Os comunistas em busca de uma estética brasileira

Por Heribaldo Maia (1)

Quando eu era criança, num tempo em que a internet e os computadores não eram tão difundidos como hoje e os smartphones sequer existiam (o que revela minha idade), a televisão era o veículo entretenimento principal em vários lares. Como toda criança, eu queria assistir aos desenhos animados e programas infantis, mas nem sempre era o que estava passando na programação. Nesses casos, eu ficava brincando, ouvindo a televisão de fundo, que ficava ligada para ninguém ou para algum dos adultos que frequentavam minha casa. Foi assim que pela primeira vez eu vi algo sobre a esquerda na minha vida, ainda que eu nem soubesse o que era esquerda, direita ou para que servia todo aquele falatório sobre coisas que eu não entendia. Foi o horário político que me apresentou o mundo da política, quando eu ainda era uma criança.

Eu me recordo que sempre assistia ao horário político. Sim, eu era uma criança um pouco estranha. Mas algo ali me chamava a atenção. A verborragia de palavras rápidas (privatização, corrupção, educação, dívida, emprego etc. etc.), os candidatos, que pareciam personagens de alguma comédia ruim com nomes esdrúxulos, slogans absurdos como “pena de morte já!” e caricaturas tão reais que me faziam me perguntar: quem eram aquelas pessoas completamente sem noção?

Quando entrei na fase dos 10-12 anos, já entendia mais coisas. Sabia que se tratava de políticos, que concorriam a cargos que, de algum modo (isso ainda não entendia), governavam nosso país e deveriam, em tese, resolver alguns problemas, que em toda eleição eram os mesmos. Mas ao invés de levar com seriedade a política com o progressivo aprendizado do que se tratava, eu fazia chacota. O eu pré-adolescente se sentava e assistia aos horários políticos, aguardando ansioso os candidatos bizarros, caricatos e com performances absurdas. Para mim se tratava de uma grande comédia – o que não deixa de ter sua verdade, talvez até mais verdadeira do que a seriedade com que levamos a política institucional brasileira. A política, que se expressava para mim como o horário político, era uma grande comédia bastante engraçada que eu fazia questão de acompanhar.

Meus personagens favoritos eram os políticos mais caricatos. Aqueles com nomes que parecem uma piada de quinta série, os que se fantasiavam, os que faziam promessas sem qualquer nexo, os que gritavam pedindo seu voto e… os partidos da esquerda radical. Mas, ao contrário do que se possa parecer, afinal, hoje eu faço parte dessa esquerda, não foi por isso que eu me tornei comunista. Inclusive, acho bastante improvável que alguém tenha se tornado comunista ou socialista vendo os programas eleitorais da esquerda radical dos anos 90 e, arrisco dizer, nem de hoje (salvo raras exceções e entendendo que hoje as coisas estão um pouco, mas pouco mesmo, melhores – falarei disso mais na frente).

Claro, eu não entendia sobre as condições desiguais das disputas eleitorais, não sabia nem sobre comunismo, menos ainda sobre anticomunismo. Não sabia das relações de forças da política brasileira e das tendências da mídia liberal. O tempo curto, a desigualdade financeira gigante entre os partidos; não sabia de nada disso.

Mas o ponto é que é natural que quando crianças, pré-adolescentes, tenhamos a tendência de tomar a realidade burguesa como natural, naturalizando suas relações e tomando sua idealidade formal como o mundo concreto, absoluto e universal, como nos ensinaram Marx e Engels. Então, a questão passa a ser: como burlar essa naturalização do modo de vida burguês de algum modo?

Claro que há várias estratégias para que tal objetivo seja alcançado, porém, penso eu, a estética seja um elemento fundamental nesse processo. Temos que pensar que o processo de naturalização do capitalismo é tão arraigado que, mesmo que tenhamos consciência (e temos tal consciência!), de que vivemos uma vida de precariedade, violência e exploração, isso não significa um impulso crítico ante a tais situações. Ou seja, não basta o olhar à realidade, é preciso que esse olhar seja acompanhado da criação de pontes semânticas que permitam que as articulemos determinados acontecimentos cotidianos ao julgamento crítico, para que associemos tal fato a algo injusto e passível de ser transformado.

