as formas de expressão social e a sustentar-se, portanto, por meio da vigência permanente da repressão mais brutal. Ou seja, manter a todo custo um sistema capitalista – no nosso caso, de capitalismo dependente e subdesenvolvido -, apagando qualquer sinal de expressão democrático-burguesa.

Essa é a constante fundamental no ressurgimento do fascismo na América Latina hoje. Não exclui, de forma alguma, diferenciações importantes em outros aspectos de sua composição, de acordo com as diferentes condições nacionais específicas. Em alguns casos, pode estar mais orientado para a coexistência de um capitalismo de estado com a penetração generalizada de interesses estrangeiros, principalmente por meio de grandes empresas transnacionais. Em outros, como ocorre no Chile, há uma aparente dissociação entre um esquema político nitidamente fascista e uma espécie de liberalismo econômico absoluto; que também se revela um caminho eficaz e ainda mais aberto, apesar de sua roupagem tecnocrática, de favorecer os interesses do imperialismo e da grande burguesia monopolista; dissociação essa, diga-se de passagem, que acaba não sendo compreendida em seu real significado por muitos militares chilenos, que também podem não conseguir conciliá-la com a concepção ideológica que lhes foi transmitida em sua formação nas forças armadas.

  1. As perspectivas e os requisitos da luta antifascista.

Se a presença já instaurada do fascismo em vários países latino-americanos é entendida desta forma, não como acontecimentos conjunturais ou fruto de circunstâncias nacionais específicas e da forma como foram enfrentados, mas como expressão de forças externas e internas muito poderosas que de um modo ou de outro estão atuando em todos os nossos países, não podemos deixar de tirar algumas conclusões que também têm um importante sentido prático.

Trata-se, em primeiro lugar, da necessidade urgente de uma gigantesca mobilização da opinião e da vontade latino-americana, de povos e governos, para se opor ao fascismo. Isso significa contribuir tanto quanto possível para a derrota do fascismo onde ele já está estabelecido; mas também significa prevenir por todos os meios a propagação do fascismo a outros países da região

A própria solidariedade internacional com os povos que lutam contra o fascismo em seus países adquire outro significado, porque se torna uma solidariedade que tem muito de autodefesa. Em poucas palavras: a mera permanência e consolidação de regimes fascistas em alguns de nossos países aumenta a ameaça aos outros, não necessariamente porque poderiam abrigar propósitos agressivos diretos, mas porque enfraquecem a capacidade comum de resistência contra as forças externas que os sustentam, e porque a sua presença implica na aceitação tácita da imunidade para o exercício, no mundo de hoje, dessas formas de dominação.

E trata-se também da eficácia dessa solidariedade. Porque é verdade, para citar novamente o caso tão dramático quanto instrutivo no Chile, que o povo chileno conheceu expressões de solidariedade internacional, em uma magnitude que provavelmente não tem precedente histórico, que salvou muitas vidas, e que criou um clima global de condenação moral da ditadura fascista. Mas também é verdade que toda a institucionalidade internacional foi desafiada e continua a ser desafiada, violando os princípios básicos em que se baseia, e que as reações dessa institucionalidade não foram além da aprovação de resoluções formais; que acima desse clima de condenação moral, continuem a ser obtidos recursos da cooperação econômica internacional para sustentar a ditadura, e até mesmo armas e suprimentos para o exercício da repressão; que apesar dos sentimentos dos povos e das decisões políticas dos governos, as relações comerciais se sustentam e aumentam, inclusive com vários países da própria região latino-americana, e há até votos a favor da concessão de novas contribuições por parte dos órgãos internacionais. Enquanto isso, o fracasso do projeto econômico da ditadura fascista chilena acaba sendo um poderoso impedimento para a extensão do esquema a outros países latino-americanos, porque se esse esquema tivesse sido bem-sucedido no Chile, em relação aos seus próprios objetivos, os riscos de contaminação seria mais iminente; de maneira que, deste ponto de vista, os sacrifícios a que está submetido o povo chileno acabam sendo uma contribuição significativa para deter as forças expansivas do fascismo em outros países da região.

A outra conclusão que emana é a de uma identificação necessária da luta antifascista com a luta anti-imperialista. Uma vez que este ressurgimento do fascismo constitui uma resposta às exigências da dominação imperialista, não existe uma barreira de salvaguarda eficaz que não passe por um esforço coletivo para impedir a sua penetração, enfraquecer os laços de dependência que foram se tecendo e enfrentar decisivamente uma tarefa de libertação e independência económica. As raízes do problema estão localizadas a nível mundial, nas características e requisitos da evolução imperialista; as respostas necessárias devem, portanto, ter uma dimensão comparável, que as coloque inevitavelmente no âmbito das relações e ações conjuntas dos países latino-americanos, do mundo subdesenvolvido em geral, e mesmo deste com a classe trabalhadora dos países capitalistas industrializados.

No plano latino-americano, não existem obstáculos fundamentais para harmonizar os interesses dos povos e promover a mobilização conjunta das organizações que os representam em torno dos objetivos de libertação e contentamento da penetração imperialista. Mas o mesmo não acontece ao nível dos governos – que são aqueles que têm capacidade de representar a institucionalidade atual e podem avançar nos mais diversos entendimentos de ação conjunta para a defesa dos interesses nacionais -, a partir do momento em que entre esses governos há vários definitivamente subordinados aos interesses do imperialismo norte-americano. Em outras palavras: com os Pinochet dentro, não há possibilidades reais de sustentar uma política latino-americana em relação aos Estados Unidos que represente de maneira efetiva e consistente os interesses regionais e as exigências de libertação da dependência. Além disso, a presença de regimes como estes é, pelo contrário, responsável por suscitar e agravar conflitos e contradições entre os próprios países latino-americanos, que enfraquecem e esterilizam a sua capacidade potencial para enfrentar em conjunto o desafio imperialista.

Por exemplo, que estabilidade pode ter uma política conjunta que busca, em seus termos atuais, harmonizar os interesses da Bolívia e do Brasil em relação a denúncias, como aquela formulada em documento público por dois ex-presidentes da Bolívia e dirigentes de vários partidos naquele país, em abril de 1974, em que assinalavam textualmente que “os planos expansionistas do governo brasileiro … passam a ser executados tanto a serviço próprio como por delegação regional de uma política hemisférica norte-americana voltada para a consolidação e o avanço do regime de dependência e do sistema de segurança fascista para o cone sul do continente ”; e quando exilados bolivianos denunciaram simultaneamente as “vergonhosas negociações de gás e ferro com o Brasil, as concessões outorgadas a empresas transnacionais em matéria de petróleo e outros recursos naturais”. Ou que objetivos comuns podem mobilizar conjuntamente a ditadura chilena e o governo do Peru, perante a Televisão Ibero-americana em 19 de março de 1975, quando argumentou que “o governo peruano será inevitavelmente derrotado. Isso é iminente e você sabe melhor do que eu. ”

Permanece o fato paradoxal de que a América Latina constitui a região mais ameaçada pelos propósitos do imperialismo de impor esquemas fascistas de dominação e ao mesmo tempo registra os maiores obstáculos a uma mobilização solidária para enfrentá-los. Não é surpreendente, portanto, que muitos dos esforços que surgem dos países latino-americanos, que mantêm suas próprias vontades e capacidades de tomada de decisões, busquem ser canalizados para as fronteiras mais amplas do terceiro mundo. Não é preciso repetir: neste confronto mundial, a dimensão do Terceiro Mundo tornou-se uma dimensão necessária para o confronto com o imperialismo e seus objetivos de preservar e aprofundar a dominação através da imposição de regimes fascistas.