Primeiro ponto, a criação de pontes semânticas. Quando criança eu tive uma educação bastante violenta (física e mentalmente). Por óbvio que eu não gostava daquela situação. A violência cotidiana de agressões físicas e verbais por coisas que qualquer criança faz, os gritos que me faziam tremer de medo e a falta de liberdade para construir amizades e vivenciar experiências no mundo exterior ao da minha casa; tudo isso me fazia sofrer bastante – ainda mais vindo de alguém que, em teoria – afinal naturalizamos todas as relações burguesas – deveria cuidar de mim. Era evidente a situação de violência familiar que eu passei por toda infância e adolescência, porém demorou bastante, e a custo de uma alta demanda psicológica, para que eu percebesse a minha situação como violência – e mais ainda para que eu percebesse que tinha forças e capacidade para sair daquela situação. O que mudou? Com o passar do tempo, dentro de meu aprisionamento mental e físico à violência familiar, fui percebendo que outras famílias viviam de outras formas. Ouvindo outras pessoas da minha idade, percebi que algumas passavam por problemas similares. Vi histórias de filhos que denunciaram a violência dos pais e que saíram dessa situação de algum modo. Ou seja, eu pude perceber, ao ver no mundo uma partilha de experiências similares (as diversas relações familiares) que me possibilitaram narrar minha história não mais como uma tragédia sem solução, “é triste, mas é assim” ou “é a forma que minha família tem de amar”, mas como um algo que não deveria acontecer, como errado e injusto. Porém, chegar a essa conclusão não me fez sair de um encurralado jovem para soltar o grito de emancipação em relação a minha família – a liberdade demanda esforço (ao menos nisso Kant tinha razão).

As pontes semânticas, que nos fornecem ferramentais hermenêuticos e produzem uma linguagem com maior capacidade crítica, nos possibilitando um diagnóstico mais complexo da realidade que nos cerca, são fundamentais para que percebamos que o que antes víamos como natural, não é. Isso nos permite entender que, se a realidade é a mesma, foi necessário que eu (tomando meu caso) ganhasse ferramentas capazes de criar pontes entre essa realidade, antes naturalizada, e concepções rearranjadas de justiça que possibilitam que a mesma realidade seja percebida, agora, como injusta. Ou seja: a produção de pontes semânticas nos permite articular de maneira nova a realidade que experienciamos com a percepção de que tal experiência se trata de uma injustiça.

O segundo ponto requer que entendamos que saber não basta. Um diagnóstico mais preciso não é suficiente para que as coisas mudem. Também é preciso acreditar que as coisas podem ser transformadas e, no meu caso, que eu poderia tomar as rédeas de minha história. Há um ditado bastante comum no Brasil, que pode servir de ponto de partida para o que quero ilustrar nesse ponto: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Desde criança eu ouço esse ditado. Sempre que eu dizia, como todo jovem levemente revoltado, que iria bater de frente com alguma autoridade familiar ou do colégio, sempre ouvia esse ditado como o conselho sábio de algum adulto. Então, mesmo que eu soubesse que vivia alguma injustiça, era preciso superar uma outra barreira: a impotência de agir – afinal, não basta interpretar o mundo, é preciso transformá-lo.

Transformar as coisas não é tão simples. É preciso analisar as condições reais, para pensar as possibilidades de mudança. É preciso estratégia, mas também imaginação, para traçar pressupostos gerais de um futuro que ainda não conhecemos, mas que queremos que seja distinto do que vivemos agora. Voltando à minha história, a mesma coisa: eu precisava não apenas saber do que se tratava minha condição de vida, mas ter a capacidade de imaginar uma vida para além daquela que era permeada por violências. Como vimos, a razão, o saber, ainda que seja fundamental e um pressuposto da ação, não é em si mesmo potente o suficiente para mobilizar o sujeito a agir.

Trata-se, para os comunistas, que justamente buscam tocar corações e mentes, de se produzir espaços onde as pessoas possam construir novas formas de perceber a realidade e um conjunto de ações que as tirem da impotência de agir – ou seja: dê arsenal hermenêutico crítico e agência aos sujeitos. E uma das formas mais eficientes, inclusive considerando o mundo contemporâneo permeado pelo espetáculo hipnótico de imagens, é a estética.

Vamos a um exemplo. A crise dos refugiados, que partem do Oriente Médio e Norte da África para a Europa, já existe há um bom tempo. A primeira vez que houve uma mobilização em nível mundial foi quando, em 2015, no litoral turco, a foto de uma criança síria morta circulou o mundo gerando comoção e alertando a humanidade do problema, das causas e da barbárie da imigração. Ainda que houvesse vários movimentos que alertassem o mundo sobre tal questão, foi uma foto que mais mobilizou a atenção e olhares de quem, até então, não sabia ou não se importava. Se política também se trata da correlação de forças no campo de visibilidade e de afecção, então a estética passa a ser uma arma excelente. Uma foto chamou a atenção de modo muito mais eficiente que a denúncia explícita. Somos tocados ao ver a foto. Isso que nos toca é capaz de produzir uma paralaxe na realidade, capaz de nos fazer ver o mesmo que já víamos antes, mas de outro modo.