Se trata, no entanto, de uma dimensão geográfica que não importa tanto como tal, mas sim até que ponto, em seu interior, eles se identificam , primeiramente, como uma grande maioria de países que compartilham não apenas sua condição de subdesenvolvimento, mas também suas relações de dependência com os grandes países capitalistas; e em segundo lugar, outros que, em sua trajetória de libertação, se solidarizam com eles e compartilhem da necessidade de redefinições substantivas da institucionalidade internacional, que facilitem a proteção de seus legítimos interesses.

É um fato concreto que existe uma nova realidade. A descolonização vem incorporando um número crescente de países à vida política independente, cuja adesão aos mecanismos das instituições internacionais tem aumentado a representação do mundo subdesenvolvido; Sua gradual consolidação política fortaleceu essa representação, que também se torna mais eficiente à medida que acumulam experiência na gestão de seus próprios negócios; e esses países têm encontrado, ao mesmo tempo, diversas formas de associação política e econômica entre si que lhes permitem enfrentar melhor a defesa de seus interesses comuns.

Foi precisamente essa presença crescente de países do Terceiro Mundo que levou à aprovação na Assembleia Geral das Nações Unidas (em abril-maio ​​de 1974) de uma declaração e um plano de ação para o estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional. As posições desses países foram posteriormente reafirmadas e especificadas na declaração de Cocoyoc (outubro de 1974), no Comunicado do Terceiro Fórum Mundial (Karachi, fevereiro de 1975) e nas declarações de Dacar e Argélia (fevereiro de 1975). A aprovação formal nas Nações Unidas da Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados e a ação conjunta acordada no âmbito da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) constituem duas das mais significativas demonstrações da capacidade desses países de transpor seus propósitos em instrumentos concretos.

Porém, não se trata de uma capacidade que se reconhece sem motivar o desconhecimento ou reações contundentes dos interesses que afeta, apesar de sua plena legitimidade. Já em outubro de 1974, por ocasião do pedido de expulsão da África do Sul das Nações Unidas, as grandes potências capitalistas manifestaram-se dispostas a exercer seu direito de veto no Conselho de Segurança para conter a tendência do Terceiro Mundo para impor sua supremacia na ONU. Por sua vez, a delegação norte-americana à Assembleia Geral das Nações Unidas, após votar o texto da Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados, declarou que se tratava de “um documento eminentemente unilateral, que apenas representa a opinião dos países que atualmente dominam a Assembleia Geral ”. E em novembro de 1974, o presidente Echeverría se sentiu obrigado a denunciar antes da Conferência Mundial da Alimentação que “os Estados Unidos e a Europa Ocidental escondem alimentos e realizam manipulação política internacional com programas de ajuda alimentar para nações famintas”, ao mesmo tempo, afirmou que ” as empresas transnacionais mantiveram secretos depósitos de recursos naturais que só eles conheciam e que agora usam como meio de pressão para criar, com confusão, situações contraditórias entre as nações ”. Não menos violentas foram as reações das potências capitalistas aos acordos da OPEP sobre os preços do petróleo, que levaram o presidente Ford a ameaçar, entre outras coisas, que “as nações soberanas não podem se permitir ser ditadas pela política que devem seguir ou ter seu destino decidida por meio de manipulação artificial e distorção dos mercados mundiais de produtos … é muito difícil falar sobre problemas de energia sem cair em uma linguagem apocalíptica. E, finalmente, antes mesmo da derrota do imperialismo norte-americano no Sudeste Asiático ser consumada, falava-se nos Estados Unidos (segundo comentários da Agência AP, em telegramas de 9 de abril de 1975) de “pressão para que Washington adotasse uma nova política de linha dura para os países do Terceiro Mundo, inclusive o Panamá; do desejo de reimpor com firmeza a supremacia norte-americana ”; e que “segundo algumas fontes, o secretário de Estado Henry Kissinger tem levantado com o presidente Ford a necessidade de uma política externa mais incisiva diante das derrotas sofridas pelos aliados dos EUA na Indochina”.