Lembro que recentemente assisti ao filme Emancipation (Antoine Fuqua, 2022), estrelado por Will Smith. O filme conta a história real da fuga de um escravo nos Estados Unidos. Esse homem, perspicaz o suficiente para conseguir escapar mesmo em uma situação extremamente adversa, tirou uma foto que mostra suas costas cheias de cicatrizes profundas, fazendo dessa foto a imagem da barbárie escravista, que passou a ser uma das imagens que mais representavam os motivos da luta abolicionista. Do mesmo modo, uma foto mobilizou ainda mais a luta pelos direitos civis da população negra estadunidense.

Em 1955, o jovem Emmett Louis Till foi brutalmente torturado e morto por brancos no Mississipi. Seu corpo foi encontrado completamente desfigurado. A mãe de Emmitt, Mamie Till, decidiu que o velório de seu filho seria com caixão aberto, afinal todos deveriam ver, no corpo violentado de Emmitt, o que era a brutalidade do racismo nos EUA. A foto de Mamie Til com seu companheiro ao lado do caixão aberto com o corpo desfigurado de Emmitt gerou tamanha comoção e mobilização, que impulsionou ainda mais o movimento negro estadunidense.

As imagens tem o poder de afetar as pessoas, mobilizar o olhar, o pensar e abrir um novo campo de ação – que podem ou não ser aproveitados – , mas a potência da abertura é inegável. Do mesmo modo que as imagens “chamam” nosso olhar, atraem nossa razão, também podem nos afastar, ferir nosso olhar. E é aqui que volto à minha história com o horário eleitoral.

Como tinha falado antes, foi no horário eleitoral que eu conheci a esquerda comunista. E a primeira coisa que eu pensei foi que não era possível que alguém em sã consciência escolheria apoiar essas pessoas. Falavam gritando coisas que não eu fazia ideia do que era, com um olhar desnecessariamente sério e uma imagem que me afastava. Não conseguia nem sentir graça, afinal o humor pode prender, mas nem isso acontecia. A estética era pesada, carregada, com as mesmas cores, mesmas imagens, mesmo tom. E isso, apesar de ter havido pontuais melhoras, ainda permanece. A estética dos comunistas é praticamente a mesma daquela época para cá, de modo geral. A realidade é que eu sou uma exceção: minha aproximação se deu após um afastamento que, junto com o anticomunismo corrente na sociedade, foi reforçado pela terrível estética dos comunistas brasileiros – e, vale lembrar, não foi sempre assim.

Mesmo quando me organizei tendo a convicção revolucionária no comunismo, ainda assim, a estética comunista sempre foi, para mim, um incomodo – e ainda é. (Quero dizer que entendo que não temos condições financeiras e, muitas vezes, técnica, mas já houve movimentos que, com níveis de precariedade similar, conseguiram produzir uma estética própria, marcante e atrativa, por exemplo, o cangaço). Sim, é possível fazer muito melhor com o que temos. Hoje estamos crescendo, ainda que não no nível que precisamos, e temos maior acesso às tecnologias que ajudam na produção visual. Basta vontade de desapegar de uma eterna referência ao realismo soviético, que se tornou uma estética gasta, e organização. (Inclusive, vale observar que o sucesso do realismo soviético não pode ser separado, às custas de se abandonar uma leitura materialista, do fato de que ele era soviético. Ou seja, a União Soviética investiu e organizou uma produção visual que dialogasse com as necessidades, com a cultura e o imaginário do povo soviético).

Os comunistas brasileiros tem, no campo da estética, uma vantagem inigualável. Vivemos no país mais rico culturalmente que há nesse mundo. Sim, eu sei, há muitos países riquíssimos, mas o Brasil tem uma diversidade cultural tão grande que passa pelo Maracatu, Boi Bumbá, Samba, a tropicália, funk etc. Não nos falta referências estéticas, nem de movimentos artísticos, nem de referenciais de luta (que não precisam ser sempre os mesmos: Revolução cubana, soviética ou coreana). Há no Brasil uma história de lutas populares que, se é compreensível que a historiografia busque silenciar (afinal a produção da história também é reflexo da luta de classes), não compreendo o porquê de não reivindicamos esse histórico.