Trata-se, portanto, de questões não apenas polêmicas, mas também o exercício de posições de força que determinam a natureza de sua resolução final, e diante das quais os países do Terceiro Mundo continuam a enfrentar dois requisitos essenciais: fortalecer e consolidar sua ação conjunta com um claro conteúdo anti-imperialista; e desenvolver formas efetivas de solidariedade com os povos que, dentro do próprio Terceiro Mundo, lutam para derrubar os regimes fascistas estabelecidos sob respaldo dos interesses imperialistas.

Provavelmente, nesta fase, a relação de interesses entre os países subdesenvolvidos e a classe trabalhadora dos países capitalistas industrializados também será reconsiderada. No passado, essa relação era difusa e contraditória. De maneira geral, as diversas formas de exploração nos países subdesenvolvidos, que favoreceram a expansão das grandes potências capitalistas, têm beneficiado seus trabalhadores, facilitando maiores taxas de crescimento econômico e a elevação de seus salários reais. No entanto, nem sempre foi a mesma do ponto de vista da taxa de lucro e da taxa de salários. A transferência periódica de atividades dos centros capitalistas para a periferia do sistema – em função das necessidades de peças de reposição tecnológicas e transferência de recursos para atividades novas, mais dinâmicas e de alta tecnologia – salvou os interesses capitalistas de maiores pressões sobre a disponibilidade de trabalho e, assim, contrariou a tendência de queda da taxa de rendimentos e o aumento da participação relativa dos trabalhadores na distribuição da renda. Ou seja, essa transferência das etapas anteriores de industrialização (em uma etapa, das indústrias levianas de consumo atual; em outra, dos bens de consumo duráveis ​​e mesmo de certas indústrias de base), que alimentou a imagem de certo desenvolvimento industrial autônomo do países periféricos, significou para os grandes centros capitalistas um exército industrial de reserva fora de seu próprio território, mas não é menos eficaz para conter aumentos de salários reais nesses países e sustentar altas taxas de lucro e acumulação escoradas também na exploração de seus próprios trabalhadores.

Seja como for, este processo historicamente registado pode ser mais conflituoso nas novas condições, com a maior internacionalização do capitalismo, a dinâmica das transnacionais tende a adquirir e as atuais condições de competição entre os grandes países capitalistas industrializados. A transferência massiva de uma variedade de atividades industriais, para contar com os salários muito mais baixos prevalecentes nos países subdesenvolvidos (embora às vezes se queira justificar por problemas ambientais), pode representar uma séria ameaça aos níveis de emprego e salários dos trabalhadores dos centros capitalistas, antes que tenham oportunidades suficientes de absorção nos novos desenvolvimentos de alta tecnologia. Muito disso já estava evidente na recente contração das atividades na economia capitalista mundial, na qual muitas subsidiárias de corporações transnacionais estabelecidas em áreas subdesenvolvidas foram menos afetadas em suas atividades e níveis de emprego do que suas sedes.

Na medida em que isso ocorra, serão fortalecidos laços objetivos de solidariedade entre os interesses dos países dependentes e os dos trabalhadores dos grandes países capitalistas, com as projeções políticas que isso pode ter como fator também de fortalecimento da luta por libertação do Terceiro Mundo

Fragmentos de três entrevistas realizadas por Carlos Ortíz Tejeda durante os primeiros dias após o golpe militar no Chile.

General Gustavo Leigh (General da aviação, membro da junta)

C.O.T.: … e minha pergunta é: como a Junta, como o grupo militar; de que ponto de vista filosófico, em que teoria sustentam atribuir-se o Direito frente aos partidos majoritários? Por que os militares, que, em última instância, são menos, reivindicam o direito de liderar um país, de dizer que estabelecerão uma constituição por tempo ilimitado… que manterão não só o governo, mas o poder? Como advogado, gostaria de conhecer, em certa medida, uma nova versão (do ponto de vista do direito constitucional, da filosofia do direito e da filosofia do poder) daquela teoria em que se sustenta essa tomada do poder, deixando de lado, segundo expressões ditas há poucos instantes, os partidos políticos, grêmios, sindicatos e todas as organizações. Qual seria filosoficamente essa sustentação?