Claro, nesse ponto eu imagino que você esteja se perguntando se eu estou querendo abdicar dos símbolos clássicos do comunismo, como o vermelho, a foice e o martelo. Não, não se trata disso. Inclusive acredito que esse apego se trata também do reflexo de uma estetização da militância comunista – que ganhou ainda mais força com as redes sociais. Há maior preocupação em conservar uma estética comunista raiz, que serve inclusive para metrificar o grau de adesão ao comunismo de cada pessoa, do quem em produzir um campo de ação revolucionária que de fato alcance as pessoas. Há um exemplo que, para mim, é muito representativo dessa convicção comunista tão forte que submeteu a estético a um projeto revolucionário que alcance as pessoas: os Panteras Negras.

Veja, não estou dizendo que devemos copiá-los – ainda que eu acredite que fosse melhor que copiar o realismo soviético, afinal a imagem dos Panteras possui muito mais força em nosso imaginário, especialmente por conta do rap. Tampouco estou dizendo para deixarmos de reivindicar as experiências do socialismo real e a história do movimento comunista. Apenas atento que o Brasil precisa criar o seu referencial estético e de memória da luta do povo brasileiro, que é cheia de potenciais revolucionários e já estão, de algum modo, arraigadas no imaginário popular.

No Brasil conhecemos Lampião, e não Stalin, sabemos quem foi Zumbi dos Palmares e não Trotsky, quem foi Maria Bonita, e não Lyudmila Pavlichenko. Mais uma vez, não se trata de não rememorar essas figuras do movimento comunista internacional, mas eles são exemplos históricos de que, quando o comunismo é encarnado por um povo e sua cultura, ele ganha os contornos dessa cultura para ser capaz de traduzir, na alma das pessoas comuns, a vida cotidiana que vivem. O movimento comunista internacional e sua história existem para aprendermos um exemplo, não para ser copiado ou virar uma espécie de contemplação (quase que religiosa) distante de nossa realidade. Afinal, como leninista, entendo que a estética tem que estar submetida à tarefa de fazer a revolução brasileira – o que caracteriza que tipo de revolução queremos, comunista e brasileira –, então não há motivos para tanto apego estético e memorialista, como se isso fosse atestado de uma pureza revolucionária que, na prática, nada diz do povo brasileiro que acorda cedo, pega um transporte público humilhante, trabalha duro e vive completamente desumanizado e precarizado.

Os Panteras Negras escolheram a pantera por se tratar de um animal que não ataca, a não ser quando atacado, porém, quando ataca, é forte e agressivo. Essa imagem dialoga muito bem com a situação do povo negro estadunidense, que enfrentava ataques assassinos da polícia, da Ku Klux Klan, da branquitude e de políticas segregacionistas. Eles decidiram revidar política e fisicamente a violência que viviam. Isso estava simbolizado na pantera. Juntos eles podiam ter a força da pantera, não para atacar, mas para se defender com todas as forças possíveis. E nessa defesa, já avançavam politicamente, pois era uma autodefesa produtiva, acompanhada de pontes semânticas capazes de fazê-los perceber as dores que viviam como uma brutalidade. Dito isso, é inconfundível o símbolo dos Panteras. Até o estilo das roupas, forma de andar, de se portar etc., eram condizentes com o campo imaginário e de costumes da comunidade negra dos EUA.

De certo modo, nossa missão, como comunistas brasileiros, é encontrar uma estética que consiga dialogar com o imaginário do povo brasileiro. Eu sei, isso é muito mais difícil do que foi para os Panteras, afinal o Brasil é um país plural e sequer a questão, quem é o povo brasileiro?, conseguimos responder direito. Responder quem é o povo brasileiro vai, aos poucos, na medida em que cercamos a questão, abrir um campo de possibilidades estéticas que nos impulsionará em direção a uma estética comunista brasileira. Uma estética capaz de afetar, de algum modo, nosso povo; feita pelo e para o nosso povo.

Se o melhor do Brasil é o brasileiro, cabe aos comunistas, então, abraçar a brasilidade, cheia de suas contradições e problemas, e pensar a partir de onde nossos pés pisam para agirmos onde nossos pés pisam – e não mais pensar e agir onde nossa cabeça vive (geralmente na nostalgia idealista de uma União Soviética que partiu e nunca mais voltou).

Que a estética comunista brasileira seja capaz de encarnar a brasilidade do Brasil e nos impulsione para um verdadeiro carnaval: alegre, bonito, potente e forte, afinal, é assim que nossa cultura é.

Notas:

(1) Heribaldo Maia é educador popular, formado em História Licenciatura, mestrando em Filosofia (ambos pela UFPE) e em formação psicanalítica. É autor do livro “Neoliberalismo e sofrimento psíquico: o mal-estar nas universidades” e coorganizador do livro “Marxismo, psicanálise e revolução” em conjunto com Christian Dunker e Jones Manoel.

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