General Leigh: Não desejo a nenhum país, honestamente, que toda sua população se dedique à atividade política de partidos ou pequenos partidos; chegou-se a tal extremo que os universitários não estudavam, as crianças nas escolas não estudavam, as fábricas não trabalhavam e toda a atividade nacional se reduzia a uma luta política de menor categoria. Dias antes do movimento militar, o país estava praticamente paralisado em sua totalidade. Agora, se me pergunta por que um grupo pequeno como os militares se atribuíram o poder de decisão. A isso eu posso responder-te que o movimento militar interpretou a maioria absoluta do país que estava nos implorando, há mais de um ano, que acabássemos com o caos. E a vocês, como jornalistas estrangeiros, convido-os a visitar as cidades e o país, e vejam qual é o sentimento de libertação sentido pela maioria dos cidadãos que vivem nesse país.

Vilarín (líder do grêmio patronal dos transportadores)

C.O.T.: O senhor considera que o grêmio, comandado por ti, foi fator definitivo na queda de Allende?

Vilarín: Sim senhor. Pelo bem do Chile e pela liberdade do Chile.

C.O.T.: Na entrevista que tive com o general Leigh, ele afirmou que permaneceriam no poder até que a situação do país seja considerada aceitável. Um grêmio tão importante como o seu pode aceitar que um grupo, seja qual for, no caso, dos militares, quem diz quando as condições são aceitáveis para restaurar a vida dos partidos e a luta democrática no país?

Vilarín: Nós, e eu pessoalmente, como chileno, no momento em que vi que não havia possibilidade alguma que o governo que acaba de ser deposto resolvesse qualquer problema social ou gremial no Chile, pedi às forças armadas que assumissem a responsabilidade de governar este país e colocar ordem. Quanto às opiniões do general Leigh, eu as compartilho totalmente. Este país precisa de ordem há muito tempo, e quando houver ordem, virá a forma que sempre tivemos de eleger o presidente nas urnas.

Silvia Ritamont (pequena burguesia da capital chilena)

C.O.T.: … A senhora considera que os militares devem permanecer no poder?

Ritamont: Acredito que devem permanecer por muitos anos.

C.O.T.: Então seu marido, seus filhos… são menos capacitados que os militares para dirigir o país?

Ritamont: Não é que sejam menos capacitados, mas lamentavelmente estávamos em um grau de politização que até as crianças desde os primeiros anos já falavam de política… ninguém tinha segurança… não se podia construir. O que eu acho que os militares tem, de fato, é uma capacidade de ordenamento muito superior.

C.O.T.: Senhora, essa ordem e progresso não resulta de uma ideia basicamente fascista?

Ritamont: Ordem e progresso? Bem, não sei por que você usa exatamente esse lema; por exemplo, o meu movimento tem como lema Solidariedade, Ordem e Liberdade. É outra forma, mas sim, basicamente ordem… Não vejo porque haveria de ser fascista… houve uma distorção no idioma.

C.O.T.: O que acha do Pátria e Liberdade?

Ritamont: Veja, não conheço bem o movimento… acho que são rapazes muito valentes… que arriscaram muito… não acho que fossem a via, ainda menos no Chile; mas talvez fossem a resposta a outros grupos extremistas que estavam se formando do outro lado. Acredito que no mundo o equilíbrio é uma lei natural que se produz de quaisquer maneiras.


Notas

[i] [N.T.] A definição de enclave no Diccionario de la lengua española aparece como: “território incluído em outro com diferentes características políticas, administrativas, geográficas, etc. Também pode ser definido como um grupo étnico, político ou ideológico inserido em outro e com características diferentes.”

[ii] [N.T.] Colchete inserido pela tradução.

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